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A discutível constitucionalidade do crime de fuga do local do acidente de trânsito (art. 305, CTB) na visão da doutrina e da jurisprudência

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22/03/2011 às 09:23
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4. DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS

Observa-se que, quando o legislador definiu o tipo penal inscrito no art. 305 do Código de Trânsito, talvez não esperasse estabelecer uma enorme confusão quanto à sua interpretação, que vem comportando, desde a sua publicação, basicamente duas posições divergentes na doutrina.

A corrente majoritária entende que o art. 305 da Lei 9.503/97 não comporta discussão acerca de sua constitucionalidade, estando em harmonia com a Constituição Federal e, portanto, perfeitamente aplicável. Destacam-se Capez, Gonçalves, Rizzardo, Carneiro, Costa Júnior, entre outros. De outro lado, há quem sustente a inconstitucionalidade do crime em tela, sob os fundamentos de violação ao texto da Carta Magna, especialmente o disposto no art. 5º, LV e LXVII, por ofender o princípio da ampla defesa, onde ninguém é obrigado a produzir prova contra si, bem como a vedação da prisão civil por dívida, ressalvados os casos de responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e o de depositário infiel. Entre esses, destacam-se Gomes, Pires, Sales, Pimentel, Sampaio Filho, Nucci, entre outros.

Segundo Ninno, o verbo denunciador da conduta típica reside no fato de o condutor do veículo automotor afastar-se de um determinado local, significando sair do lugar do acidente. Nesse passo, o condutor atua de maneira a fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída pela circunstância de estar na direção de veículo automotor. Pouco importa, no caso, que o condutor tenha ou não atuado com culpa ou não provocado vítimas. Exemplifica dizendo que numa simples colisão, sem vítimas, contra o muro de uma casa, desde que o condutor se distancie do local para furtar-se à responsabilidade civil, já será suficiente para preencher o tipo do art. 305 do CTB [07].

Rizzardo afirma que a espécie indica que o condutor, uma vez verificado o acidente, simplesmente abandona o local, não aguardando a realização das providências de identificação dos veículos, dos condutores e demais anotações a cargo da autoridade de trânsito [08]. Observa que a única imposição é a de que não se deve se afastar do local, pois todos devem colaborar com a administração da justiça.

Porém, ressalte-se que mesmo entre aqueles que sustentam a perfeita aplicabilidade do referido dispositivo legal, há divergências quanto à sua consumação. Para alguns autores, a consumação não se dá tão-somente com o afastamento puro e simples do local, ainda necessitando, para a configuração da ação de fuga, o requisito da eficácia. Nessa linha de pensamento, reconhece Jesus que a fuga do local do acidente deve ser eficaz, no sentido de impedir a descoberta da autoria do fato, eximindo o motorista da responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Se esse foge, porém alguém anota os dados de identificação do seu veículo, o afastamento é inócuo, não havendo razão para a punição penal [9].

Discordando desse posicionamento, Capez e Gonçalves reputam que a consumação "dá-se com a fuga do local, ainda que o agente seja identificado e não atinja a sua finalidade de eximir-se da responsabilidade pelo evento. Trata-se de crime formal" [10]. O crime formal se consuma sem exigir produção de resultado, bastando o simples afastamento do local [11]. Nesse caso, ambos os exemplos citados configurariam crime.

No entanto, outra corrente doutrinária possui entendimento diverso, em que pese minoritária. Alega que o tipo penal estampado no art. 305 do Código de Trânsito não se coaduna com alguns princípios constitucionais, encerrando, portanto, uma inconstitucionalidade. Ao comentarem acerca dos crimes de trânsito, pouco tempo depois de publicada a Lei 9.503/97, Pires e Sales já alertavam sobre a problemática interpretação do dispositivo. Com efeito, impõe-se a transcrição da devida crítica:

Ressalvadas as boas intenções do legislador, a espécie contempla uma hipótese de flagrante inconstitucionalidade. Afigura-se absurdo compelir alguém a não se afastar do local do acidente, salvo se a sua presença é reclamada pelo socorro que deva prestar à vítima, quando tal dever é de outra ordem. Afora disso, não se concebe imponha a lei a obrigação de ficar no local para assumir a autoria ou para revelar detalhes do acontecimento, pois ninguém é obrigado a dar provas contra si mesmo. Recorde-se que a Constituição Federal garante, até mesmo para a pessoa presa, o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII). [12]

Na mesma linha de argumentação, apesar de defender a eficácia da fuga (que mais parece uma via alternativa, ante o não pronunciamento judicial de inconstitucionalidade), Jesus afirma que, no campo penal, a lei não pode exigir que o sujeito faça prova contra ele mesmo, permanecendo no local do acidente. Indaga, ainda, que se no homicídio doloso o sujeito não tem a obrigação de permanecer no local, não haveria como exigir essa conduta num crime de trânsito [13]. Ressalta o autor que ninguém tem o dever de se auto-incriminar, com fundamento no art. 8º, nº 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica [14].

