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O fundamento da soberania e do Direito em Thomas Hobbes

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03/03/2011 às 13:45
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Resumo. O presente trabalho tem por objetivo principal apresentar as características essenciais das noções de Soberania e de Direito na obra de Thomas Hobbes. Dessa forma, o artigo está dividido em duas partes principais. Na primeira parte, será enfocado grosso modo o esquema filosófico contratualista deste filósofo, do Estado de Natureza em direção à constituição artificial do Estado Político. Na segunda parte, serão analisados os seguintes institutos jurídicos-políticos de Hobbes: Soberania, Lei Natural, Lei Civil, o exercício da Justiça e a regra da interpretação da Lei.

Palavras-chave: Thomas Hobbes; Direito Natural; Contratualismo; Soberania; Justiça.


1 Considerações Iniciais

Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto pelo amor de nós mesmos.

Thomas Hobbes

Thomas Hobbes é um filósofo assaz conhecido pelo mundo jurídico, principalmente por ser o inaugurador da tradição contratualista fundada no artifício filosófico "Estado de Natureza – Contrato – Estado Político". É também referência obrigatória no que tange à explicação da noção de soberania do Estado moderno, um tipo especial de poder, pois que político, originário e fundador da idéia de sociedade organizada por uma pessoa jurídica e abstrata (Leviatã), a qual é materializada por um governo constituído ou por um homem (uma monarquia) ou por uma assembléia de homens (uma aristocracia ou uma democracia). Hobbes é ainda referência no que concerne à idéia de a vida humana ser um direito natural inalienável e que deve ser protegida acima de qualquer outro direito. É, aliás, esse o próprio fundamento da existência contratual, artificial, do Estado.

Entretanto, apesar de ser uma referência clara na obra de Hobbes, parece que a sua importante concepção de Direito é um tanto negligenciada pelos juristas, mormente os professores de Ciência Política e de Teoria Geral do Estado. Talvez a razão mais direta para tanto seja o singular interesse que o jusnaturalismo hobbesiano desperta entre os estudiosos, o que pode fazer com que a importância da compreensão da sua concepção de lei civil fique relegada a um segundo plano. Contudo, mesmo tal interesse não poderia ser de todo impeditivo para tal negligência, visto que mesmo o direito natural tem um estatuto especial em Hobbes, uma vez que esse, no limite, acaba sendo dependente, em sua formulação filosófica, da sua própria concepção de Direito Positivo.

Nesse sentido, este artigo tem por objetivo principal caracterizar na obra de Hobbes a importância da compreensão conjugada da sua concepção de lei natural com a de lei civil, assim como apresentar sua noção de justiça e o papel dos intérpretes do Direito. Dessa forma, o presente trabalho está dividido em duas partes principais. Na primeira parte, será enfocado grosso modo o esquema filosófico contratualista hobbesiano do Estado de Natureza em direção à constituição artificial do Estado Político. Na segunda parte, serão analisados os seguintes institutos jurídicos-políticos hobbesianos: Soberania, Lei Natural, Lei Civil, o exercício da Justiça e a regra da interpretação da Lei.


2 Do Estado de Natureza ao Estado Político

A primeira idéia importante para iniciar a caracterização do Estado de Natureza [01] hobbesiano consiste em tomar o ser humano como um indivíduo isolado, preexistente à própria sociedade. Para Hobbes, a concepção aristotélica do zoon politikon, ou seja, o homem como um animal político é algo naturalmente inaceitável, como está demonstrado nesta passagem de o Do Cidadão:

A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a propósito das repúblicas ou supõe, ou nos pede ou requer que acreditemos que o homem é uma criatura que nasce apta para a sociedade. Os gregos chamam-no zoon politikon; e sobre este alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil como se, para se preservar a paz e o governo da humanidade, nada mais fosse necessário do que os homens concordarem em firmar certas convenções e condições em comum, que eles próprios chamariam, então, leis. Axioma este que, embora acolhido pela maior parte, é contudo sem dúvida falso – um erro que procede de considerarmos a natureza humana muito superficialmente (Hobbes, 2002, p. 25-26).

