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Interpretação da Constituição conforme a lei entendida como liberdade de conformação do legislador dos preceitos constitucionais

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13/02/2011 às 15:51
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5 – Interpretação da Constituição conforme a Lei como Liberdade de Conformação do Legislador

Depois de esclarecer o que alguns dos mais renomados constitucionalistas pensam a respeito da Interpretação da Constituição conforme a Lei, cabe nesse momento, a defesa de um ponto de vista particular e, para tanto, os ensinamentos de Canotilho uma vez mais servirão como diretrizes. Como o próprio título do presente capítulo cristalinamente demonstra, se tentará mostrar nas páginas subseqüentes, que a Interpretação da Constituição conforme a lei nada mais é do que a já conhecida e amplamente aceita liberdade que o legislador infraconstitucional possui de conformar o texto constitucional, devendo-se nesse instante uma análise desse fenômeno.

É sabido que os preceitos constitucionais são modos de ordenação de uma realidade presente, mas com dimensão para o futuro, devendo-se tais preceitos possuir abertura, flexibilidade, extensão e indeterminabilidade de modo a possibilitar uma conformação compatível com a natureza da direção política e uma adaptação concreta do programa constitucional.

Canotilho (1994, p.193) acrescenta ainda que:

"ao se falar de normas abertas, pretende-se dizer que as normas constitucionais devem ser planificadamente indeterminadas, de modo a deixarem aos órgãos responsáveis pela sua concretização o espaço de liberdade decisória necessário à adequação da norma perante uma realidade multiforme e cambiante".

Importante também é a definição de qual a função desempenhada pelo legislador no que se refere à relação material entre a Constituição e a lei. Adota-se aqui a noção de lei como conformação do texto constitucional [11]. Assim, as normas constitucionais seriam entendidas como preceitos gerais, possuindo o legislador um amplo poder para ponderar, valorar e comparar os fins dos preceitos constitucionais. Embora o legislador seja jurídico-constitucionalmente vinculado, ele pode desempenhar uma atividade criadora, que não estaria reduzida a mero esquema de execução e aplicação das normas constitucionais.

As normas constitucionais não são, em grande parte, programas condicionais os quais se possam reduzir ao esquema "se – então", mas são, ao invés disso, programas-fins que necessitam para a sua realização, de uma ampla liberdade de escolha pelo legislador dos meios aptos a atingirem os fins. É a chamada liberdade de conformação do legislador. [12]

A grande crítica à utilização da Interpretação da Constituição conforme a lei é que esse método interpretativo levaria a uma inversão da hierarquia normativa, ocorrendo uma "legalização da Constituição" em detrimento da constitucionalização das leis. Todavia, entender esse método hermenêutico como nada mais que a liberdade de conformação do legislador não leva a tal conclusão, uma vez que o legislador ao atuar, tem como base, sempre, o texto constitucional. Isso porque é cediço que a lei, no Estado de Direito Democrático-Constitucional não é um ato livre dentro da Constituição; é um ato, positiva e negativamente determinado pela Lei Fundamental. E realmente, utilizar a legislação infraconstitucional para interpretar a Lei Suprema, nada mais é do que dar poder ao legislador de conformar a Constituição. Trata-se, posto isso, de situações idênticas que recebem apenas denominação diversa.

Dois argumentos podem ser mencionados para a utilização da liberdade de conformação do legislador (e consequentemente para a interpretação da Constituição conforme a lei) nos ordenamentos hoje vigentes, quais sejam: a) o legislador possui legitimidade democrática imediata, assegurada pelo princípio democrático, pois o referido princípio assegura à instância legiferante uma fundamental liberdade de decisão para a realização de sua atividade; b) derivação também da "própria componente formal do conceito de Estado de Direito, na medida em que o princípio da segurança jurídica, como valor indissociável da estadualidade, jogaria a favor da presunção de conformidade material da actuação do legislador e, consequentemente, da sua liberdade de conformação"(CANOTILHO, 1994, p.238/9). Isso porque, quando muito, as normas constitucionais representarão apenas uma "vinculação negativa", mas não uma imposição de concretização ou execução.

