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Reflexos da patenteabilidade das sequências de DNA humano.

Uma avaliação multissetorial

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01/03/2011 às 14:40
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4 Sociedade e comunidade científica

Consequência das fortes discussões acerca da ética na concessão de patentes sobre sequências de DNA humano há uma diversidade de opiniões. Tanto em meio à sociedade leiga quanto entre a comunidade científica há grupos com opiniões distintas, contra, a favor ou mesmo na dúvida.

Analisar a ligação da sociedade leiga e da comunidade científica, nesse diapasão, mostra-se importante na medida em que, teoricamente, a comunidade científica deve trabalhar para o bem de toda a sociedade, indistintamente, e com esta deve dividir seus conhecimentos.

O desenvolvimento atual atingido pelas ciências biológicas e áreas a fim a partir da metade do século XX, entretanto, irrompe a maior parte das normas vigentes e evidencia que a ordem social hodierna é insuficiente (OLIVEIRA, 1995, p. 117).

A vida em sociedade, então, passa a dispor de regras de convivência, que são criadas a partir de valores por ela cultivados, isso porque:

[...] o ser humano nunca foi mero expectador: de alguma forma sempre foi observador, reflexivo e capaz de empreendimentos criativos. É com este quadro de fundo que se compreende a profundidade da revolução levada adiante pela genética atual: ela desemboca numa nova compreensão de vida, que nos introduz num novo momento histórico (MOSER; SOARES, 2006, p. 45).

Assim e por isso mesmo é que se tem a necessidade extrema e eminente de se discutir o que vem sendo desenvolvido pela ciência, a finalidade e consequências de seus novos empreendimentos.

Dessa necessidade decorrem questões que são de uma amplitude incalculável, e que, junto aos debates bioéticos devem estar presentes nos debates sociais e científicos, pois parece soar um tanto quanto estranho que direitos sobre partes tão primárias do ser humano vivo estejam sendo adjudicados a uma parcela minoritária da humanidade.

No contexto dessa necessidade, expressando opinião contrária à proteção patentária biotecnológica, entre os anos de 1995 e 1996, o então vice-presidente do Conselho da Academia de Ciências do Terceiro Mundo (TWAS), Muhammad Akhtar disse que a agricultura era fruto de milhares de anos de trabalho de uma coletividade de agricultores e que a tecnologia do DNA recombinante não alteraria mais do que 1% (um por cento) das características dos vegetais. Concluiu justificando que, desse modo, seria uma afronta ao senso de justiça que multinacionais pudessem deter a propriedade de sistemas vivos, por meio de patentes, através de uma parcela de trabalho tão insignificante (CASTELFRANCHI, 2004).

Esse posicionamento tem relação com o fato de vários dos avanços biotecnológicos ainda não possuírem todos os seus benefícios, efeitos e consequências determinados. Diante da dúvida, a sociedade leiga tende a se retrair, a contrariar essa espécie de proteção jurídica que é a patente de uma sequência de DNA humano. Boa parte da comunidade científica, entretanto, defende em alto e bom som a proteção, mesmo que não se tenha dados concludentes. Primeiro querem a patente, depois, com a garantia jurídica assegurada passam a um estudo mais meticuloso do objeto patenteado.

Contestando esses pontos de vista, se a comunidade cientifica não dispõe de meios para sozinha situar uma questão no campo da ética, cabe a ela, entretanto, explicar aquilo que faz, para que a sociedade faça seu julgamento acerca da viabilidade e sustentabilidade ou não de determinada proteção jurídica, do contrário essa mesma sociedade poderá, de pronto, posicionar-se contra qualquer prática científica.

Essa postura retraída toma lugar porque "[um] dos problemas é a rápida difusão dessas [nem tão novas] tecnologias de forma sensacionalista, preconceituosa e ideológica, por pessoas oportunistas não cientistas" (GARCIA, 2003).

Já no princípio do Projeto Genoma Humano a intenção governamental cingia-se ao intuito de elaborar um grande banco de dados a respeito da composição genética humana, para que esses dados servissem de subsídio a quem interessasse desenvolver a partir deles um melhoramento vital para o ser humano.

Entretanto, tempo depois do início do projeto, com a ingerência do setor privado, sobremodo pela atuação das empresas de biotecnologias, o sonho do código aberto tornou-se um tanto distante, na medida em que, para uma empresa, melhor e mais importante do que sequenciar todo o genoma humano era lucrar com esse feito.

E assim aconteceu: nos EUA, dia após dia eram depositadas centenas de pedidos de patentes para sequências de DNA humano, e nessa época também setores financiados com verba governamental, como Universidades, estavam solicitando suas patentes. E inúmeros desses pedidos foram atendidos, sob as mais diversas justificativas, e, diga-se que quase sempre sem a merecida análise.

