O artigo 62 da Constituição de 1988 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a figura da medida provisória e atribuiu ao Presidente da República competência excepcional, exclusiva e originária para editá-la. Mas esta não é, nem poderia ser, ilimitada e irrestrita. Sua existência condiciona-se à configuração prévia do estado de necessidade legislativo (*), mais especificamente, nos termos constitucionais, aos pressupostos de relevância e urgência. Estes, como bem afirma respeitável doutrina e jurisprudência, se encontram na esfera discricionária de juízo político do Chefe do Executivo, mas não fogem da possibilidade de controle a posteriori dos demais Poderes.
A manifestação imprescindível e insubstituível do Congresso Nacional acerca das medidas provisórias decorre do princípio da separação dos poderes (art. 2º/CF) e de expressa previsão constitucional (art. 62/CF). Ela pressupõe formulação de novo juízo sobre os requisitos e o conteúdo da medida, podendo o Parlamento rejeitá-la pela ausência ou discordância de qualquer um deles, independentemente de motivação ou aviso prévio. Ao Poder Legislativo cabe, pois, analisar sua constitucionalidade formal (presença dos pressupostos) e material (adequação do conteúdo aos preceitos da Lei Maior), assim como seu mérito, devendo-se entender, por este último, a oportunidade do ato frente ao desiderato congressual.
Não obstante o controle ordinário exercido pelos representantes do povo, é possível e salutar que, provocado, também o exerça o Poder Judiciário (art. 97; 102, I, a, e III, a/CF), pois que de sua apreciação não se excluirá qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV/CF). Este controle se efetiva por duas vias: a difusa não se aplicando a norma ao caso concreto (eficácia inter partes), visando apenas a proteção do indivíduo e realizável por qualquer juiz investido e a concentrada eliminando-se o diploma legal do ordenamento (eficácia ex tunc e erga omnes) mediante um juízo abstrato de compatibilidade entre norma e Constituição, competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal.
Em se tratando de controle concentrado, o STF, representante máximo do poder judicante, age como guardião da Constituição, realizando uma verdadeira atividade legislativa negativa (Kelsen). Nesse sentido, o próprio Tribunal admitiu, "no controle abstrato de normas", ensejar "desempenho de típica função política e de governo" (ADInMCAgR 203). É exatamente no exercício dessa atividade jurídico-política que se insere a principal possibilidade de controle judicial dos pressupostos de relevância e urgência das medidas provisórias. No entanto, por serem conceitos jurídicos indeterminados, detentores de grande relatividade, com um altíssimo grau de importância e significado políticos, a avaliação e circunscrição dos pressupostos é bastante complexa e trabalhosa, tanto para o Legislativo quanto para o Judiciário (Engish). Essas características, aliadas à natural prudência do Tribunal Constitucional, revelaram-se, até recentemente, um intransponível obstáculo ao controle dos pressupostos das legislações de urgência.
À época do decreto-lei da Constituição de 67/69, o Colendo Tribunal entendeu "que a apreciação da urgência ou interesse público relevante assume caráter político: é urgente ou relevante o que o Presidente entender como tal, ressalvado que o Congresso pode chegar a julgamento de valor contrário, para rejeitar o decreto-lei. Destarte, não pode haver revisão judicial desses dois aspectos entregues ao discricionarismo do Executivo, que sofrerá apenas correção pelo discricionarismo do Congresso" (Aliomar Baleeiro. RE 62.731 e 62.739/67). Não obstante a negativa de análise dos pressupostos do decreto-lei no caso sub judice, por discricionários, ainda assim, no mesmo voto, pronunciou-se sobre o que era, ou não, segurança nacional, extraindo seu significado e limites do próprio Texto Maior.
A decisão supra referida revela antes um posicionamento cauteloso do que uma impossibilidade jurídica propriamente. Tanto assim o é que, na Representação n.º 700 de 11/08/67, a Excelsa Corte não só analisou o que era relevante, como utilizou-se do conceito de urgência para justificar a inexistência de embargos em processos de intervenção federal, reafirmando que "a prerrogativa do Supremo Tribunal, em tal matéria, não pode ser cerceada por qualquer forma de lei ordinária". Resta claro, pois, a desenvoltura com que o Colendo Tribunal trabalhava e se valia de tais noções, juridicamente indeterminadas, para balizar algumas de suas decisões, resguardando-se de analisá-las apenas quando referentes ao decreto-lei. Essa posição absenteísta de nossa Corte Suprema perdurou até 88, mesmo sendo ferrenhamente combatida por grandes doutrinadores, como Geraldo de Ataliba. Com o advento da nova ordem constitucional e a criação de dois institutos, a medida provisória em substituição ao decreto-lei e a ação direta de inconstitucionalidade em substituição à representação de inconstitucionalidade , iniciou-se um importante processo de mudança na orientação jurisprudencial no tocante ao controle da legislação de urgência e de seus pressupostos.