Quando se centra a discussão na natureza das normas ao invés da posição constitucional do legislador, o resultado da utilização da liberdade de conformação do legislador não se altera, porque os múltiplos fatores e interesses a ponderar pelo legislador exigem não um Estado-garantia estático, mas sim um Estado-legislativo criador e suficientemente livre da determinação dos meios para a consecução dos fins mais ou menos definidos pela Constituição. Ademais, algumas normas constitucionais devem ser entendidas, como ressalta Canotilho (1994, p.240) como "um ‘guia’, um ‘itinerário’ onde não cabem todos os espaços concretos. A concretização constitucional seria, nesta perspectiva, um acto constitutivo e criador. Mais do que um acto cognitivo, tratar-se-ia de um acto volitivo".

Ao se interpretar a Constituição a partir da legislação infraconstitucional, pode o legislador, por possuir uma liberdade de conformação dos preceitos, proceder a excessos. Contudo, nesse instante, ressalta-se a importância dos Tribunais Constitucionais, que devem declarar a inconstitucionalidade da lei elaborada pelo legislativo quando esta afrontar o texto constitucional. Canotilho (1994) relata que a liberdade de conformação do legislador também é confirmada a partir da questão do problema do controle da atividade legislativa, devendo-se nesse momento ser defendida, contudo, uma posição limitada do poder conferido a esses Tribunais Constitucionais. A indeterminação objetiva das normas vinculantes deixa ao legislador um espaço para decisões politicamente motivadas, dessa forma, tal motivação política deve ser subtraída da fiscalização pelo Judiciário, com o objetivo de se evitar a transformação do controle judicial em político. Assim, melhor seria se houvesse um "controle dos ‘limites externos’ dos actos legislativos, mas não uma ‘devassa’ das considerações políticas subjacentes ao acto legislativo"(CANOTILHO, 1994, p.240).

Esclarecedores são, uma vez mais, os dizeres de Canotilho (1994, p. 265), que merecem ser aqui literalmente relatados:

"Não está em causa um ‘dever de boa-lei’, mas o dever de observância dos fins constitucionais, concretamente plasmados em normas constitucionais impositivas, heteronomamente vinculantes das escolhas discricionariamente feitas pelo legislador. Por outras palavras: o legislador, através das determinantes autônomas, continua a valorar autonomamente as circunstâncias de facto e as finalidades sócias, políticas e econômicas de determinado acto legislativo. Quando, porém, a constituição impõe concretamente a obtenção de certos fins e traça as directivas materiais para a sua obtenção, impõem-se que, a nível da interpretação da lei, se capte a eventual desconformidade do acto legislativo, por contraditoriedade, não pertinência ou incongruência com os fins e directivas materiais da constituição. A fiscalização constitucional não se transforma em juízo de mérito (inadequação, inoportunidade ou deficiência da lei para atingir certos fins), pois isso pressuporia uma substituição inadmissível do legislador pelo juiz na selecção das determinantes autônomas."

Quando se fala que a Interpretação da Constituição conforme a lei não subverte a hierarquia normativa, afirma-se que o texto constitucional sempre deverá servir como fundamento para a atuação do legislador infraconstitucional, isso porque existem princípios, os quais Canotilho denomina de determinantes heterônomas [13], que servem como uma espécie de controle, incidente sobre o exercício da função legislativa.

Anteriormente já foi dito que na ordem democrático-constitucional, incumbe ao legislador a tarefa de concretização da Constituição, isso com o escopo de aproximar os preceitos constitucionais da realidade, e que tal tarefa desempenhada pelo legislador pressupõe a observância dos princípios fundamentais do texto constitucional. Contudo, hodiernamente, devem-se compreender essas normas constitucionais diretivas da atuação legislativa, como normas de remissão, atributivas de competência e não como normas impositivas de uma tarefa material. Isso tudo só corrobora o entendimento já plasmado que a atividade legislativa é um meio necessário para a atualização-concretização das normas constitucionais.