Hoje, na população em geral, a posição acerca da patenteabilidade das sequências de DNA humano ainda é bastante variável, dependendo, fundamentalmente do nível de desenvolvimento de cada grupo. Entretanto, crê-se que a contrariedade ao patenteamento da vida ainda é visivelmente mais defendida na sociedade comum, pois ela almeja ser beneficiada com os avanços biotecnológicos, e isso sem dúvida é muito mais fácil sem a proteção das patentes.

Nessa linha de argumentação, há interessante enquete realizada pela revista Scientific American no ano de 2006, e disponibilizada em meio virtual, na qual se questionava se patentes sobre genes deveriam ser permitidas. Como resposta, havia quatro possibilidades, que se colocam abaixo, com os respectivos percentuais de aderência:

Sim. É preciso um incentivo para aqueles que investem na pesquisa básica em genômica. 2,29 %

Em geral, sim. Devem ser negadas apenas as patentes sobre genes cujo papel não tenha sido determinado. 3,05 %

Em geral, não. Uma patente deve ser concedida apenas quando um gene se prova útil para algo como uma ferramenta de diagnóstico. 9,16 %

Não. Ninguém pode se apropriar da Natureza. 85,50 %(PATENTES, 2008, grifo nosso).

Extrai-se desse resultado que as pessoas em geral parecem estar esclarecidas quanto às consequências que um direito de patente gera para seu detentor, bem como da significação e destinação dos genes em relação à vida humana.

Também no setor científico, sobretudo o privado, a situação hoje vai de encontro ao inicialmente visado, mitigando a veemente necessidade do lucro e prevendo que muito caos pode ser gerado em consequência dessa proteção.

Nesse sentido:

Alguns cientistas têm criticado o Escritório Americano de Patentes e Marcas por ser generoso demais na concessão de patentes de genes. Alguns argumentaram que a idéia de permitir o patenteamento da sequência de genes faz pouco sentido, uma vez que existe naturalmente e deveria contar como descobrimento e não como invenção. Mas o Escritório decidiu que, como as sequências de genes isolados não ocorre na natureza, deveriam ser patenteáveis (DRUTMAN, 2006).

É o caso também de Craig Venter, da Celera Genomics, principal investidora privada do Projeto Genoma Humano. Depois de ter em seu domínio inúmeras patentes sobre sequências de DNA humano, Craig passou a defender, ainda que timidamente, o código aberto. Foi ainda mais profundo: em 2003 disse que, em verdade, esse tipo de pedido de patente serviu apenas para enriquecer as assessorias jurídicas especializadas, e que a sociedade tem muito a ganhar com a liberação dos bloqueios patentários (STIX, 2006).

Defensores do código aberto, há também grupos de cientistas que apontam para as legislações européias para alicerçar suas posições, visto que nelas se permite certas patentes biológicas, mas sempre com mais restrições e mediante estudos mais elaborados acerca de seus impactos, obstaculizando o patenteamento puro da vida (DRUTMAN, 2004).

Outra parcela, entretanto, continua a defender ferozmente o sistema de patentes, sob a justificativa de que se não fosse o privilégio patentário a humanidade não teria hoje diversos melhoramentos, como medicamentos contra a AIDS, por exemplo. Isso se justifica porque, na opinião desse grupo, empresa alguma teria investido neles sem a garantia de lucro exclusivo por determinado período de tempo (CASTELFRANCHI, 2004).

Ulterior preocupação que parece amedrontar a sociedade e que deve nortear a mente dos cientistas é o ressurgimento da eugenia, diferente da existente no passado, que, sutil e inocentemente venha a ditar a manipulação genética do ser humano desejado: beleza física, força, inteligência, cor de pele, indisposição para doenças (GASPARETTO, 2008).

Nessa acepção:

Faz sentido aqui o alerta do filósofo alemão Hans Georg Gadamer, [...] quando afirmou [...] que "tudo isso me parece pavoroso", quando pressente que "estão desenvolvendo um ser humano artificialmente perfeito, que poderá ser privado de seu destino e de sua individualidade", devendo-se "impor limites éticos à investigação genética" (GASPARETTO, 2000, grifo do autor).

E na mesma linha, assente-se que:

[Cabe] a Humanidade, aos governos, às organizações civis, fazer prevalecer o interesse de todos, colocando [...] limites. Do contrário, não demorará muito para que nos jogos olímpicos, além dos exames antidoping realizados para detectar substâncias proibidas serão necessários outros, mas para detectar genes artificialmente modificados, destinados a aumentar tamanho, agilidade, velocidade e outros atributos considerados estratégicos no esporte cada vez mais competitivo. Não demorará muito para que se tenha duas olimpíadas, uma com os humanos e outra, com os super atletas produzidos pela Engenharia Genética sob medida para vencer em certas modalidades esportivas. E nesse ponto, seguramente, o ser humano já terá experimentado mais uma vez do fruto proibido da "árvore do bem e do mal". E o novo campeão poderá, no fundo, ser digno de pena (GASPARETTO, 2000, grifo do autor).

