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Interpretação da Constituição conforme a lei entendida como liberdade de conformação do legislador dos preceitos constitucionais

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13/02/2011 às 15:51
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4 – Entendimentos doutrinários acerca da Interpretação da Constituição conforme a Lei

O presente método hermenêutico é objeto de severas críticas pela grande maioria dos doutrinadores pátrios e alienígenas, que o consideram uma subversão da hierarquia normativa, o que redundaria em uma "legalidade da Constituição" ao invés da tradicional constitucionalidade das leis.

Segundo Canotilho (1994) tal fenômeno hermenêutico ocorreria quando o legislador ordinário se valeria das normas infraconstitucionais para determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daquelas normas que possuíssem um alto grau de "generalidade" e "indeterminabilidade". Tal fato seria possível uma vez que o direito ordinário estaria mais próximo da realidade e de seus problemas concretos.

Para Barroso (1999) toda atividade legislativa ordinária seria em última análise um instrumento de atuação da Constituição, de desenvolvimento de suas normas e consequentemente de realização de seus fins. Por isso há a constatação de que o legislador regularmente interpreta a Constituição, havendo como já realçado por Hesse e anteriormente relatado, uma relação simétrica entre a interpretação conforme a Constituição e a interpretação da Constituição conforme a lei. Ainda nos respaldando nos dizeres de Barroso (1999, p. 181):

"Quando o Judiciário desprezando outras possibilidades interpretativas prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em verdade, endossando a interpretação da Constituição conforme a lei. Mas tal deferência [08] há de cessar onde não seja possível transigir com a vontade cristalina emanada do texto constitucional"

A interpretação dos dispositivos constitucionais conforme a lei, pelo que se depreende do ensinamento acima transcrito, tem total cabimento quando do sistema constitucional não se é permitido deduzir o significado exato do conceito utilizado pelo Constituinte.

A criação do termo se deve ao jurista alemão Walter Leisner, que em 1964 publicou o livro "Da constitucionalidade das leis para a legalidade da Constituição" [09], tendo o mesmo, contudo, uma opinião completamente contrária ao fenômeno.

Ainda em solo germânico, outros dois renomados juristas se detiveram à análise do tema, cada qual com um ponto de vista particular, ambos divergentes todavia, da orientação de Leisner. E em solo lusitano, Canotilho também expressou o seu entendimento.

Afigura-se interessante, pois, uma sucinta análise do que pensam esses juristas sobre o tema ora em debate.

4.1 – Posicionamento de Peter Häberle

Häberle inclina-se contra um entendimento jurídico-individual liberal da Constituição e dos direitos fundamentais, vendo o legislador como preponderantemente autorizado a influenciar, tanto direta quanto indiretamente, a compreensão constitucional, até mesmo no que tange aos direitos fundamentais. Ele argumenta ainda contra a tradicional limitação da compreensão dos direitos fundamentais e também contra a crescente restrição da reserva de legislação.

Decisivo para a interpretação constitucional de acordo com o direito legal ordinário é para Häberle (1983) a compreensão dos direitos fundamentais, que teriam uma visão "institucional", ou seja, uma referência maior para a comunidade, ao invés da orientação dominante desde a Revolução Francesa dos direitos fundamentais como ideais jurídico-individuais. O autor assevera que todos parecem ignorar que o legislador não é apenas um potencial oponente dos direitos fundamentais, e do direito em si, mas que é sim, atualmente, um garantidor desses direitos ao configurá-los em suas normas, porque "a configuração realizaria o objetivo da Constituição que é a realização dos direitos fundamentais na vida social. E para atingir esse objetivo a Constituição necessitaria da legislação como um meio para a realidade social" (HÄBERLE 1983, p. 184).

Häberle elaborou a tese segundo a qual toda limitação dos direitos fundamentais conteria uma parte de determinação de seu conteúdo. Assim, o legislador que limita os direitos fundamentais, estaria também com isso, determinando seus conteúdos e vice-versa, uma afirmação que para o autor significaria uma legitimação para restrições dos direitos fundamentais através do legislador ordinário.

Serve também como fundamento para a sua peculiar visão da atuação do legislador ordinário, o fato de Häberle vislumbrar uma valorização "teórico-jurídica" do instituto da Reserva Legal, que para ele é entendido pela doutrina de uma maneira equivocada, pois prejudicaria o conteúdo jurídico-valorativo dos direitos fundamentais.

Conclui-se desses ensinamentos que Häberle concede um demasiado espaço para a atuação do legislador infraconstitucional na determinação dos conceitos constitucionais.

4.2 – Posicionamento de Walter Leisner

Leisner representa a posição extremamente contrária à de Häberle. Enquanto esse último, como já anteriormente relatado, possuía uma confiança quase sem limites no legislador, a posição de Leisner é gravada principalmente de desconfiança em relação à legislação ordinária, que representaria uma aguda ameaça à validade e ao conteúdo da Constituição escrita, o que ocasionaria uma inversão da ordem normativa: da Lei para a Constituição ao invés da Constituição para a Lei.

