4 Considerações Finais
Por fim, algumas palavras sobre a administração da justiça e a interpretação judicial da lei civil. Neste ponto, Hobbes é também claro em relação ao sentido da lei, assim como no que concerne ao bom intérprete da mesma. Nesse sentido, o filósofo inglês afirma que a lei é o produto da vontade do soberano e que esta vontade deve ser bem compreendida. Isso quer dizer que não devem existir várias possibilidades interpretativas para a lei civil, mas que o animus do legislador, ou seja, a vontade do próprio soberano, deve ser conhecida pelo juiz que aplicar a lei para os casos concretos que analisar. A aplicação "errônea" da lei (leia-se errônea a interpretação diversa do sentido literal dado pelo soberano), gera invariavelmente injustiça. Hobbes não dá margem à jurisprudentia:
De maneira semelhante, quando é posto em questão o significado das leis escritas, quem escreve um comentário delas não pode ser considerado seu intérprete. Porque em geral os comentários estão mais sujeitos a objeções do que o texto, suscitando novos comentários, e assim tal interpretação nunca teria fim. Portanto, a não ser que haja um intérprete autorizado pelo soberano, do qual os juízes subordinados não podem divergir, os intérpretes não podem ser outros senão os juízes comuns, do mesmo modo que o são no caso da lei não escrita. E suas sentenças devem ser tomadas pelos litigantes como leis para aquele caso particular, mas não obrigam outros juízes a dar sentenças idênticas em casos idênticos. Porque é possível um juiz errar na interpretação mesmo das leis escritas, mas nenhum erro de um juiz subordinado pode mudar a lei, que é a sentença geral do soberano (1988, p. 169).
Desta forma, não há qualquer obrigação de um juiz seguir um julgamento anterior no momento da formulação da sua sentença. O que sempre deve existir, isso sim, é uma justa interpretação da letra da lei, sempre no sentido da vontade mais autêntica do soberano, pois quem dá a lei, e quem, em última análise, é o responsável pela administração da justiça, é ele próprio. O juiz é um mero executor e não um criador de leis, pois, conforme Hobbes, "seria grande contumélia que um juiz pensasse de maneira diferente do soberano" (1988, p. 169). O motivo é simples: somente o soberano tem a medida da eqüidade, uma vez que ele é o principal responsável pela conservação da vida de seus súditos e pela manutenção da ordem e da paz no Estado.
Referências bibliográficas
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 4ª ed. São Paulo : Nova Cultural, 1988.
______. Do cidadão. São Paulo : Martins Fontes, 2002.
Notas
- É importante, desde o início, caracterizar que o esquema contratualista de Thomas Hobbes, fundado no movimento "Estado de Natureza – Contrato – Estado Político" é tão-somente um artifício filosófico justificador da melhor forma de governo por ele propugnada e que será descrita na seção seguinte deste artigo. Desta forma, em momento algum, Hobbes propõe um olhar histórico acerca de seu modelo contratualista. Nas suas próprias palavras: "poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro" (1988, p. 76).
- Nas palavras de Hobbes: "desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro" (1988, p. 74-75).
- Nas palavras de Hobbes em Do Cidadão: "a causa do medo recíproco consiste, em parte, na igualdade natural dos homens, em parte na sua mútua vontade de se ferirem – do que decorre que nem podemos esperar dos outros, nem prometer a nós mesmos, a menor segurança" (2002, p. 29).
- As motivações para a celebração do Contrato de instituição de um poder político comum partem dos seguintes pressupostos conforme Hobbes: "as paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo" (1988, p. 77).
- Assim Thomas Hobbes define o Estado: "uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros foi instituída por cada um como autora, de modo ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum" (1988, p. 106).
- O pacto de fundação do Estado Político é irreversível não somente para os homens que o celebraram, mas também para o próprio soberano: "dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre um e cada um, e não entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto da parte do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração" (1988, p. 108).
- O sentido que se está empregando a "representação fiduciária" é análogo ao que foi empregado por Norberto Bobbio (1997), quando este autor fez a distinção entre este tipo de representação em relação à "representação delegada". Nesta última, o representante goza do status de um mero um porta-voz, podendo, portanto, seu mandato limitado ser revogado ad nutum pela vontade daqueles que o outorgaram. Já a "representação fiduciária" é demonstrada por Bobbio como radicalmente oposta, visto que o representante goza um status de extrema autonomia para a tomada de suas decisões, como estatui, em última análise, Hobbes em relação ao soberano perante seus súditos.
- A noção de igualdade entre os homens de Hobbes deve ser aqui caracterizada. Nas suas próprias palavras: "a natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo (1988, p. 74).