INTRODUÇÃO
A realização de negócios jurídicos, em sua mais variada modalidade tem permitido, ao longo dos tempos, que a economia de várias civilizações se desenvolvesse de forma mais segura e dinâmica, proporcionando, não raras vezes, desenvolvimento social.
É certo também que a destinação clássica dos contratos concebida pelos Códigos Oitocentistas, notadamente o Código Napoleônico, de que os contratos deveriam destinar-se prioritariamente à circulação de riquezas e desenvolvimento da economia, não pode ser considerada como desatualizada.
A despeito das significativas mudanças experimentadas pelo direito contratual no decorrer das últimas décadas, notadamente no que tange à modificação, pela intervenção estatal, da manifestação de vontade, é fato que a economia e o contrato estão umbilicalmente vinculados, pois é através deste que aquela se desenvolve. Isso porque os contratos são a forma pela qual se exterioriza, torna-se concreta no plano físico, a intenção das partes em realizar determinado negócio jurídico.
E da mesma forma estão vinculados a segurança jurídica e a garantia que se deve conceder a todos aqueles envolvidos nas relações jurídicas, pena de os contratos não alcançarem seu desiderato precípuo, que atualmente pode ser considerado como a geração e circulação de riquezas de forma equânime, realizando a justiça distributiva.
A prosperidade de uma nação, dentre outros fatores, está ligada à segurança que se espera e alcança com relação a dois institutos fundamentais: o respeito do direito de propriedade e aos contratos.
É somente com esse respeito aos contratos e ao direito de propriedade, especialmente em um mundo absolutamente globalizado, em que a velocidade das comunicações diminuiu sobremodo as distâncias, que uma sociedade poderá criar bases sólidas para o desenvolvimento sustentável de sua economia.
Nesse passo, todo e qualquer instituto de direito que guardar correlação com a segurança jurídica nos contratos sobreleva em importância.
Nesse sentir, é de se concluir que os vícios redibitórios são de suma importância para o direito contratual, porquanto neles se encerra a idéia de garantia, de respeito ao princípio da boa-fé objetiva [01], e ainda, de vedação ao enriquecimento sem causa [02], indispensáveis para a criação de uma relação contratual segura e justa.
No Código de 1916 os vícios redibitórios eram regulados no capítulo relativo à compra e venda, porquanto era nessa modalidade de negócio jurídico que se encontram os casos mais comuns.
Não havia justificava, todavia, para que se mantivesse a técnica adotada na vetusta legislação, pelo que o legislador de 2002, atenta e corretamente, transportou o instituto [03] para o capítulo que trata da teria geral dos contratos.
O acerto da modificação realizada pela atual legislação encontra respaldo no exemplo das doações onerosas, em que a liberalidade, ínsita àquela modalidade negocial, cede espaço para a onerosidade decorrente de qualquer contrato comutativo, quando então será possível cogitar da responsabilidade pelos vícios redibitórios.
Considerando-se que a ocorrência dos vícios redibitórios não pressupõe responsabilidade civil [04], pois não há ilícito em sua caracterização, mas simples responsabilidade decorrente do contrato firmado, é possível afirmar que o instituto se fundamenta na necessária boa-fé objetiva que deve nortear toda e qualquer relação jurídica, mormente após a positivação do preceito no art. 422 do Código Civil, bem ainda no respeito ao princípio da garantia.
As inovações em relação aos vícios redibitórios, todavia, não se circunscrevem em sua nova alocação, agora no capítulo da teoria geral dos contratos, mas em significativas alterações de técnica da redação, que, contudo, não trouxeram respostas necessárias a problemas desde antes discutidos, e, ainda, deixaram de tratar de temas importantes, fazendo perpetuar dúvidas e discussões que poderiam ter sido solucionadas pelo novo tratamento do instituto.
O objetivo deste trabalho é a análise de alguns pontos polêmicos trazidos pelo Código Civil de 2002 quanto aos vícios redibitórios, que não necessariamente infirmam a importância do instituto ou das modificações realizadas, mas sim as reforçam.
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O INSTITUTO DOS VÍCIOS REDIBITÓRIOS
É inolvidável que a importância dos vícios redibitórios reside em fornecer garantia aos negócios realizados entre particulares, notadamente no que tange à preservação das características dos bens deles objeto.
É o princípio da garantia que fundamenta o instituto, portanto, de que todo aquele que adquire um bem a título oneroso deve obter a exata correspondência com o sacrifício despendido para a aquisição.
