3.É Possível ou Viável Uma Teoria da Justiça no Século XXI?
Pensamos que a sustentabilidade, segundo os traços acima, provocará uma guinada paradigmática nas teorias da justiça e novas formas de partilhas de bens devem ser construídas.
Não se busca válvulas corretivas insuficientes como o ‘princípio da diferença’ de Rawls, a fórmula dos ‘seguros’ de Dworkin ou o ‘ajuste único’ de Nozick, mas melhores arranjos, ainda que contingentes, a começar pelas famílias, comunidades locais, regionais, nacionais e globais. A escuta da palavra deve ser de cada ser em sua manifestação real, originária.
Observa-se com Kimlicka que ao lado do recurso mais antigo à ‘igualdade’ (socialismo, na sua vertente radical) e ‘liberdade’ (libertarismo, em sua vertente radical), as novas teorias políticas recorrem a valores fundamentais, como a ‘concordância contratual’ (Rawls), do ‘bem comum’ (comunitarismo), da ‘utilidade’ (utilitarismo), dos ‘direitos’ (Dworkin) ou da ‘androginia’ (feminismo) [11].
Há, dessa forma, uma explosão de valores fundamentais que impedem qualquer projeto de desenvolvimento de uma teoria da justiça abrangente (universal).
Dessa maneira, os traços que aqui se desenvolve aceitam esses limites e busca destacar os aspectos positivos e negativos das teorias existentes e de como um novo paradigma: o da sustentabilidade e do desenvolvimento, que vai muito além do paradigma econômico, pode elevar a humanidade a uma nova dimensão.
Verifica-se enorme dissenso entre as teorias existentes em seus dois conceitos estruturantes: a igualdade e a liberdade. Todas elas buscam defender esses dois valores, mas o grande problema é sua concretização.
Cada teoria tenta definir as condições sociais, econômicas e políticas sobre os quais os membros da comunidade são tratados como iguais.
No entanto, verifica-se que não é viável uma teoria sócio-sustentável se estruturas de base ou paradigmas não forem radicalmente mudadas.
O paradigma ainda vigente, segundo Henderson [12] nos mostra que o sistema bélico das sociedade humanas tem pelo menos seis mil anos e que a experimentação desse período com a competição, a territorialidade, o expansionismo e os conflitos militares pode e deve ser revertido. Tanto com Henderson quanto com Arendt (A Condição Humana), os cenários de aniquilação (holocaustos nucleares e biológicos), as ameaças dos lixos tóxicos, a decadência urbana, a desertificação, a mudança do clima, estão todos presentes e continuar nesse caminho não parece uma decisão verdadeiramente humana, mas bestial e inviabilizadores aqui preconizados.
Esse paradigma da competição/conflito e seus jogos de dominação/submissão e de perda-ganho é um paradigma violento, que abre caminho para a guerra econômica e bélica global.
Henderson observa que a economia do século XXI é uma ‘política disfarçada’ e que é preciso destroná-la enquanto ferramenta predominante de análise política do sistema de guerra econômica global [13].
O futuro global por ela almejado é multidisciplinar, cooperativo, ‘desevolutivo’ no sentido de se remodelar a produção, a agricultura, a arquitetura, as disciplinas acadêmicas, os governos e as empresas.
Relevante observar que a dimensão sustentável e o apontamento da fragilidade de um sistema econômico embasado em recursos não-renováveis vem sendo discutida há mais de 50 anos por estudiosos da termodinâmica, químicos, engenheiros, físicos, sociólogos, antropólogos, psicólogos e milhões de cidadãos com educação diversificada. No entanto, somente nos últimos 20 anos ganhou força e voz suficiente para inserir-se no debate público mais amplo.
Por trás da sustentatibilidade do paradigma da ‘Era Solar’ está a guinada copernicana capaz de reduzir os confrontos militares decorrentes das guerras por recursos não-renováveis; uma ordem mundial mais sensata, mais equitativa e ecologicamente viável e um caminho de desenvolvimento totalmente novo, centrado nos direitos humanos e nas necessidades básicas insatisfeitas da população, necessidades estas que vão muito além do processo vital (biológico).