Sufragando o mesmo convencimento, Gomes edifica sua concepção na análise do bem jurídico tutelado pelo Estado, que é um dos pilares da criação da norma, servindo de limite ao legislador. O referido autor, desde a publicação do Código de Trânsito, assim sustenta a inconstitucionalidade do crime em questão, ainda que sob premissa diversa:

No art. 305 (fuga do local) não se vislumbra com facilidade que o bem jurídico é a vida; na lesão corporal é a integridade física, na embriaguez ao volante é a incolumidade pública (segurança viária), etc. E no 305? Alguém poderia dizer: a obrigação de se responsabilizar penal e civilmente. Mas essa obrigação é de cunho antes de tudo moral. E pode o legislador transformar em crime uma obrigação moral? Continua válida a confusão entre o Direito e moral? [15]

Ao fazer as primeiras interpretações acerca do Código de Trânsito, Gomes trouxe à tona algumas dificuldades que poderiam advir da leitura e aplicação do art. 305 do aludido código. Salientou e continua a sustentar a obrigação moral, pois o comportamento do condutor, ao se afastar do local do acidente, está relacionado a um juízo de valor. Assim como Jesus, Gomes também ressalta que não se deve olvidar de que no crime de homicídio o autor não é obrigado a permanecer no local do fato.

No mesmo sentido, Lopes, ao afirmar que:

Esse dispositivo legal é de duvidosa constitucionalidade em face de se tratar, antes de mais nada, de obrigação expressivamente moral e, como tal, estranha aos limites do Direito que não pode impor conduta de vida deixando de reconhecer as diferenças entre as pessoas. Ademais disso, o texto legal impõe, na prática, o dever de auto-incriminação do acusado, o que afronta o princípio segundo o qual ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo, como, aliás, o garante o art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [16].

Mais uma entre as diversas evidências de que a discussão sobre a constitucionalidade e a aplicabilidade do art. 305 da Lei 9.503/97 ainda continua latente, encontra-se na obra de Nucci. Acerca da análise do núcleo do tipo, destaca-se a lição do autor:

Trata-se do delito de fuga à responsabilidade, que, em nosso entendimento, é inconstitucional. Contraria, frontalmente, o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo – nemo tenetur se detegere. Inexiste razão plausível para obrigar alguém a se auto-acusar, permanecendo no lugar do crime, para sofrer as conseqüências penais e civis do que provocou. Qualquer agente criminoso pode fugir à responsabilidade, exceto o autor de delito de trânsito. Logo, cremos inaplicável o art. 305 da Lei 9.503/97 [17].

De outro lado, contestando a argumentação de inconstitucionalidade do dispositivo, Capez e Gonçalves sustentam que não há ofensa a tal princípio, pois este, em verdade, somente tem cabimento após a formalização da acusação, valendo dizer, após a propositura da ação penal [18]. Capez segue, ainda, assinalando que não é plausível considerar que a infração penal em tela ofende o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, que veda prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Na verdade, informa que o agente é punido pelo artifício utilizado para burlar a administração da justiça, e não pela dívida decorrente da ação delituosa [19].

Sampaio Filho destaca que o legislador deu ao fato um condão civilista e por demais reparatório, tendo o escopo de evitar que o responsável, de alguma forma, burlasse a responsabilidade de seu ato. Acrescenta dizendo que permanecem indagações sobre o princípio da disponibilidade da ação civil reparatória, pois, se ocorreu um acidente sem vítima, ao prejudicado fica a faculdade em acionar ou não o culpado. E lança uma crítica ao perguntar que, se num caso concreto não desejasse a vítima acionar o culpado judicialmente, ser-lhe-ia justa a sanção penal? [20]

Por seu turno, Carneiro ensina que a sanção aplicada é de natureza penal e não civil. No tocante ao aspecto civil, afirma que não se pune a dívida civil, mas o ardil empregado para ludibriar a administração da justiça. Quanto ao aspecto penal, também alega que não há violação do princípio constitucional da ampla defesa, previsto no art. 5º, LV, devido ao seu cabimento somente após a propositura da ação. Enfatiza que a objetividade jurídica é a administração da justiça, já que o sujeito passivo é o Estado [21].