De outro lado, é também inafastável a conclusão de que, em respeito inequívoco e inafastável à boa-fé objetiva, aquele que transfere bem a título oneroso tem obrigação de responder pela sua qualidade e a preservação das características.
Aliadas essas duas circunstâncias consegue-se encontrar a sistemática dos vícios redibitórios, no que diz respeito à garantia exigida pelo legislador.
Arnoldo Wald [05] ensina que a proteção do equilíbrio das prestações, nos contratos comutativos, e da boa-fé dos contratantes em todos os negócios jurídicos impôs àquele que entrega determinado objeto a obrigação de responder pelos defeitos e vícios não só do direito transferido (responsabilidade pela evicção) como da própria coisa, quando não perceptíveis por quem recebeu o bem.
O art. 441 do Código Civil, ao contrário de outros que não primam pela clareza dos conceitos de determinados institutos [06], traz definições precisas e importantes a respeito dos vícios redibitórios ao estabelecer que a coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitado por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor, tratando das principais características.
A primeira observação diz respeito aos contratos a que se aplicam: comutativos.
Como é sabido, dentre as várias classificações dos contratos, existem os comutativos ou sinalagmáticos e os aleatórios.
Os primeiros (comutativos) têm por principal característica a equivalência entre as prestações, bem como o conhecimento prévio por parte dos contratantes de todas as obrigações assumidas, e ainda, os direitos decorrentes da compra e venda. Essa modalidade negocial encontra na compra e venda seu mais expressivo exemplo [07].
Os contratos aleatórios, por outro turno, têm na dúvida, na incerteza, na álea, seu principal elemento. Em verdade, é justamente o risco sobre a existência ou não do bem, e ainda, de sua quantidade no porvir, que leva os contratantes a celebrarem os negócios. O contrato de seguro [08] é importante exemplo dessa modalidade negocial, pois nesse negócio há absoluta incerteza com relação à equivalência entre o pagamento realizado e à utilização do serviço.
Pela leitura do art. 441 do Código Civil é possível concluir que o legislador não pretendeu açambarcar os contratos aleatórios com a aplicação dos vícios redibitórios, porquanto foi inequivocamente expresso ao afirmar que somente nos contratos comutativos poderá a coisa ser enjeitada por defeitos ocultos que a tornem imprópria ao fim colimado, ou causem significativa redução de valores.
E a restrição à aplicação do instituto aos contratos comutativos é compreensível e de simples explicação. Como os vícios redibitórios são defeitos ocultos encontrados na coisa, preexistentes e muitas das vezes desconhecidos mesmo pelo alienante, é possível afirmar que eles somente podem ter ocorrido em bens existentes ao momento da negociação.
Essa hipótese não ocorre no caso dos contratos aleatórios. Tanto na previsão do art. 458 quanto do art. 459, do Código Civil, é possível constatar que a essência dessa modalidade negocial repousa na inexistência da coisa no momento da celebração do negócio.
Caio Mario da Silva Pereira [09] ensina que são aleatórios os contratos em que a prestação de uma das partes não é precisamente conhecida e suscetível de estimativa prévia, inexistindo equivalência com a da outra parte.
No primeiro caso (contrato emptio spei) o risco assumido pelos contratantes é com relação à existência da coisa em si, de modo que ficam obrigados ao pagamento, ainda que nada venha a existir. No segundo caso (emptio rei speratae), a dúvida reside na quantidade e não na existência em si.
Como somente os defeitos preexistentes à negociação podem ser considerados para fins de aplicação do instituto, por aplicação de lógica irrefutável nos contratos aleatórios não é permitida sua invocação.
Ademais, permitir a invocação dos vícios redibitórios nos contratos aleatórios seria aumentar sobremodo os encargos e riscos já assumidos por aquele que firma contrato dessa natureza, que além de garantir a existência ou determinada quantidade de produto ou coisa, tenha de se resguardar com relação à qualidade do bem que está porvir.
Para solapar qualquer dúvida a respeito da inaplicabilidade dos vícios redibitórios aos contratos aleatórios é importante mencionar que o legislador não lança mão de palavras inúteis no texto e não foi por outra razão que expressamente mencionou que os vícios redibitórios somente se aplicam aos casos de contratos comutativos.
Aplica-se aqui o brocardo verba cum effectu, sunt accipienda [10].
Por esses argumentos é possível afirmar que somente aos contratos comutativos é que se pode aceitar a aplicação dos vícios redibitórios, não sendo equivocado afirmar que nesse caso a literalidade das palavras utilizada pelo legislador é objetivamente no sentido de impedir sua aplicação aos contratos aleatórios.