Observa-se com Henderson [14] que os movimentos sociais transformadores que se apresentam para a inauguração da ‘Era Solar’ são multidimensionais, não- lineares, imodeláveis devido às interconexões nacionais e globais e começam a forjar vínculos que ultrapassam as fronteiras nacionais, pois os problemas passam a ser globais.
Essa ‘Era Solar’ sustentável exige não somente descentralização econômica, mas principalmente política, um caminho de desenvolvimento centrado na vida do planeta e no uso intensivo de aptidões, onde se investe no desenvolvimento humano, na conservação de recursos e em pesquisas sobre energia renovável.
Pode-se assim imaginar que uma teoria sócio-sustentável de justiça que capta esse paradigma emergente [15] e incorpora ao debate público essa nova percepção de realidades planetárias, baseada numa cosmovisão científica ‘pós-cartesiana’ baseada nas ciências biológicas e sistêmicas em vez de modelos inorgânicos e mecanicistas ofereça melhores condições para um novo desenvolvimento de todos os seres vivos.
Impõe-se repensar a cidadania e a construção de sujeitos múltiplos, por meio de uma cidadania democrática radical que identifica o cidadão à res publica, sendo esta "uma identidade política comum de pessoas que podem estar empenhadas em muitos empreendimentos com finalidades diferentes e com diversas concepções de bem, mas que, na procura de sua satisfação e na execução das suas acções, aceitam submeter-se às regras prescritas pela res publica" [16].
Os aportes teóricos do feminismo, por meio das éticas do cuidado e da justiça são extremamente relevantes, pois enquanto pela ‘ética da justiça’ se busca apreender princípios morais, a ‘ética do cuidado’ busca desenvolver disposições morais; enquanto o raciocínio moral da ética da justiça prima pela solução de problemas buscando princípios de aplicação universal, a ética do cuidado busca respostas adequadas ao caso concreto (contingência). Enquanto a ética da justiça busca conceitos morais atentando para direitos e equidade, a ética do cuidado atenta para as responsabilidades e relações.
4.Conclusão
As teorias da justiça centradas no Estado-Nação já não são suficientes para dar conta das complexidades do século XXI, especialmente dos riscos que todas as formas de vida correm, perigo este que já assinalava Arendt (A Condição Humana) ao destacar o potencial nuclear acumulado pela humanidade.
Verificou-se a necessidade de uma guinada paradigmática que substitua o sistema bélico das sociedades humanas, centrado na competição, na territorialidade, no expansionismo e nos conflitos militares e que nos coloca frente a cenários possíveis de aniquilação (holocaustos nucleares e biológicos), ameaças de lixos tóxicos, decadência urbana, desertificação, mudança climática, etc. por outros mais sustentáveis, que incorporem as idéias de partilha, cuidado, responsabilidade, hospitalidade, respeito, etc.
Esse modelo competitivo deve ceder ao modelo cooperativo, um modelo de mundo onde todos ganhem e que todos os seres humanos devem contar com recursos adequados para que possam concretizar os projetos de vida que fundadamente valorizem.
Essa guinada copernicana deve refletir numa teoria sócio-sustentável de justiça, complexa, que incorpora o político em sua dimensão agonística, a democracia radical, o republicanismo cívico, a Terra como morada comum, a responsabilidade, o cuidado, a ética, etc.
No entanto, a explosão de valores fundamentais, impede qualquer projeto de desenvolvimento de uma teoria da justiça abrangente (universal) e nem isso parece desejável, devendo, a partir de modelos mais contingentes e focados no problema, enfrentar cada realidade (local, regional, nacional, global).
Uma teoria assim concretizada concebe o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões, como um processo integrado de expansão das liberdades imbricadas umas nas outras. Traduz-se na remoção de carências de liberdade e na expansão de vários tipos de liberdade concretas que as pessoas ou sujeitos globais valorizam com razão.
Nessa perspectiva, toda a humanidade tem o direito e o dever de trazer para o debate público se a distribuição de bens atualmente praticada é adequada ao padrão de nível tecnológico, econômico e de sofisticação vividos.
Procede a crítica de Amartya Sen tanto à teoria de Rawls quanto à de Dworkin, por meio do qual idênticos bens podem significar coisas distintas para pessoas diferentes e que a conversão dos bens primários e recursos em liberdade de escolha pode variar de pessoa para pessoa e pode implicar em sérias desigualdades nas liberdades reais desfrutadas por diferentes pessoas.