Mister se faz também a análise da atuação do legislador no que tange aos direitos fundamentais. A posição aqui adotada será semelhante àquela prolatada por Peter Lerche, afastando-se assim, da opinião de Häberle que concede amplos poderes ao legislador infraconstitucional na conformação dos direitos fundamentais. A relação da lei com os direitos fundamentais reconduz-se a dois esquemas principais: 1) direitos de liberdade (direitos de defesa), na qual se pretende uma omissão dos poderes públicos; 2) direitos econômicos, sociais e culturais (direitos à prestação), na qual é desejável uma atuação legislativa. E é em relação a essa última categoria, que a presença do legislador se fará importante. Não há dúvidas que a falta de dinamização legislativa dos direitos à prestações deve ser entendida como um não-cumprimento inconstitucional.

Nota-se diante de tudo o que foi exposto que a atuação legislativa é imprescindível para a máxima concretização da Lei Fundamental, concretização essa entendida como a liberdade que o legislador possui de conformação dos preceitos constitucionais ou na conceituação do presente trabalho, de usar a legislação infraconstitucional para interpretação a Lei Superior.


6 – Utilização da Interpretação da Constituição conforme a Lei no ordenamento jurídico brasileiro

A seara tributária é a que mais propriamente nos fornece exemplos da utilização desse cânone hermenêutico, e que também permite a visualização de que a interpretação da Constituição conforme a lei nada mais é do que a liberdade de que o legislador possui de poder conformar o texto constitucional. É sabido que a Constituição não cria tributos, ela apenas atribui competência para a criação dos mesmos, por isso se diz que a Constituição traz a hipótese de incidência e a base de cálculo possíveis dos impostos, cabendo ao legislador, no momento do exercício da competência, editar a norma tributária dentro dos limites previamente demarcados pela Constituição. Assim, as relações jurídicas havidas entre o fisco e os contribuintes são disciplinadas pela legislação infraconstitucional. De acordo com os sábios dizeres de Amaro (p.99, 2007):

"Ainda que referidas na Constituição as notas que permitem identificar o perfil genérico do tributo (por exemplo ‘renda’, ‘prestação de serviços’, etc), a efetiva criação de tributo sobre tais situações depende de a competência atribuída a este o àquele ente político ser exercitada, fazendo atuar o mecanismo formal (também previsto na Constituição) hábil à instituição do tributo: a lei".

Nesta esteira, percebe-se que a lei ordinária é o meio apto à instituição de tributos, e consequentemente, de suas modificações e revogações.

Ainda baseado nas palavras de Amaro (2007) tal competência tributária pressupõe a competência para legislar, inovando-se o ordenamento jurídico, contudo, se devem respeitar os balizamentos previamente fixados no texto constitucional, que estabelecerá os limites aos quais a lei instituidora do tributo estará submetida, devendo posto isso, ser o legislador fiel ao padrão de incidência do tributo, pré-traçado na Constituição, o que corrobora todo o disposto no capítulo precedente.

À guisa de exemplos, há a questão da noção de renda. Extrair um conceito de renda no âmbito da Constituição se mostra como uma árdua tarefa, já que o texto constitucional não diz o que renda significa, o que nos leva a inferir que o disposto no art. 153, III, da Constituição não é "de per si" apto a afastar a ação do legislador complementar e ordinário.

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O conceito jurídico-tributário de renda deve realmente ser buscado no Direito Positivo, mais precipuamente na legislação infraconstitucional. Inobstante isso, não se pode admitir que o legislador ordinário desfrute de inteira liberdade para considerar renda tudo quanto pretenda tratar como tal para fins tributários, uma vez que a Constituição Federal submete a renda ao princípio geral da capacidade contributiva e aos princípios da generalidade, universalidade e progressividade. Renda deve ser entendida como um ganho patrimonial, uma riqueza nova, decorrente do confronto de entradas e saídas, durante um determinado lapso temporal.

Para clarificar a noção de renda e concomitantemente corroborar o entendimento defendido no capítulo precedente, qual seja, de que a liberdade que o legislador infraconstitucional possui de conformação dos preceitos constitucionais deve pressupor um respeito aos princípios basilares contidos na Carta Magna, e que se tal fato não ocorrer, estará a interpretação elaborada pelo legislador sujeita ao crivo do Pode Judiciário, mister se faz a reprodução das palavras de Pedreira (1969, p.21):

"A Constituição Federal autoriza a União a impor tributos sobre a ‘renda e os proventos de qualquer natureza’. No exercício do Poder Legislativo cabe ao Congresso Nacional definir, na legislação ordinária, o que deve ser entendido por renda, para efeitos de tributação. Mas ao definir a renda tributável o Congresso Nacional tem o seu poder limitado pelo sistema constitucional de distribuição de poder tributário, e fica sujeito à verificação, pelo Poder Judiciário, da conformidade dos conceitos legais com os princípios da Constituição. O Congresso pode restringir ou limitar o conceito de renda e proventos de qualquer natureza constante da Constituição, mas não ampliá-lo além dos limites compatíveis com a distribuição constitucional de rendas."