Na ADInMC n.º 162, de 14/12/89, invocando Ruffia, a Corte prevê, pela primeira vez, a possibilidade de analisar os pressupostos de uma medida, desde que esteja configurado claramente o abuso ou desvio de poder, ainda assim, em hipóteses excepcionalíssimas. Já em 1990, por ocasião da ADInMC n.º 293, o Tribunal Constitucional, liderado pelo então Ministro Relator Celso de Mello, sinalizou pela adoção de um papel mais ativo em relação ao tema das medidas provisórias, demonstrando em diversos graus o interesse em melhor analisá-las e limitá-las. Em voto revelando vasto estudo sobre assunto, o Relator esmiuçou o instituto e concluiu que mesmo sendo o Presidente "o árbitro inicial da conveniência, necessidade, utilidade e oportunidade de seu exercício", essa circunstância não subtrairia "ao Judiciário o poder de apreciar e valorar, até, se for o caso, os requisitos constitucionais de edição das medidas provisórias. A mera possibilidade de avaliação arbitrária daqueles pressupostos, pelo Chefe do Executivo, constitui razão bastante para justificar o controle jurisdicional". Lamentavelmente, apesar de a cautelar suspensora da eficácia da medida em questão ter sido deferida por unanimidade, não o foi por violação aos pressupostos constitucionais, antessim por ser uma anomalia jurídica a reedição de medida provisória expressamente rejeitada pelo Congresso.
Em inúmeras oportunidades, mediante outras Ações Diretas, questionou-se a existência dos pressupostos. No entanto, o STF jamais foi além da mera previsão da possibilidade de seu controle, reiterada nas ADIns n.º 1.130, 1.397 e 1.647, mas até então nunca concretizada. Apenas dez anos após a entrada em vigor da Constituição, é que, finalmente, se realizou, na ADInMC n.º 1.753 de 16/04/98, o efetivo controle, em sede de liminar, fundamentando-se principalmente na ausência de um dos pressupostos essenciais à medida, seja ele a urgência. A propósito do julgamento, assim se posicionou o Ministro Relator Sepúlveda Pertence, para quem se "já se formou coisa julgada [...] a medida provisória já não pode alegar urgência, porque terá chegado tarde demais". No mesmo sentido, sustenta o Ministro Marco Aurélio que " a alteração de normas instrumentais não se faz em regime de urgência". Conseqüentemente, decidiu a Turma suspender, ad cautelam, a eficácia do diploma provisório. Este julgado demonstra a sedimentação de uma guinada na orientação de nossa Corte Superior.
Mesmo tendo a ADIn n.º 1.753 sido julgada prejudicada, após uma questão de ordem do relator, em que se negou a possibilidade de aditamento, esta decisão já se tornou um leading case, que deve orientar e embasar futuras impugnações a outras medidas que não se revistam de seus requisitos extrínsecos, em clara afronta ao Estado de Democrático de Direito (art. 1º/CF), ao princípio da separação dos poderes (art. 2º/CF) e ao artigo 62 da Carta Maior.
Os mais céticos podem indagar se a ingerência do Judiciário em tais questões políticas não poderia acarretar morosidade nas providências de urgência ou mesmo distorções no sistema de repartição de funções estatais, ainda mais tendo em vista o quadro preocupante dos partidos políticos e a dinâmica congressual no Brasil. No nosso ver, há de se reconhecer que as exigências do Estado de Direito acarretam, principalmente em casos como este, dificuldades para a execução de decisões políticas, que, por isso, tornam-se caras e demoradas. No entanto, bem como afirma Kimminich: "Evidentemente, essa não é a finalidade do Estado de Direito, mas o preço que se há de pagar pela sua existência".
NOTA
(*) BRASIL. Decreto 1.937, de 21/06/96. Art. 22, § 1º: "O estado de necessidade legislativo caracteriza-se pela exigência ou indispensabilidade de tomada de providência de índole legislativa com efeito imediato, sob pena de se verificarem prejuízos de ordem administrativa, econômica, social ou de segurança pública." Esse decreto regula o envio de projetos de medidas provisórias pelos Ministros para a Casa Civil. Se não foi revogado ainda, talvez fosse uma boa idéia o Congresso copiar o modelo ali estabelecido e começar a exigir a presença de exposição de motivos nas medidas provisórias emanadas pelo Executivo, o que facilitaria, em muito, o controle abstrato dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência a ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal; e dificultaria o abuso de tais medidas.