"Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder." (Ruy Barbosa, 31.03.1899, O Justo e a Justiça Política)
Sob o título "Exame protege o cidadão que precisa de advogado", a Revista Consultor Jurídico publicou, no último dia 3 de fevereiro, um artigo assinado pelo Dr. Marcus Vinicius Furtado Coelho, Secretário-Geral do Conselho Federal da OAB, que já havia publicado antes, na mesma Revista, em dezembro próximo passado, o artigo "Exame de Ordem é constitucional e protege o cidadão". No artigo agora publicado, contudo, para dar maior credibilidade, assinou também o ilustre Presidente do Conselho Federal da OAB, o Dr. Ophir Cavalcante Júnior.
Argumentos jurídicos, neste novo artigo, não existem. Os autores não dizem como seria possível defender a existência de um exame de qualificação, como o da OAB, realizado por um conselho profissional, e não pelo MEC, que teria, este sim, a competência constitucional para essa avaliação, e que existe, esse exame, apenas para os bacharéis em direito, como se um médico incompetente não fosse muito mais perigoso para a sociedade, e como se um engenheiro incompetente não fosse capaz, também, de derrubar um prédio de trinta e cinco andares, causando um enorme desastre, com a perda de centenas de vidas. Bem a propósito, um desastre desse tipo ocorreu há poucos dias em Belém, felizmente em um prédio ainda desabitado, mas não se sabe se houve realmente a falta de qualificação dos profissionais responsáveis pela construção. Não se sabe, também, se a possível existência de um Exame do CREA teria o condão de evitar que esses desastres acontecessem.
Os Drs. Marcus e Ophir, no entanto, além dos mesmos argumentos de sempre, ou seja, os de que existe um número excessivo de faculdades de direito, existem muitas faculdades de péssima qualidade, e o exame da OAB é necessário para combater esse "escandaloso quadro de estelionato educacional", procuraram agora defender o seu Exame com dois argumentos novos: a) os próprios bacharéis que se submetem ao Exame da OAB são favoráveis à sua realização; e b) constitui crime criticar o Exame da OAB, ou tentar ingressar na carreira sem a realização desse Exame!
Vejamos como os ilustres autores usaram esses "argumentos".
No primeiro, disseram eles que, em uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, "junto aos bacharéis em Direito que realizaram a primeira fase do mais recente Exame de Ordem", "foram ouvidos 1.500 bacharéis de Direito em todas as regiões do país", e que essa pesquisa "expõe a majoritária aceitação do Exame de Ordem pelos próprios examinados". Segundo essa pesquisa, "nada menos de 83% dos entrevistados consideraram o exame importante ou muito importante para manter o bom nível da advocacia", e 82% foram favoráveis à realização do exame, enquanto 86% preferiram o modelo unificado em todo o país.
Pois bem. O resultado dessa pesquisa, mesmo que refletisse a realidade, não teria nenhuma importância para a discussão da inconstitucionalidade do Exame da OAB. Isso é evidente. O que é inconstitucional não pode ser necessário, nem nos interessa que seja preferido pela opinião pública. Enquanto o Brasil adotar o princípio da supremacia constitucional, as leis inconstitucionais deverão ser inteiramente nulas e deverão ser derrubadas pelo Judiciário. Não é possível que um advogado use esse tipo de argumento: a lei é inconstitucional, mas é necessária, e as próprias vítimas concordam com a sua necessidade!
Mas eu tenho dúvidas a respeito dessa pesquisa, realizada pela própria FGV – parte interessada no processo – e respondida pelos candidatos inscritos no Exame (veja aqui).
