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O "princípio" da insignificância no Supremo Tribunal Federal

28/02/2011 às 17:09
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Em diversas outras ocasiões, a doutrina e jurisprudência brasileiras manifestam sobre a aplicabilidade e extensão do princípio da insignificância. Sem enveredar, à luz do pensamento de ALEXY, pela famosa dicotomia entre regras e princípios, tarefa que, por certo, excede ao objetivo deste artigo, vou enfrentar a temática à luz do julgamento do Supremo no HC 98021 [01].

Consoante já assentado, o princípio da insignificância, que TIEDEMANN denomina de princípio da bagatela, enuncia que deve haver uma relação de proporcionalidade entre a ofensividade da conduta e a punição a ser imposta; quando, no caso concreto, analisando a conduta praticada e o quantum de punição abstratamente prevista, houver uma desarrazoada desproporção, a tipicidade deve ser afastada. Assim, por exemplo, na hipótese do crime de descaminho, no qual o tributo iludido é inferior a dez mil reais [02] ou tentativa de furto de objeto de ínfimo valor, é de se aplicar o mencionado princípio que, uma vez acolhido, afasta a própria tipicidade penal. Os recentes julgamentos do Supremo o vem considerando como vetor de política criminal que funciona como fator de descaracterização material da tipicidade penal [03].

No Supremo Tribunal Federal, à luz dos últimos julgados, a aplicação do princípio da insignificância vem sendo admitida desde que balizada pelos seguintes vetores objetivos: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Sem ressaltar o risco deste posicionamento casuístico, visível que o objetivo é oferecer um balizamento para reduzir o alto grau de abstração dos princípios jurídicos. Pois bem.

Recentemente – 22 de junho de 2010 –, a 1.º T do Supremo, através da Relatoria do Min. Lewandowisk, fundamentando no valor supra-individual do bem jurídico tutelado no crime de apropriação indébita previdenciária, indeferiu ordem de Habeas-corpus, não obstante reconhecer, na espécie, o pequeno valor das contribuições sonegadas à Previdência Social [04].

A decisão é, no mínimo, estranha, notadamente se se observar o padrão e os critérios estabelecidos pela própria Corte como vetores para aplicação do princípio e, aliado a isto, se se considerar as recentes decisões referentes aos valores mínimos para fins de execução fiscal. Isto, por si só, justificaria a aplicação do princípio da insignificância ao crime de apropriação indébita previdenciária que não ultrapasse o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) [05]. Ressalte-se, de plano, faz algum tempo, venho defendo a alteração deste modelo de política criminal adotado no combate aos "crimes desta natureza" [06].

Alheando aos vetores estabelecidos pelo próprio tribunal, a 1.º T recorreu à teoria do bem jurídico-penal para fundamentar a inaplicabilidade do princípio. Esta premissa, no entanto, dependendo da filiação dogmática, é falsa, pois a função do tipo penal de proteção do bem jurídico, embora majoritária, não é posição unânime na doutrina [07].

De saída necessária uma precisão, o conceito de bem jurídico pode ser firmado a partir de duas perspectivas, quais sejam: a dogmática e a político-criminal. O conceito político-criminal [08] passa larga distância da doutrina brasileira e das decisões do Supremo; já o dogmático a doutrina, em sua maioria, a ele se refere.

Investigar conceito político-criminal é esclarecer a função extra-sistemática do bem jurídico, ou seja, objeto digno de proteção jurídico-penal; já o conceito dogmático de bem jurídico refere-se ao objeto de proteção do dispositivo legal. No Brasil é corrente nos manuais de direito penal a expressão "objeto jurídico". No entanto é de se registrar que as decisões nem mesmo fazem menção a esta dicotomia.

O arenoso terreno sobre o qual repousa a teoria do bem jurídico tem sido ressaltado por autores nacionais e estrangeiros [09]. Não há consenso ou contorno homogêneo sobre sua conceituação [10], função e objeto. Isto porque a noção de bem jurídico significa expressar um juízo meramente arbitrário sobre valores, dados ou interessesmais caros ao legislador (refere-se a valores deduzidos não exclusiva e/ou necessariamente da Constituição).

O que se percebe, no entanto, é que a noção de bem jurídico é cíclica, ou seja, há progresso e retrocesso nas diversas etapas de sua evolução, sem qualquer possibilidade de uma análise que siga um curso normal e estanque de progressão [11].

Assim estabelecido o estado da arte, é visível que a confusão domiciliada nas decisões do Supremo, em verdade, nada acrescenta à discussão e apenas solidifica a perigosa casuística que envolve a aplicação do "princípio" da insignificância. Disto se infere que o recurso à insignificância, em boa medida, tem um caráter eminentemente retórico, geralmente recorrendo-se à fórmula de descaracterização material da tipicidade penal isto para não falar na recorrente menção aos também famigerados postulados da fragmentariedade e intervenção mínima. E é aí que reside, salvo melhor juízo, a incongruência em algumas decisões da Corte.

Se, por um lado, em diversos julgados recorre-se à tríade "bagatela – fragmentariedade – intervenção mínima" para justificar a exclusão da tipicidade material [12] não se pode, em situações outras, evocar bem jurídico penal supra-individual como critério criminalizador e fundamentador da intervenção penal, salvo se se afaste a congruência dogmática que se espera da nossa corte suprema. E a razão é bastante simples: o modelo de intervenção fundamentado nos bens jurídicos supra-individuais contraria os "princípios" acima mencionados. Explico.