A obra desse autor germânico discute a relação entre o Direito Constitucional e as normas não-constitucionais, e afirma a ocorrência de uma "degradante infiltração" no Direito Constitucional por essas normas, "infiltração" essa que deveria ser combatida com um fortalecimento conceitual de Autonomia da Constituição. Para Leisner (1964), "autonomia" nesse sentido significaria que as normas constitucionais se explicam por conta própria e manteriam uma força capaz de moldar o direito infraconstitucional.

É ainda da opinião de que as disposições constitucionais não poderiam ter seu sentido preenchido por normas infraconstitucionais, pois qualquer referência à lei ordinária tornaria a Constituição dispensável (LEISNER 1964), sendo ele o responsável por cunhar a expressão "Constituição de acordo com as Leis" para expressar esse fenômeno, que seria um risco à independência da Constituição como norma superior.

Leisner acredita que, para se evitar o preenchimento da Constituição pelo legislador infraconstitucional, haveria a necessidade de se optar pelos chamados conceitos constitucionais autônomos, que seriam: a) conceitos que a própria Constituição define; b) conceitos tipicamente constitucionais, conhecidos e compreendidos primariamente pela Constituição; c) conceitos que, não obstante serem tradicionalmente constitucionais, ganham na lei fundamental uma decisiva caracterização; e d) conceitos que embora pressupõem uma complementação legal são sobretudo caracterizados a partir da Constituição.

Todavia, concorda Leisner que realmente há escassez de conceitos constitucionais completamente autônomos em relação ao direito infraconstitucional, no que tange ao conteúdo, ressaltando o autor, que a autonomia da Constituição poderia ser então, decisivamente garantida a partir de uma Teoria da Constituição mais forte e independente, o que reforça sua grande crítica ao tema, que é o fato de proceder-se sempre ao preenchimento dos conceitos constitucionais através de elementos do direito inferior, sem o esforço de realizar-se primeiramente uma interpretação constitucional autêntica.

Em sua obra, Leisner também se refere à reserva legal, possuindo, contudo, uma visão completamente diferente daquela exposta por Häberle. Embora afirme que a reserva legal seria a única forma legítima de uma Constituição de acordo com as leis, uma vez que a mesma é expressamente reconhecida pela dogmática constitucional, rechaça essa ampliação da reserva legal, pois a mesma acabaria por desencadear uma aberta "repressão constitucional" (LEISNER, 1964, p.40) ao relativizar, ou até mesmo suprimir, conceitos constitucionais em prol de preceitos infraconstitucionais.

Diferindo uma vez mais da orientação de Häberle, assevera Leisner (1964, p.52) que "uma completa institucionalização da Constituição subverteria não apenas os direitos fundamentais, mas também toda a Constituição, a partir de uma ‘infiltração conceitual’ da legislação infraconstitucional nos preceitos constitucionais". [10]

Ao final de seu livro, cita Leisner (1964, p.64 e ss) 17 sugestões de solução para a problemática ora em questão, dentre as quais podemos assinalar: a) a imposição de um esgotamento das possibilidades de interpretação autônoma dos conceitos constitucionais antes de se passar ao auxílio legal; b) os conceitos legais devem ser interpretados no sentido constitucional (muitas vezes atécnico) e não no sentido pretensamente técnico, encontrado no direito infraconstitucional; c) a Constituição deve ser vista como um todo, havendo, consequentemente, um fortalecimento da teoria constitucional, o que impediria o "movimento de institucionalização" do Direito Constitucional; dentre várias outras.

Um grave problema da análise de Leisner reside no fato de que ele não concede o valor devido à Constituição como um produto da experiência histórica, perdendo assim de vista a tradição jurídica. O autor, como já precedentemente relatado, baseia-se numa Constituição extremamente "pura", que, posto isso, ficaria isenta dos influxos das evoluções históricas, perdendo consequentemente sua vitalidade e força atuante. Esse ideal de uma "superconstituição" proposto por Leisner faz com que o diploma constitucional não possua um de seus compromissos históricos, qual seja, o poder de refletir em suas normas as diversas alterações políticas e intelectuais que ocorrem na sociedade ao longo do tempo, resultando, consequentemente, que o entendimento que se obtém a partir de uma interpretação constitucional de uma Constituição completamente fechada a alterações advindas da legislação infraconstitucional, com o passar dos tempos, não se coadunaria com a realidade.

Inobstante isso, Leisner parece propor uma forçada separação entre a Constituição e seu conteúdo de um lado, e as normas jurídicas infraconstitucionais de outro, vendo o diploma constitucional como fechado. E sabemos que se afigura facilmente comprovável que numerosos preceitos infraconstitucionais participam do processo de transformação constitucional, passando a autêntico conteúdo normativo da Constituição.

Por fim cabe mais uma crítica. A desconfiança de Leisner no legislador e na própria sociedade é infundada, porque um sistema constitucional não será nunca bem recebido se o mesmo não admite ser influenciado pelo processo de modificação que ocorre na sociedade através das legislações infraconstitucionais.