Se essa pesquisa fosse verdadeira, como seria possível explicar os resultados de uma outra pesquisa realizada, na mesma época, pelo Portal de Notícias do Senado Federal, na qual apenas 5,7% dos votos foram favoráveis à manutenção do Exame da OAB? Nesta pesquisa, aliás enquete, votaram 167.355 pessoas, enquanto na pesquisa da FGV foram ouvidos, supostamente, apenas 1.500 bacharéis. (veja aqui a enquete do Senado – clique em Exame de Ordem - OAB)
Aliás, o Exame 2010.2, que reprovou quase 90% dos candidatos inscritos, vem sendo questionado na justiça, e o MPF ingressou com Ações em vários Estados, para exigir da OAB/FGV uma nova correção das provas, que atenda ao disposto no Provimento nº 136/2009 e ao Edital do "concurso". Será que aqueles bacharéis ouvidos na pesquisa da FGV ainda não mudaram de opinião?
Mas a própria OAB, que afirma ser majoritária a aceitação do Exame de Ordem pelos próprios examinados, se contradisse, em recente petição de suspensão de segurança (veja aqui - SS4321), ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, contra uma decisão do TRF da 5ª Região, quando afirmou que teme "uma enxurrada de ações judiciais com idêntico objeto tão logo finalize o recesso de natalino" e concluiu, dizendo que:
"Pelo exposto, é imperiosa a necessidade de suspensão imediata e liminar dos efeitos da r. decisão concedida pelo Desembargador Federal Vladimir Souza Carvalho, da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, nos Autos do Agravo de Instrumento nº 0019460-45.2010.4.05.0000, uma vez que restam claros e comprovados (sic) a violação perpetrada à ordem pública, jurídica e administrativa da OAB." (grifos e erros do original)
Mas o segundo "argumento" dos ilustres autores é ainda pior. Dizem eles:
"Infelizmente, alguns bacharéis menos avisados tornam-se presas fáceis dos artifícios montados pelos opositores do Exame e buscam a todo custo forçar uma situação que lhes permitam (sic) ingressar na carreira, incorrendo prematuramente no grave delito de burlar a legislação federal (Lei 8.906), segundo a qual a Exame é necessário para o exercício da Advocacia."
Afinal de contas, o que será que eles querem dizer com isso?
Quais seriam esses "artifícios montados pelos opositores do Exame"?
Será que peticionar em defesa de direitos pode ser rotulado como artifício?
Será que ingressar em juízo contra uma norma inconstitucional é "forçar uma situação"?
E desde quando constitui crime dizer que o Exame da OAB é inconstitucional, ou peticionar ao Judiciário, alegando a sua inconstitucionalidade?
Eu desconheço, até esta data, a existência de qualquer lei que tenha tipificado esse crime. A não ser que tenha sido uma decisão do Conselho Federal da OAB, se ele já tiver competência para tanto. Ou, talvez, um anteprojeto da OAB, que será aprovado com efeito retroativo, pelo Congresso Nacional.
Os ilustres autores deveriam saber que "não haverá crime sem prévia cominação legal", no enunciado que já existe desde 1.764, com a obra do jurista italiano Cesare Bonesana Beccaria, "Dos Delitos e das Penas", e que no Brasil é hoje cláusula pétrea, porque integra o catálogo de direitos fundamentais do artigo 5º de nossa Constituição.
Os autores deveriam saber, também, que não é permitido acusar alguém da prática de um crime, e muito menos da prática de um "grave delito". Aliás, o que seria isso? Talvez uma modalidade qualquer de crime hediondo?
Confesso que fiquei bastante preocupado, porque não sei se cometi "o grave delito de burlar a Lei 8.906", ou se, como opositor do Exame, contra o qual já escrevi inúmeros artigos, eu poderia ser acusado de "montar algum artifício", concorrendo assim para a prática do crime de burlar a Lei 8.906, e incorrendo, portanto, nas mesmas penas previstas para quem pratica esse crime. Pensei, mesmo, na possibilidade de manejar um pedido de explicações, para que pudessem ser esclarecidas todas essas dúvidas.
No entanto, partindo de quem partiram essas acusações, desisti, porque é muito possível que elas sejam verdadeiras, e que exista, realmente, esse crime, tipificado já, em alguma legislação esparsa. Confesso a minha ignorância, que evidentemente não será capaz de justificar o meu "grave delito", mas prometo que, de hoje em diante, vou dizer que o Exame da OAB é necessário.