Na verdade, segundo o filósofo inglês, os homens não guardam qualquer prazer da companhia dos seus semelhantes, uma vez que a mesma gera disputa e desconfiança. A natureza os revela como seres egoístas, solitários, constantemente imaginando o perigo resultante da convivência com os outros homens sem um poder que medeie as relações sociais:

Os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo (Hobbes, 1988, p. 75).

É importante também destacar que, para Hobbes, os seres humanos são naturalmente livres, no sentido de que suas atividades não estão sob o constrangimento de ninguém. Conforme Hobbes, "liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo oposição os impedimentos externos do movimento)" (1988, p. 129). A natureza faz os homens independentes, uns em relação aos outros. Nesse sentido, a ação humana leva em consideração apenas o interesse particular, sem considerar os interesses alheios.

A distinção entre as noções de bem e de mal inexiste no Estado de Natureza. Isto porque qualquer possibilidade de se pensar a conduta humana no âmbito social é algo impossível, pois que, naturalmente, os homens possuem existências independentes uns dos outros. Não há possibilidade, portanto, de se encontrar noções de Direito, costumes, sociabilidades em geral, visto que tais institutos só podem ser conhecidos a partir instituição da própria sociedade. São, desta feita, criações societárias, não são inatas aos homens. No Estado de Natureza, a liberdade ilimitada humana não sofre, em última análise, qualquer constrangimento que não o de uma força maior:

Desta guerra de todos contra todos também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão (1988, p.77).

Nesse sentido, o Estado de Natureza hobbesiano é um estado de igualdade e liberdade total entre os homens. Além de igualdade e de liberdade ilimitadas, neste momento, segundo Hobbes, não há leis pré-estabelecidas, ou seja, não há um regramento social. A única forma de se regrar as condutas entres os homens é pela força. Quando algo disponível na natureza é cobiçado por dois homens ocorre necessariamente a disputa entre eles, pois ambos têm direitos a todas as coisas em função de suas liberdades e igualdades irrestritas [02]. Para Hobbes, ter direito a tudo não é uma vantagem do Estado de Natureza, mas uma profunda desvantagem, uma vez que gera um estado de disputa constante, o que na sua linguagem é chamado de estado de "guerra de todos contra todos".

Para o autor de "O Leviatã", a guerra tem duas razões principais: a cobiça de uns que querem tudo para si e a justa vigilância daqueles que possuem os objetos da cobiça alheia. O Estado de Natureza, conforme Hobbes, é, portanto, um estado de guerra que gera uma profunda insegurança nos homens. Ao "uso reto da razão", expressão do próprio Hobbes, é inaceitável aos homens viver neste estado de constante insegurança. Assim, num ato racional e de absoluta liberdade, eles decidem sair deste estado de insegurança e firmar um Contrato para ingressar no Estado Político. Mas, então, por que não é natural a vida em sociedade em se tratando de uma decisão coletiva?

Para respondermos tal questionamento devem ser apresentados elementos referentes ao que o filósofo entendia como sendo a mecânica dos corpos, diretamente influenciada pelo empirismo de Francis Bacon, pensador que Hobbes secretariou entre 1621 a 1626 e que sofreu importante influência em sua formação acadêmica. Assim, segundo a lógica hobbesiana, os desejos e os apetites que surgem para o corpo humano são experimentados como desconfortos e medos a serem resolvidos. Assim, cada homem está motivado a agir no sentido de aliviar este desconforto, a fim de preservar e promover seu bem estar. Tudo o que se escolhe fazer está estritamente determinado por esta inclinação natural de aliviar as pressões físicas que impingem os corpos. Este princípio da física de Hobbes tem reflexos diretos no seu pensamento político. O Estado de Natureza é o momento em que os desejos e os apetites humanos florescem. Contudo, junto a eles, vem à tona também um medo de cada homem acerca de como conservar sua própria existência [03].