Em derradeiro, nota-se que o legislador ordinário, embora seja incumbido de criar o conceito de renda, não pode fazê-lo sem limites, devendo proceder a uma especificação do conceito observando-se as diretrizes impostas pela lei fundamental, pois do contrário estaria cometendo uma invalidade jurídica, passível de impugnação via judiciário.

Outro exemplo da utilização da interpretação da Constituição conforme a Lei, embora não se utilize propriamente essa denominação, está presente no recentíssimo Informativo nº 556 do Supremo Tribunal Federal, ao tratar de um Embargos de Declaração em Agravo Regimental em Recurso Extraordinário, da relatoria do Ministro Cezar Peluso em que seguradora sustenta que as receitas de prêmios não integram a base de cálculo da COFINS, porquanto o contrato de seguro não envolve venda de mercadorias ou prestação de serviços.

O Min. Cezar Peluso afirmou que o Tribunal estaria sendo instado a definir, de uma vez por todas, o que seria a noção de faturamento constante do art. 195, I, da CF, na redação que precedeu a EC 20/98. Asseverou que a palavra faturamento teria um conceito histórico, e, demonstrando o confronto entre a teoria que entende faturamento como sinônimo de receita de venda de bens e serviços daquela que o considera resultado das atividades empresariais, reputou a segunda mais conforme ao sentido jurídico-constitucional e à realidade da moderna vida empresarial.

Tendo em conta que a doutrina comercialista mais acatada reconhece, há tempos, a relevância da chamada teoria da empresa e que o conceito básico do moderno direito comercial seria o de atividade empresarial, substituindo a velha noção de ato de comércio, assentou o relator que se deveria formular a idéia de faturamento sob a perspectiva da natureza e das finalidades da atividade empresarial e ressaltou que, apesar de faturamento não traduzir conceito contábil preciso, existiria uma noção que poderia auxiliar a exprimir com precisão o significado suposto pela Constituição, qual seja, a Norma Brasileira de Contabilidade - NBC T.3.3, aprovada pela Resolução do Conselho Federal de Contabilidade 686/90, que dispõe que "3.3.2.3 – A demonstração do resultado evidenciará, no mínimo, e de forma ordenada: a) as receitas decorrentes da exploração das atividades-fins;". Tal definição ofereceria um ponto sustentável de partida metodológica para compreender faturamento como expressão da receita advinda da realização da finalidade da empresa ou do seu objeto social.

Percebe-se com isso que o Ministro utilizou-se de uma Resolução para aferir a noção vigente de faturamento, procedendo dessa forma, a nada mais do que uma interpretação da Constituição a partir de uma norma infraconstitucional, ao entender a expressão faturamento como a soma das receitas oriundas das atividades empresariais típicas. Esta grandeza compreenderia, além das receitas de venda de mercadorias e serviços, as receitas decorrentes do exercício efetivo do objeto social da empresa, independentemente do seu ramo de atividade. Dessa forma, através dessa nova noção de faturamento, as receitas decorrentes de prêmios de seguro ou de intermediação financeira seriam passíveis de tributação por PIS e COFINS por se conterem no âmbito do exato conceito de faturamento depreendido da interpretação da norma constitucional a partir da Resolução supramencionada.

Outros exemplos, todavia, podem ser encontrados em outras áreas do direito, podendo-se mencionar aquela expressão contida no § 1º do art 29-A da Constituição Federal [14], com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 25, de 14/02/2000, de se buscar qual o conceito de "folha de pagamento", para se saber quais as parcelas que a integram e se, principalmente, os encargos sociais assumidos por determinada entidade patronal fazem, ou não, parte dela.