4.3 – Posicionamento de Peter Lerche

Esse autor, diferentemente de Leisner, não enxerga a Constituição constituída sozinha no ordenamento jurídico, mas sim como um "concentrado" de todos os preceitos infraconstitucionais que caracterizam uma importante esfera do Direito. Lerche tem o legislador infraconstitucional (embora em limites bem definidos), como autorizado a influenciar a compreensão constitucional a partir de mudanças legislativas ordinárias.

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Ao se aceitar a Constituição como "concentrada", tem-se que admitir que qualquer alteração fática das noções jurídicas infraconstitucionais, desencadearia, automaticamente, mudanças no teor constitucional. O questionamento só ocorreria em relação à existência de limites para tanto.

É corrente a indagação se institutos importantes como a propriedade, o direito sucessório, dentre outros, poderiam adquirir status constitucional se interpretados unicamente a partir da legislação ordinária, mesmo que essa nova interpretação não observasse os limites impostos pela Constituição. Lerche aduz que, nesses casos, a mudança ideológica da Constituição só poderia ocorrer quando a legislação ordinária fizesse referência aos postulados da Constituição, o que leva à conclusão de que há para o autor uma desvalorização da legislação ordinária vigente como expressão unilateral do interesse societário, ocasionando consequentemente, uma valorização da Constituição como base para o estabelecimento de preceitos futuros.

A função da Constituição como "concentrado" garante, segundo Lerche (1971), continuidade e, ao mesmo tempo, flexibilidade ao desenvolvimento jurídico tanto no plano da compreensão constitucional quanto no plano da legislação ordinária, pois, se de um lado deve extrair da compreensão constitucional arbitrariedades interpretativas, de outro lado deve deixar a Constituição suficientemente aberta para evitar que a mesma permaneça "endurecida" por interpretações demasiado conservadoras. Em suma, há assim, certa "maleabilidade" (LERCHE, 1971, p. 291) para que o ordenamento jurídico infraconstitucional, ao se atualizar, influencie a Constituição, mas tal "maleabilidade" deve ocorrer desde que se respeitem os princípios basilares constantes na Lei Fundamental, o que impediria qualquer menção à inversão da ordem normativa.

4.4 – Posicionamento de José Joaquim Gomes Canotilho

O mestre português ao adentrar no tema, faz referência à questão do reenvio constitucional, pois a Constituição "reenviaria" para as leis, em virtude da "abertura", "incompletude" ou "indeterminabilidade" das normas constitucionais, a função de concretização desses preceitos constitucionais.

Para o autor, tal método hermenêutico possuiria preponderantemente duas vantagens: a) quando se tratassem de leis relativamente antigas que posteriormente lograssem status constitucional; b) e principalmente em relação às hipóteses de alteração de sentido da Constituição plasmadas nessas leis ordinárias, uma vez que essas por estarem em contato direto com a realidade e seus problemas concretos, "transforma-se em ‘indicativos’ das alterações de sentido e em operadores de concretização das normas constitucionais cujo sentido se alterou. Do direito infraconstitucional partir-se-ia para a concretização da Constituição" (CANOTILHO, 2003, p. 1234).

Retornando à questão dos reenvios constitucionais, assevera o mestre de Coimbra que muitas dessas remissões constitucionais para as leis significariam na realidade uma abertura para que a legislação infraconstitucional procedesse a uma concretização dos preceitos constitucionais. Qual nada, o reenvio aberto para o preenchimento da Constituição segundo as leis não é, como comumente dito pela doutrina, uma abertura para qualquer conformação legal, uma vez que o cerne da regulamentação legal deve ser materialmente determinado por outros princípios expressa ou implicitamente disciplinados na Lei Fundamental. Por tais razões, a relativização da Constituição através da lei não é ainda um instrumento de inversão normativa.

Contudo, apoiando-se nos ensinamentos de Leisner, afirma Canotilho (1994) que um alargamento incontrolado dessas remissões, o que ocasionaria concomitantemente em um alargamento da noção de constituição material, é uma via perigosa, pois ai sim poderia ocasionar uma subversão da pirâmide normativa através do recurso freqüente à complementação normativa infraconstitucional. Como solução para tal fato, necessário seria evitar que esse conceito material de constituição fosse "ocupado pelo direito infraconstitucional, pelos seus conceitos, as suas teorias e as suas tradições" (CANOTILHO, 1994, p.410).

Como reticência à utilização desse cânome interpretativo, o autor relata que a Constituição passaria a ser entendida não só como um espaço normativo aberto, mas também como um campo neutro, onde o legislador iria introduzindo alterações. E Canotilho (2003) vai mais além ao afirmar que pode ocorrer dessa interpretação da Constituição conforme as leis ser uma interpretação inconstitucional, pois as leis pretéritas podem ter ganhado uma significação completamente diferente na Constituição, ou porque as novas leis podem ter introduzido alterações de sentido inconstitucionais.

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Sobre o autor
Mathias Vargas Pereira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Mathias Vargas. Interpretação da Constituição conforme a lei entendida como liberdade de conformação do legislador dos preceitos constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2783, 13 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18486. Acesso em: 24 nov. 2024.

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