A segunda menção importante trazida no art. 441 do Código Civil diz respeito aos defeitos, que obrigatoriamente devem ser ocultos e preexistentes.
Não se pode conceber determinado contratante responder por vícios redibitórios de defeitos que venham a existir somente após a tradição, ou ainda, que mesmo preexistentes, eram notáveis a uma singela análise.
A máxima res perit domino, que poderia pressupor relativização quando se trata de vícios redibitórios, em verdade não ocorre, antes é reforçada em sua essência conceitual pelo art. 444 do Código Civil, que dispõe que a responsabilidade do alienante subsiste ainda que a coisa pereça em poder do alienatário, se perecer por vício oculto, já existente ao tempo da tradição
Como se trata de defeito preexistente o entendimento adequado é de que o vício já existia à época da negociação em que se deu a tradição, mas somente ainda não tinha se demonstrado.
Assim, é correto afirmar que a coisa já havia perecido nas mãos do dono, porquanto o defeito já existia, somente não se tinha mostrado, de modo que é possível afirmar que a exteriorização dos efeitos não é requisito ou justificativa para eximir a responsabilidade do antigo proprietário.
A dificuldade na constatação do defeito também é pressuposto para a invocação do instituto. Não se pode admitir que o contratante, analisando e inspecionando o bem que é objeto de negociação não tenha notado defeitos aparentes que se constatam pela simples vistoria [11].
Os defeitos ocultos de que trata o art. 441 do Código Civil são aqueles imperceptíveis à análise normal em qualquer tipo de negócio, valendo aqui a aplicação do conceito "homem médio".
Nelson Nery Júnior [12] ensina que vícios ocultos consideram-se aqueles que não impressionam diretamente os sentidos, bem assim os que o comprador, sem esforço, com a vulgar diligência e atenção de um prudente comerciante, não pode descobrir com um simples e rápido exame exterior da mercadoria, no ato da recepção desta, posto que se revelem mais tarde pela prova, pela experiência, ou pela abertura invólucros.
Feitas essas considerações é possível afirmar que somente aqueles defeitos que não poderiam ter sido notados quando da aquisição do bem é que podem ser utilizados como fundamento para a reclamação por vícios redibitórios.
Como a norma não traz regra clara a respeito do que se pode entender por defeitos ocultos, além do que seja possível alcançar pela sua interpretação, é importante levar em consideração a modalidade negocial levada a efeito, a condição das partes envolvidas, seus conhecimentos específicos a respeito do objeto de negócio, enfim, as circunstâncias do caso concreto, sendo possível afirmar, de antemão, que não se pode exigir em demasia conhecimentos e posturas por parte do comprador, pena do instituto não ser utilizado da forma adequada.
Ainda na análise do art. 441 do Código Civil e dos elementos por ele trazidos, é possível afirmar que não é qualquer defeito que legitima a reclamação pelos vícios redibitórios, mas somente aqueles que tornem a coisa imprópria ao uso ao qual é destinada ou lhe diminuam o valor.
Essa última parte do art. 441 do Código Civil declina os efeitos da constatação do defeito que permitem a via da ação redibitória ou quanti minoris.
Verifica-se que o legislador preferiu tratar somente dos defeitos consideráveis, entendidos estes, conforme a previsão legal, como aqueles que tornem a coisa imprópria ao uso ao qual é destinada ou que lhe tragam importante redução de valor.
De se considerar, portanto, que somente defeitos significativos devem ser considerados.
Caio Mario da Silva Pereira [13] ensina que não é qualquer defeito que fundamenta o pedido de efetivação do princípio, porém aqueles que positivamente prejudicam a utilidade da coisa, tornando-a inapta às suas finalidades, ou reduzindo a sua expressão econômica.
Admitir que qualquer tipo de defeito, mesmo que não afetando diretamente as qualidades da coisa ou o seu preço, autorizem a reclamação por vícios redibitórios é permitir àqueles que, por mero espírito emulativo, pretendam obter vantagem indevida na relação jurídica ajam sem maiores restrições, fomentando a insegurança jurídica e insatisfação social.
Daí porque o princípio da insignificância se aplica aos vícios redibitórios, sendo motivo do julgamento de improcedência de ação ajuizada com esse fundamento. Silvio de Salvo Venosa [14] inclusive menciona que defeitos irrelevantes, que não alteram a destinação da coisa, nem seu preço, não são considerados vícios.
É ainda Silvio de Salvo Venosa [15] que traz exemplo importante para auxiliar na identificação do que se pode entender por defeito relevante no que diz respeito aos seus efeitos, ao afirmar que o defeito deve ser grave. E deve ser de tal importância que, se dele tivesse tomado conhecimento anteriormente o adquirente, o contrato não teria sido concluído.