A crítica de Sen é relevante, porque não ignora as diferenças das pessoas no aproveitamento dos meios e o valor, inclusive subjetivo, que elas lhes atribuem.
Esses traços permitem concluir que é possível a construção de uma outra teoria da justiça cuja mudança paradigmática está na reflexão do humano de que novos e melhores mundos são possíveis.
Nessa teoria da justiça mais sofisticada e complexa, o cuidado, a ética, a cooperação, a sustentabilidade da vida e dos recursos naturais, o respeito e consideração para com a geração presente e futuras, a ética, a responsabilidade, a hospitalidade, devem integrar a gramática do desenvolvimento.
Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. trad. Roberto Raposo, pósfácio Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro, 2003.
GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
HENDERSON, Hazel. Construindo um mundo melhor onde todos ganhem: a vida depois da guerra da economia global. São Paulo: Cultrix, 2007.
____.Transcendendo a economia. 12. Ed. São Paulo: Cultrix. 2006; Construindo um mundo melhor onde todos ganhem: a vida depois da guerra da economia global. São Paulo: Cultrix, 2007.
_____.Além da globalização: modelando uma economia global sustentável. Trad. Maria José Scarpa. 7. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2009.
_____.Mercado Ético: a força do novo paradigma empresarial. São Paulo: Cultrix, 2007.
KYMLICKA, Will. Les théories de la justice: Libéraux, utilitaristes, libertariens, marxistes, communautariens, feministes. Traduit de l´anglais par Marc Saint-Upéry. Canadá: Boreal, 1999.
_____.Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MACINTYRE, Alasdayr. Justiça de quem?; qual racionalidade?. 3. ed. São Paulo: 2008.
MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1996.
SANDEL, Michael J. Morality and the liberal ideal, in New Republic, 7 de maio de 1984.
_____. Sandel, Michael. Liberalism and the limits of justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
Notas
- RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
- KYMLICKA, Will. Les théories de la justice: Libéraux, utilitaristes, libertariens, marxistes, communautariens, feministes. Traduit de l´anglais par Marc Saint-Upéry. Canadá: Boreal, 1999.
- Relaciona-se aqui a articulação entre liberalismo e democracia de Chantal Mouffe (o regresso do político) com a abordagem de Will Kymlicka (filosofia política contemporânea, Martins Fontes, 2006, sobre o gap ou deficiência de todas as teorias da justiça em não considerar as injustiças dentro da família, especialmente a discriminação e ausência de autonomia da mulher.
- MOUFFE, O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 148.
- O regresso do político, p. 148.
- O regresso do político, p. 149.
- O regresso do político, p. 149.
- KYMLICKA, Will. .Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
- HENDERSON, Hazel. Além da globalização: modelando uma economia global sustentável. 10. ed. São Paulo: Ed. Cultrix, 2009.
- HENDERSON, Hazel. Mercado Ético: a força do novo paradigma empresarial. São Paulo: Cultrix, 2007.
- KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 4.
- HENDERSON, Hazel. Construindo um mundo melhor onde todos ganhem: a vida depois da guerra da economia global. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 11.
- HENDERSON, Hazel. Transcendendo a economia. 12. Ed. São Paulo: Cultrix. 2006; Construindo um mundo melhor onde todos ganhem: a vida depois da guerra da economia global. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 17.
- HENDERSON, Hazel. Transcendendo a economia. 12. Ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 29.
- Para HENDERSON, op. cit. p. 31, os instrumentos e modelos políticos gerados por essas novas cosmovisões, são as: avaliações tecnológicas, estudos de impacto na sociedade e no emprego, relatórios de impacto ambiental, pesquisas do futuro, estudos de impacto cruzado, construção de cenários possíveis, modelagem global. A ECO-92, a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, a afirmação gradual dos direitos humanos e da cidadania planetária, são todos movimentos que pressupõem uma nova ordem mundial baseada no uso de energia e recursos renováveis, formas sustentáveis de produtividade e consumo per capta, ciências e tecnologias com base ecológica e justa distribuição dos recursos dentro de cada país e entre os países, como caminho viável para manter a paz e dar novo destino aos bilhões gastos na corrida armamentista.
- Mouffe, o regresso do político, p. 83-87.