Com efeito, o Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999, que aprovou o Regulamento da Previdência Social, dispõe in verbis:

Art.225. A empresa é também obrigada a:

I - preparar folha de pagamento da remuneração paga, devida ou creditada a todos os segurados a seu serviço, devendo manter, em cada estabelecimento, uma via da respectiva folha e recibos de pagamentos;

....................................................................................................

§ 9º A folha de pagamento de que trata o inciso I do caput, elaborada mensalmente, de forma coletiva por estabelecimento da empresa, por obra de construção civil e por tomador de serviços, com a correspondente totalização, deverá:

I - discriminar o nome dos segurados, indicando cargo, função ou serviço prestado

II – agrupar os segurados por categoria assim entendido: segurado empregado, trabalhador avulso, contribuinte individual

III - destacar o nome das seguradas em gozo de salário-maternidade

IV – destacar as parcelas integrantes e não integrantes da remuneração e os descontos legais e;

V – indicar o número de quotas de salário-família atribuídas a cada segurado empregado ou trabalhador avulso

Os encargos sociais, como se pode verificar, não se incluem dentre os elementos componentes da folha de pagamento.

Por isso a Lei Complementar nº 96/99, distinguiu com absoluta clareza, os conceitos de despesa com pessoal, que são próprias da folha de pagamento, e de despesas totais com pessoal, estando neste abrangidas tanto as despesas constantes da folha de pagamento quanto aquelas concerntes aos encargos sociais e contribuições recolhidas às entidades de previdência.

Por conseguinte, resta evidenciado que o limite de 70% da receita com folha de pagamento, não alcança os encargos sociais, pois se assim não fosse, o legislador teria inserido no texto do art 29-A

§ 1º da CF a expressão "inclusive os encargos sociais".

Interessante também é a questão enunciada no Inquérito nº2044 – QO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, que trata da competência do Supremo Tribunal Federal para julgar crime cometido por Secretário Especial de Aquicultura e Pesca, declarando o Pretório Excelso sua incompetência para tal fato, por não poder tal secretário ser equiparado ao cargo de Ministro de Estado.

A Suprema Corte nacional, embora seja a última instância do Poder Judiciário pátrio, é a competente para processar e julgar, nos crimes comuns, em única instância, diversos membros do primeiro escalão dos diferentes poderes. No caso ora em tela, o réu passou a exercer o cargo de Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República, usando como argumento o fato de que a Lei 11036, de 22 de dezembro de 2004, estendeu o status de Ministro de Estado, alterando a redação do parágrafo único do art. 25 da Lei 10683 [15], e também o artigo 38 da Lei 10683 e seu §1º [16].

Como se vê, os referidos artigos e parágrafos retratam um exemplo de interpretação da Constituição conforme a Lei, já que o texto constitucional não fala quem são os Ministros de Estado, sendo o legislador ordinário o responsável a proceder a tal especificação.

Todavia, afirmamos no capítulo precedente que essa liberdade que o legislador possui não é ilimitada, devendo-se ter sempre a Lei Fundamental como diretriz, e se em algum momento o legislador infraconstitucional extrapolar essa sua função, essa poderá e deverá passar pelo crivo do Judiciário, que declarará, dessa forma, inconstitucional a atuação legislativa. Tal foi o que se sucedeu no caso em exame.

O Excelentíssimo Ministro Sepúlveda Pertence utilizou como fundamentação a sustentação proferida pelo Ministro Celso de Mello em um caso precedente, no qual o mesmo, utilizando a Medida Provisória nº1498-22 de 02.10.1996, fez um diferenciação entre quais sejam propriamente os Ministros de Estado e quais são aqueles cargos os quais a mesma Medida Provisória atribuiu "prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado" [17].

Vislumbra-se apropriado nesse momento, transcrever um trecho do voto do Ministro Celso de Mello, citado pelo Ministro Sepúlveda Pertence no seu voto do Inquérito 2044-QO:

"A União Federal, ao dispor sobre a organização administrativa do Poder Executivo, estabeleceu, em medida provisória editada pelo Presidente da República, que os Ministérios são unicamente aqueles relacionados no art. 13 da MP nº1498-22 de 02.10.96

...................