De modo que somente os vícios que efetivamente retirem as qualidades da coisa, ou que tragam significativa redução de seu valor é que podem fundamentar a ação prevista no art. 441 do Código Civil.
Importante ainda frisar que os vícios redibitórios não se tratam de responsabilidade civil, bastando a leitura do art. 442 do Código Civil para que se alcance essa conclusão.
Poder-se-ia suspeitar, com maior razão ainda argumentar, que os vícios redibitórios seriam inadimplemento contratual, tendo em vista que o alienante tem o dever de resguardar o adquirente em relação às qualidades da coisa e que, constatado o defeito posteriormente, com a ocorrência das situações previstas no art. 441 do Código Civil, seria inatacável o argumento de que houve quebra de contrato, incidindo todas as normas previstas nos arts. 389 e 402 do Código Civil.
O argumento, todavia, não resiste a uma análise mais aprofundada. Quando se trata de vícios redibitórios verifica-se, desde os primeiros trabalhos realizados no direito romano, que não se busca na postura do alienante qualquer traço de conduta que caracterize quebra de contrato, mas sim responsabilidade pelas qualidades da coisa que é objeto de transferência.
O alienante responde, independentemente de conhecimento prévio pelas condições da coisa, pela impossibilidade de se alcançar a utilidade proposta, ou ainda, pela redução significativa do valor. O seu conhecimento prévio somente é requisito para que, além de ter de aceitar a rejeição da coisa ou fornecer o abatimento proporcional do preço, também seja condenado ao pagamento das perdas e danos daí correspondentes.
Isso porque em respeito ao princípio da boa-fé objetiva não se pode aceitar que o alienante, ciente de defeitos ocultos preexistentes na coisa, não alerte o adquirente nesse sentido, permitindo, de forma consciente, a quebra do sinalagma existente no contrato comutativo. Postura como essa é manifesto desrespeito ao princípio previsto no art. 422 do Código Civil, de que as partes devem guardar, assim na conclusão como na execução do contrato, a boa-fé e a probidade.
Verificados os vícios redibitórios, duas as alternativas que se abrem para o adquirente: ou rejeitar a coisa [16], rescindindo o contrato, ou então, receber desconto proporcional à desvalorização experimentada pelo problema constatado [17].
Arnoldo Wald [18] menciona que o direito romano concedia ao adquirente duas ações: a ação redibitória, para rescindir o contrato de compra e venda, e a ação quanti minoris ou estimatória, para obter a redução do preço, fixando prazos curtos para o seu exercício, e devendo o interessado optar por uma delas, não podendo evidentemente acumulá-las.
Essa situação ainda permanece inalterada no direito atual. Tanto o art. 441, quanto o art. 442, do Código Civil, permitem as duas vias ao adquirente, à sua escolha.
Na primeira hipótese (ação redibitória) trata-se de rescisão do contrato, porquanto os contratantes retornam ao status quo ante, como se contratado não tivessem. O alienante, por aplicação da regra res perit domino, mencionada expressamente, nesse caso, no art. 444 do Código Civil, arca com as conseqüências do prematuro perecimento da coisa, restituindo os valores pagos em decorrência do negócio.
Na segunda hipótese o adquirente, ao seu livre critério, escolhe pela manutenção do negócio, por que lhe favorável em outras circunstâncias, buscando tão somente a redução do preço, para que seja mantido o equilíbrio econômico do contrato, pois do contrário estaria pagando mais por bem que vale menos.
Importante mencionar que não há ordem de gradação entre as opções dadas ao adquirente, se pela resolução ou pelo abatimento do preço. Pode-se mesmo afirmar que em respeito ao princípio da garantia e da boa-fé objetiva, trata-se de condição potestativa em favor do adquirente, que poderá optar pela melhor solução ao problema que se apresentou na coisa.
Nelson Rosenwald [19] corrobora esse entendimento ao tratar da ação redibitória e afirmar que trata-se de direito postestativo à rescisão contratual. Com efeito, a rescisão se aplica às hipóteses em que a desconstituição da obrigação é fruto de um vício do objeto já existente ao tempo da contratação (v.g., evicção), não se podendo cogitar um inadimplemento ou inexecução – o que caracterizaria a resolução, por força do art. 475 do CC.
As considerações acima, possíveis pela análise do art. 441 do Código Civil, são importantes para que os demais temas objeto deste trabalho possam ser enfrentados e corretamente interpretados, em consonância com os demais dispositivos que tratam do tema.