A jurisprudência reflete o posicionamento da corrente dominante, favorável à aplicação do dispositivo, em face da culpabilidade ou da reprovabilidade do injusto, caracterizada pelo afastamento do local, deixando o autor desamparada a vítima. É o que se pode perceber dos seguintes arestos:

A fuga é, com razão, considerada um grave indício de culpabilidade. Notadamente quando, ao empreendê-la, tem o motorista a cautela de desligar as luzes do veículo causador do atropelamento para evitar a identificação. [22]

CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ART. 305 DA LEI Nº 9.503/97. INCONSTITUCIONALIDADE. INOCORRÊNCIA. O delito de fuga do agente condutor do veículo previsto no art. 305 da Lei 9.503/97, não pode ser taxado (sic) de inconstitucional, uma vez que, e com efeito, ao exigir o tipo penal que o motorista permaneça no local, não está, a evidência, obrigando-o a uma auto-incriminação, pois o seu direito de defesa está garantido constitucionalmente; ademais, esse delito tem como objeto jurídico protegido a tutela da administração da justiça. [23]

O Supremo Tribunal Federal, visando dar

uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal acerca do instituto ora em comento, divulgou, no Informativo nº 523, trechos de decisões das quais algumas merecem transcrição:

"(...) O Estado - que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) - também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512).

Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, o direito (a) de permanecer em silêncio, (b) de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais, para efeito de perícia criminal. Precedentes.

- O exercício do direito contra a auto-incriminação, além de inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado, não legitima, por efeito de sua natureza constitucional, a adoção de medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a "persecutio criminis". Medida cautelar deferida. (...)"

"(...) PRISÃO PREVENTIVA - APLICAÇÃO DA LEI PENAL - POSTURA DO ACUSADO - AUSÊNCIA DE COLABORAÇÃO. O direito natural afasta, por si só, a possibilidade de exigir-se que o acusado colabore nas investigações. A garantia constitucional do silêncio encerra que ninguém está compelido a auto-incriminar-se. Não há como decretar a preventiva com base em postura do acusado reveladora de não estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução processual. (...).

(HC 83.943/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO)."

"(...) É importante assinalar, neste ponto, que, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, ninguém pode ser constrangido a produzir provas contra si próprio (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 180/1125, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 68.742/DF, Rel. p/ o acórdão Min. ILMAR GALVÃO, v.g.), tanto quanto o Estado, em decorrência desse mesmo postulado, não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados (já) fossem (RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Tais conseqüências – direito individual de não produzir provas contra si mesmo, de um lado, e obrigação estatal de não tratar qualquer pessoa como culpada antes do trânsito em julgado da condenação penal, de outro – qualificam-se como direta emanação da presunção de inocência, hoje expressamente contemplada no texto da vigente Constituição da República (CF, art. 5º, inciso LVII).

Não se pode desconhecer, por relevante, que a presunção de inocência, além de representar importante garantia constitucional estabelecida em favor de qualquer pessoa, não obstante a gravidade do delito por ela supostamente cometido, também impõe significativa limitação ao poder do Estado, pois impede-o de formular, de modo abstrato, e por antecipação, juízo de culpabilidade contra aquele que ainda não sofreu condenação criminal transitada em julgado (...)."

"(...) AS ACUSAÇÕES PENAIS NÃO SE PRESUMEM PROVADAS: O ÔNUS DA PROVA INCUMBE, EXCLUSIVAMENTE, A QUEM ACUSA.

- Os princípios constitucionais que regem o processo penal põem em evidência o nexo de indiscutível vinculação que existe entre a obrigação estatal de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta, de um lado, e o direito individual à ampla defesa, de que dispõe o acusado, de outro. É que, para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais (‘essentialia delicti’) que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente.

É sempre importante reiterar – na linha do magistério jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal consagrou na matéria – que nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes.

(HC 83.947/AM, Rel. Min. CELSO DE MELLO)."

"CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. DETERMINAÇÃO DO JUÍZO ‘A QUO’ DOS PACIENTES PRODUZIREM PROVA CONTRA SI MESMOS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO – ‘NEMO TENETUR SE DETEGERE’.