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Consabido que a criação dos bens jurídicos supra-individuais, marca indelével do moderno Direito Penal, encontra uma forte resistência em um setor da literatura penal [13].

Tal modelo de política criminal se caracterizaria por uma tendência ao direito penal preventivo, um direito penal caracterizado por um acentuado adiantamento da proteção penal. Este adiantamento da proteção penal se faz, em grande parte, através da técnica dos crimes de perigo, notadamente, os crimes de perigo abstrato, bem como com a configuração dos novos bens jurídicos de conteúdo vago, ditos universais ou coletivos. Como pontua PRITTWITZ, a grande diferença entre o velho direito penal – o direito penal liberal que remonta aos pré-clássicos, principalmente BECCARIA – para o novo direito penal preventivo é que este se caracteriza por proteger mais bens e distintos e, além disso, principalmente, o protege em um estado prévio de lesão ao bem jurídico (dano/perigo) [14].

A demanda de proteção se caracteriza, portanto, por uma ampliação do direito penal, ainda que esta ampliação tangencie – e aí a contrariedade dos fundamentos do Supremo – a análise do princípio da necessidade da intervenção penal e por fim, mas não menos importante, se a resposta penal se mantém dentro dos limites da legítima intervenção do direito penal.

Disto se infere, portanto, uma incongruência interna na fundamentação da decisão da Corte. Ora se aplica o princípio da intervenção mínima, ora se aplica critérios marcantes da expansão do direito penal, o que é um equívoco.

Assim, para justificar a aplicabilidade do princípio e criar critérios menos perigosos, é necessário, apenas, recorrer à derivação constitucional do bem jurídico-penal [15]. O que se quer, no mínimo, é a coerência do conteúdo das decisões do Supremo.


Notas

  1. Advirta-se, apenas, que classifico a insignicância como regra e não como princípio, mas, doravante, sera tratado como se o fosse.
  2. HC 96661/PR, rel. Min. Cármen Lúcia, 23.6.2009.
  3. Não há unanimidade na doutrina e na jurisprudência sobre a existência e aplicabilidade do princípio da insignificância. Conferir HC 98152 / MG – Rel.  Min. Celso de Mello, j. 19/05/2009. Cfr., do mesmo Min., HC 84.412-SP
  4. HC 98021/SC e HC 98021/SC, todos sob relatoria do Min. Ricardo Lewandowski.
  5. Neste sentido: STJ, 5 T, Resp. 21403-SC.
  6. NEVES, Eduardo Viana P. Contributo para um incremento no combate aos crimes de colarinho branco. Disponível em: www.eduardo-viana.com
  7. Por todos cfr. JAKOBS, Günther. Wie und was schützt das Strafrecht? Widers- pruch und Prävention; Rechtsgüterschutz und Schutz der Norm- geltung, (mimeo).
  8. Sobre o conceito político-criminal cfr.: GRECO, Luís. GRECO, Luís. "Princípio da ofensividade" e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 49, 2004, p. 89-147.
  9. BUSTOS RAMIREZ, Juan. Bases críticas de un nuevo derecho penal. Bogotá: Temis, 1982, passim; HASSEMER, Winfried. "Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos". In: BUSTOS RAMÍREZ, Juan (director). Pena y Estado. Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, p. 32; ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos. La estructura dela teoria del delito. 2. ed; traducción y notas, Diego-Manuel Luzon Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997, p. 71; HORMAZABAL MALAREE, Hernan. El bien jurídico y estado social y democrático de derecho. 2. ed. Santiago: Editorial Conosur, 1992, p. 7. No Brasil: TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 181; GRECO, Luís. Op. cit., p. 102.
  10. Há, inclusive, quem negue a possibilidade de e estabelecer um conceito unitário ou supra-conceito de bem jurídico. Nesse sentido: MARTINEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal económico e de la empresa. Parte General. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 153-155.
  11. Cfr. NEVES, Eduardo Viana P. Teoria do bem jurídico-penal e sua conformidade constitucional (no prelo); HORMAZABAL MALAREE, Hernan. El bien jurídico...passim.
  12. HC 84.412-SP, HC 98.152-MG e Rel. Min. Celso de Mello; v. tb. HC 83526, HC 84687, HC 87478, HC 88393, HC 89624, HC 92463, HC 94505, HC 94772, HC 95957.
  13. HASSEMER E HERZOG.
  14. PRITTWITZ, Cornelius. Sociedad del riesgo y Derecho penal. In: ARROYO ZAPATERO, L.; NEUMANN, U. Y NIETO MARTÍN, A., Crítica y justificación del Derecho penal en el cambio de siglo. El análisis crítico de la Escuela de Frankfurt. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, 2003, p. 259.
  15. Sobre tema cfr. NEVES, Eduardo Viana P. Teoria do bem jurídico-penal e sua conformidade constitucional (no prelo).
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Sobre o autor
Eduardo Viana Portela Neves

Advogado Criminalista(BA). Mestrado em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Professor de diversos Programas de Pós-graduação. Secretário Adjunto OAB-BA (Subseção de Vitória da Conquista)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Eduardo Viana Portela. O "princípio" da insignificância no Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2798, 28 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18591. Acesso em: 21 nov. 2024.

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