Deve-se estar sempre atento ao fato de que a sociedade tem o dever de fiscalizar a ciência, mas a ciência também possui um papel social, que se cumpre quando ela percebe seu lugar na sociedade, mas lembrando também que:

A tendência da sociedade moderna é extrapolar os próprios critérios da sua racionalidade. Isso nos faz perceber que a pretensão universalmente tem sido uma característica do discurso científico. Neste caso, será necessário evocar um novo critério para tornar este discurso mais próximo do contexto social. Este critério passa a ser o da verificabilidade simultânea, constituído por uma dupla norma de aplicação. Em primeiro lugar, toda vez que um experimento científico estiver em discussão será necessário questionar se há, cientificamente falando, grau de certeza anunciado. Quando a pesquisa ocorre com seres humanos, as certezas presentes nos enunciados devem gozar do máximo de precisão, ainda que estas certezas sejam mínimas; caso contrário, a fundamentação do discurso científico deixa de ser epistemológica e passa a ser estética e espetacular. Em segundo lugar, é necessário que as pesquisas científicas proporcionem benefícios correspondentes aos custos sociais exigidos para o seu desenvolvimento (MOSER; SOARES, 2006, p. 33-34, grifo do autor).

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O critério proposto para valoração dos experimentos científicos revela a dupla responsabilidade que a ciência deve preservar: a responsabilidade científica junto à responsabilidade social. Isso porque a ciência é um fato social e suas ações têm sempre que levar em conta os mais diversos fatores e problemas aos quais a sociedade está exposta.

Nesse diapasão, tem-se que, em verdade, as descobertas de hoje são desdobramentos de descobertas precedentes. É a evolução e o aprimoramento das pesquisas. E é necessário tomar cuidado com isso, pois quanto mais avança a tecnologia, maiores esperanças e também maiores medos trás à sociedade, e a sociedade não pode conviver em meio a tanta insegurança

Nessa linha, ganha atenção a corrente que defende o fato de as sequências de DNA humano, além de não serem invenções, são descobertas originadas de outras descobertas, precedentes. Essa postura fragiliza ainda mais os argumentos usados na defesa da proteção jurídica patentária desse tipo de material biológico.

Uma vez que só se chega à descoberta de uma sequência de DNA conhecendo-se a fundo o funcionamento e arranjo do sistema biológico, as sequências de DNA, hoje tão bem quistas, são decorrência de um acidente, e apenas a partir desse acaso é que ganhou significado e preocupação científicos, com a instituição, inclusive, do Projeto Genoma Humano, desenvolvido especialmente com a finalidade de decifração genética.

Frente a mais essa possibilidade de diferenciação do caráter existencial das sequências de DNA humano, torna-se ainda mais complexo e inseguro afiançar uma fundamentação jurídica concludente para a proteção patentária conferida por alguns ordenamentos jurídicos vigentes.

É em meio a isso que se convive no que tange à questão da patenteabilidade das sequências de DNA humano: uma insegurança, em todos os aspectos, sobremodo o jurídico, se levados em conta os distintos graus de proteção, ou proibição, conferidos pela legislação de cada nação. Acima das disposições legais, tem-se ainda a divergência, dentro de um mesmo Estado soberano, entre os pesquisadores e a população, e entre os componentes de cada um desses grupos também.

O que é necessário deixar claro são as consequências experimentadas tanto pela população, quanto pela comunidade científica quando se protegem sequências de DNA por meio de patentes. Esta perde porque a pesquisa sobre a sequência fica restrita ao detentor da patente por um grande lapso temporal. Aquela perde de dois modos: ou porque não tem condições de arcar com os melhoramentos desenvolvidos em função dos custos decorrentes da propriedade de uma patente, ou porque deixam de ser beneficiadas com algo que poderia ser desenvolvido por outras mentes, mais rapidamente, mas cuja pesquisa que não ocorre por conta da proteção patentária.

Contudo, a divergência de opiniões sempre existirá e não é tarefa simples, nem se busca aqui, precisar qual a posição dominante: no campo do DNA humano, especificamente, e em todas as biotecnologias, pois os seres humanos, cada um deles, é movido por diferentes razões. Uns pelo bem comum, outros pelo lucro, por exemplo.

Nessa conjuntura, é o debate ético, juntamente ao social e científico que, engajados, podem impor suas crenças e valores frente aos poderes dominantes, sobretudo o político, jurídico e econômico, de forma a ser estabelecida uma norma coerente com as necessidades sociais e interesses científicos, que seja passível de manutenção, porquanto deve ser balizadora de direitos conflitantes e instituidora de um ponto de equilíbrio.

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Sobre a autora
Suelen Carls

Advogada; MBA em Gestão Tributária; Mestranda em Desenvolvimento Regional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARLS, Suelen. Reflexos da patenteabilidade das sequências de DNA humano.: Uma avaliação multissetorial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2799, 1 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18594. Acesso em: 26 abr. 2024.

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