O preceito legal em questão é bastante enfático a esse respeito: ‘São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, da Casa Civil da Presidência da República e do Estado Maior das Forças Armadas.

A MP nº1498-22, no entanto, atribui aos titulares de determinados cargos públicos as ‘prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado’ (art 23).

A norma em questão, portanto, precisamente por reconhecer que os ocupantes dos cargos de natureza especial não são Ministro de Estado, estendeu-lhes regime jurídico equivalente ao que se aplica àqueles altos agentes políticos incumbidos, constitucionalmente de auxiliarem o Presidente da República na condução dos negócios de Estado e da Administração Pública.

....................

Parece certo que essa extensão meramente legal de prerrogativas próprias de Ministro de Estado, beneficiando quem não ostenta essa elevada condição formal, deve ter repercussão na esfera administrativa, financeira e protocolar, não se projetando, contudo, na dimensão estritamente constitucional.

É que a Constituição da República, ao dispor sobre o estatuto jurídico concernente ao Ministro de Estado, prescreveu regras e estabeleceu normas que só se aplicam àqueles que sejam qualificados como Ministros de Estado.

Isso significa que somente quem é Ministro de Estado (MP nº1498-22 art13 parágrafo único) – e não quem a este foi meramente equiparado para efeitos administrativos, financeiros e protocolares – submetem-se à disciplina constitucional própria desses qualificados auxiliares do Chefe do Poder Executivo da União.

Dentro desse contexto, somente o Ministro de Estado – vale dizer, os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil da Presidência da República e o Chefe da EMFA (MP nº1498-22 art13 parágrafo único) – dispõe de prerrogativa de foro ratione muneris perante o STF." [18]

Outra não é a opinião de Oliveira (2008) que corrobora o entendimento do Min. Sepúlveda Pertence, ao visualizar manifesta inconstitucionalidade na equiparação das diversas Secretarias a Ministérios, por entender que tais Secretarias seriam meros órgãos de feições exclusivamente administrativas e também porque não se poderia deixar a cargo da Administração Pública Federal o poder de identificar as funções merecedoras de tratamento privilegiado na Constituição, uma vez que o privilégio de foro do Presidente, de seu Vice e dos Ministros de Estado obedece a um critério racional de organização administrativa em função da chefia do Executivo, não devendo tal fato ser alargado às inúmeras Secretarias existentes [19].

Podemos claramente dizer que esse último exemplo é a síntese do que se pretendeu esboçar ao longo deste trabalho. Com ele, percebemos que o conceito de "superconstituição" (uma Constituição extremamente "pura", completamente independente da legislação infraconstitucional) elaborado por Leisner, e já anteriormente debatida, não se coaduna com a real compreensão que deve ser concedida aos preceitos constitucionais, que de forma alguma podem abdicar da importância da legislação infraconstitucional e o seu maior contato com o cotidiano e suas constantes transformações. A evolução das relações político-econômico-sociais impõe a ocorrência de mudanças na interpretação dada a muitos dos preceitos presentes na Lei Fundamental, sendo ilustrativa a questão do Presidente do Banco Central já possuir status de Ministro de Estado, e, consequentemente, foro privilegiado para julgamento no Supremo Tribunal Federal, devido à importância que tal cargo desempenha em um capitalismo de mercado, como é o que vivemos atualmente.

A Constituição, como Lei Superior que é, não pode ficar condicionada, durante sua vigência, unicamente aos ideais presentes no momento de sua elaboração, sob pena de perder sua eficácia e força atuante, não refletindo, consequentemente, as modificações e o novos anseios da sociedade.

O exemplo anteriormente citado é importante também por demonstrar o papel a ser desempenhado pelo Tribunal Constitucional, que deve declarar inconstitucional a interpretação legislativa que, incorrendo em excessos, não se coaduna com os princípios fundamentais da Lei Superior, extrapolando os limites concedidos à atuação legislativa, ressalvando a opinião que propugna pela constitucionalidade da referida ampliação do status de Ministro.

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Sobre o autor
Mathias Vargas Pereira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Mathias Vargas. Interpretação da Constituição conforme a lei entendida como liberdade de conformação do legislador dos preceitos constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2783, 13 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18486. Acesso em: 24 nov. 2024.

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