Assim, tanto do ponto de vista da física, como do ponto de vista da filosofia política, Hobbes está partindo do princípio de que está tratando de corpos independentes entre si, ou seja, indivíduos que têm naturalmente uma existência à parte dos outros corpos. Esta é a principal razão hobbesiana na sua refutação à tese aristotélica do zoon politikon, a qual já se fez aqui referência. Contudo, esta mesma individualidade, este mesmo egocentrismo é o que faz com que os homens, de forma racional, passem a viver em sociedade, uma vez que se trata de manter a própria vida preservada. Nesse sentido, os homens decidem viver em sociedade, não pelo bem ou pela natureza humana, mas pelo desejo inerente de continuarem existindo.

O Contrato Social [04] é, portanto, artificial e não um resultado natural do convívio humano. É uma decisão tomada pelo uso da mais reta razão. O desejo de viver em sociedade, em última análise, deriva do medo que o homem tem de seu semelhante, do seu próprio lobo. Nas palavras de Hobbes:

Os homens não podem esperar uma conservação duradoura se continuarem no estado de natureza, ou seja, de guerra, e isso devido à igualdade de poder que entre eles há, e a outras faculdades com que estão dotados. Por conseguinte o ditado da reta razão – isto é, a lei de natureza – é que procuremos a paz, quando houver qualquer esperança de obtê-la, e, se não houver nenhuma, que nos preparemos para a guerra (2002, p. 35-36).

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Assim, conforme Hobbes, os homens ingressam no Estado Político. [05] Neste momento, todos os pactuantes do Contrato abdicam de suas irrestritas liberdades em troca da defesa de suas vidas. "Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos" (1988, p. 106). O Estado passa então a centralizar todas as decisões públicas, responsabilizando-se, a partir daí, pela promoção da segurança dos cidadãos.


3 O Fundamento do Poder Soberano e do Direito em Hobbes

Como foi visto na seção anterior, o ingresso dos homens num momento artificial, ou seja, no Estado Político, representa a instituição do poder absoluto – soberano e irresistível – exercido por um homem ou por uma assembléia de homens. Os súditos entregam ao Leviatã suas liberdades irrestritas de quererem tudo em troca da segurança e da paz, proporcionadas pelo Contrato racionalmente estabelecido por medo da morte no Estado de Natureza: "a origem de todas as grandes e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para com os outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros" (2002, p. 28). Para Hobbes, o fundamento do poder absoluto reside no fato de que o mesmo foi dado por todos, num ato de extrema liberdade, sendo, além disso, irreversível [06]:

Aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença. Portanto, aqueles que estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando à confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela é portador para outro homem, ou outra assembléia de homens (1988, p. 107).

É oportuno também destacar que o pacto para a instituição do Estado Político nunca é um pacto com Deus, pois que é um ato propriamente humano. A monarquia de Hobbes não se fundamenta em preceitos ou argumentos religiosos. Assim, a vida em sociedade é fruto da vontade stricto sensu dos homens, temerosos de seus próprios semelhantes, pois que seria um ato injusto buscar celebrar qualquer pacto divino. Neste ponto, Hobbes demonstra claramente sua desaprovação em relação a outras formulações filosóficas de sua época que defendiam o poder divino das monarquias absolutistas européias: "esta pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão evidente (...) que não constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um caráter vil e inumano" (1988, p. 108).

O poder absoluto do soberano está fundado, portanto, na representação que o mesmo exerce perante e sobre seus súditos, sem qualquer exceção. Aqui é interessante destacar o sentido desta representação. Para Hobbes, a representação exercida pelo governante é fiduciária [07], pois que sua existência tem o sentido único de garantir a paz e a segurança dos contratantes. Para tanto, todas as suas ações são justificadas nessa busca incessante pela autopreservação. Assim, dois aspectos são fundamentais de serem destacados.

O primeiro aspecto reside na idéia de que o soberano não pode ser acusado por qualquer súdito de lhe causar injustiça. Uma vez que o governante exerce o poder político em nome de todos os homens, todos os seus atos são, pelo princípio da representação, atos de seus próprios súditos. Em sendo atos tomados pelo soberano, em nome de seus súditos, esses são, por conseqüência, atos dos próprios governados, em nome de seus próprios interesses. Desta forma, Hobbes justifica que a impossibilidade de o soberano ser injusto com qualquer súdito está fundada na também impossibilidade de alguém ser injusto consigo próprio. Hobbes aqui é tautológico: a vontade do soberano é a vontade de todos os súditos e todos os súditos têm suas vontades expressas pela voz e pelas leis do soberano. Daí a impossibilidade de o soberano promover a injustiça:

Dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja autoridade está agindo. Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer, por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível (1988, p. 109).

O segundo aspecto relevante no que concerne à representação do soberano diz respeito a sua desobrigação para com o cumprimento da lei. Neste ponto, o governante, perante seus súditos, está constantemente em Estado de Natureza, ou seja, desobrigado ao cumprimento de qualquer mandamento por ele próprio imposto. A razão disso reside no fato de que o pacto fundador do Estado Político foi celebrado pelos homens entre si e não entre os homens e o soberano, este último uma criação ocorrida após o Contrato. Não se pode obedecer àquilo com o qual não se pactuou. Suas leis, pelo princípio da representação, obrigam os súditos, mas nunca o próprio soberano, que goza de liberdade ilimitada:

O soberano de um Estado, quer seja uma assembléia ou um homem, não se encontra sujeito às leis civis. Dado que tem o poder de fazer e revogar as leis, pode quando lhe aprouver libertar-se dessa sujeição, revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas; por conseqüência já antes era livre. Porque é livre quem pode ser livre quando quiser. E a ninguém é possível estar obrigado perante si mesmo, pois quem pode obrigar pode libertar, portanto quem está obrigado apenas perante si mesmo não está obrigado (1988, p. 162).

Essas prerrogativas absolutas que o soberano goza no momento do Estado Político, pelo princípio da representação, o fazem responsável pela promoção da justiça e da paz. Neste ponto, o Direito exerce um papel singular na teoria hobbesiana, uma vez que é a partir do conjunto das leis do Estado que se conseguirá a promoção da justiça. Assim, Hobbes entende o Direito não como um mero caminho em direção da justiça, da moralidade, do valor ético, mas como a conditio sine qua non para se chegar a tais objetivos sociais, que só são perseguidos com a instituição do Estado, pois que todos são construtos de comunidades politicamente organizadas, uma vez que não são imanências do espírito humano. Desta feita, o Direito hobbesiano está absolutamente concentrado nas mãos do governante, seja na elaboração das leis civis, seja na administração da justiça, através da ação do poder judiciário.

Assim, as leis civis mencionadas por Hobbes em O Leviatã devem ser vistas não no mero sentido do direito privado, mas de forma mais ampla, que envolva, ao mesmo tempo, leis de caráter público, mas também de caráter privado. De clara inspiração romana, lembra Hobbes que "o conhecimento da lei civil é de caráter geral e compete a todos os homens. A antiga lei de Roma era chamada sua lei civil, da palavra Civitas, que significa Estado" (1988, p. 161). Desta forma, o filósofo inglês define lei civil da seguinte maneira:

A lei civil é, para todo súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal; isto é, do que é contrário ou não é contrário à regra (1988, p. 161).

Note-se, na passagem acima, a referência direta que Hobbes faz em relação ao caráter de definição do que é ético ou do que é justo quando afirma que a lei civil faz a distinção entre o "bem" e o "mal", entre o que é ou não contrário à "regra". E quem dá a justiça, quem distingue o bem do mal, em última análise, é o Estado, como define claramente Hobbes: "em todos os Estados o legislador é unicamente o soberano, seja este um homem, como numa monarquia, ou uma assembléia, como numa democracia ou numa aristocracia" (1988, p. 162).

Desta maneira, se existe esta clara definição do papel absoluto do Estado na administração da justiça, como fica em Hobbes a hierarquia entre lei civil e lei natural? O Estado tem de aceitar a lei natural passivamente, pois que esta é anterior à sua própria instituição justamente por ser natural? Seria esse o limite da ação do soberano? Teriam os súditos, neste ponto, prerrogativas em relação ao Estado? A essas questões, Hobbes dá uma clara e direta resposta. No limite, a própria lei de natureza depende da lei civil, ou seja, da vontade do Estado. Veja-se isso inicialmente considerando as leis naturais e civis em perspectiva comparada:

A lei de natureza e a lei civil contêm-se uma à outra e são de idêntica extensão. Porque as leis da natureza, que consistem na eqüidade, na justiça, na gratidão e outras virtudes morais destas dependentes, na condição de simples natureza (...) não são propriamente leis, mas qualidades que predispõem os homens para a paz e a obediência. Só depois de instituído o Estado elas efetivamente se tornam leis, nunca antes, pois passam então a ser ordem do Estado, portanto, também leis civis, pois é o poder soberano que obriga os homens a obedecer-lhes. Porque para declarar, nas dissensões entre particulares, o que é eqüidade, o que é justiça e o que é virtude moral, e torná-las obrigatórias, são necessárias as ordenações do poder soberano, e punições estabelecidas para quem as infringir, ordenações estas que portanto fazem parte da lei civil. Portanto a lei de natureza faz parte da lei civil, em todos os Estados do mundo. E também, reciprocamente, a lei civil faz parte dos ditames da natureza (1988, p. 162).

Hobbes estabelece que as leis civis e naturais possuem a mesma hierarquia, visto que é o próprio Estado o responsável por dar as leis civis e, a partir da interpretação dos ditames da natureza, este também dá as leis naturais. O soberano, portanto, não tem amarras de qualquer espécie, sempre que seus atos tiverem como objetivo a defesa da vida de seus súditos e a incessante busca pela paz e pela ordem do Estado. Sendo assim, a lei natural pode, em última análise, ser inclusive limitada pela lei civil:

A lei civil e a lei natural não são diferentes espécies, mas diferentes partes da lei, uma das quais é escrita e se chama civil, e a outra não é escrita e se chama natural. Mas o direito de natureza, isto é, a liberdade natural do homem, pode ser limitado e restringido pela lei civil; mais, a finalidade das leis não é outra senão essa restrição, sem a qual não será possível haver paz. E a lei não foi trazida ao mundo para nada mais senão para limitar a liberdade natural dos indivíduos, de maneira tal que eles sejam impedidos de causar dano uns aos outros, e em vez disso se ajudem e unam contra o inimigo comum (1988, p. 163).

O motivo da possibilidade da restrição da lei natural pela lei civil pode ser percebido já no momento do Contrato, uma vez que, como se viu, a vida em Estado de Natureza – fundada na liberdade absoluta, no sentido de ausência de oposição, e na igualdade [08] entre os homens – tem como reflexo natural a guerra de todos contra todos e isso deve ser perimido para que a paz e a segurança reinem entre os homens. Portanto, não deve causar qualquer espanto a limitação do direito de natureza, uma vez que a própria instituição do Estado é um claro momento limítrofe para o uso deste direito. Só o que é artificial, o que é pactuado pode garantir a paz. A natureza humana, egoísta, é plenamente incapaz de alcançar esse intento.

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Sobre o autor
Daniel de Mendonça

Docente e Pesquisador no Insituto de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDONÇA, Daniel. O fundamento da soberania e do Direito em Thomas Hobbes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2801, 3 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18609. Acesso em: 22 dez. 2024.

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