1. A auto-incriminação não encontra guarida na norma penal brasileira, nem na doutrina, muito menos na jurisprudência, o que legitima a insurgência dos Pacientes contra a determinação da prática de exercício probatório que possa reverter em eventual condenação penal. 2. Através do princípio ‘nemo tenetur se detegere’, visa-se proteger qualquer pessoa indiciada ou acusada da prática de delito penal, dos excessos e abusos na persecução penal por parte do Estado, preservando-se, na seara dos direitos fundamentais, especialmente neste caso, a liberdade do indivíduo, evitando que o mesmo seja obrigado à compilação de prova contra si mesmo, sob pena de constrangimento ilegal, sanável por ‘habeas corpus’. Cuida-se de prerrogativa inserida constitucionalmente nos princípios da ampla defesa (art. 5º, inciso LV), da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII) e do direito ao silêncio (art. 5º, inciso LXIII).

(HC 2005.04.01.023325-6/PR, Rel. Des. Federal TADAAQUI HIROSE - TRF/4ª Região)."

"Mostra-se extremamente precisa, a respeito da inadmissibilidade de o Poder Público constranger o indiciado ou acusado a cooperar na investigação penal dos fatos e a produzir provas contra si próprio, a lição ministrada pelo eminente Professor ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO ("O Princípio da Presunção de Inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica", "in" Revista do Advogado/AASP nº 42, p. 30/34, 31/32, 1994):

"Outra decorrência do preceito constitucional, ainda no terreno da prova, diz respeito à impossibilidade de se obrigar o acusado a colaborar na apuração dos fatos. O direito ao silêncio, também erigido à categoria de dogma constitucional pela Constituição de 1988 (artigo 5º, LXIII), representa exigência inafastável do processo penal informado pela presunção de inocência, pois admitir-se o contrário equivaleria a transformar o acusado em objeto da investigação, quando sua participação só pode ser entendida na perspectiva da defesa, como sujeito processual. Diante disso, evidente que o seu silêncio jamais pode ser interpretado desfavoravelmente (...)."

"A justa preocupação da comunidade internacional com a preservação da integridade das garantias processuais básicas reconhecidas às pessoas meramente acusadas de práticas delituosas tem representado, em tema de proteção aos direitos humanos, um dos tópicos mais sensíveis e delicados da agenda dos organismos internacionais, seja em âmbito regional, como o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 8º, § 2º, "g"), aplicável ao sistema interamericano, seja em âmbito universal, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, n. 2), celebrado sob a égide da Organização das Nações Unidas, instrumentos que reconhecem, a qualquer réu, dentre outras prerrogativas eminentes, o direito de não produzir provas contra si próprio e o de não ser considerado culpado pelo Estado antes do trânsito em julgado da condenação penal, cabendo referir, por relevante, nesse sentido, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (Artigo 48, n. 1) e a Convenção Européia dos Direitos Humanos (Artigo 6º, n. 2)."

"A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (‘TEDH’) compreende orientações respeitantes aos elementos constitutivos da presunção de inocência. Apenas a pessoa ‘objecto de uma acusação penal’ dela pode beneficiar. Os arguidos devem ser tratados como inocentes até que o Estado, através das autoridades responsáveis pela acção penal, reúna elementos de prova suficientes para convencer um tribunal independente e imparcial da sua culpabilidade. A presunção de inocência ‘exige [...] que os membros de um tribunal não partam da idéia pré-concebida de que o arguido cometeu a infracção que lhe é imputada’. O órgão jurisdicional não pode declarar um arguido culpado antes de estar efectivamente provada a sua culpabilidade. Um arguido não deve ser detido preventivamente excepto por razões imperiosas. Se uma pessoa for sujeita a prisão preventiva, deve beneficiar de condições de detenção compatíveis com a sua inocência presumida. O ónus da prova da sua culpabilidade incumbe ao Estado e todas as dúvidas devem ser interpretadas a favor do arguido. Este deve ter a possibilidade de se recusar a responder a quaisquer perguntas. Normalmente o arguido não deve contribuir para a sua própria incriminação. Os seus bens não devem ser confiscados sem um processo equitativo."

"Em suma: a invocação da prerrogativa contra a auto-incriminação é inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado, e o exercício desse direito, assegurado pela própria Constituição, não legitima a adoção de medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a "persecutio criminis".

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Cumpre destacar que, em 2007, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul se posicionou pela inconstitucionalidade do art. 305, do Código de Trânsito, na Apelação Criminal nº 70019108901.

Comungando do mesmo entendimento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 2008, julgou inconstitucional o mesmo dispositivo na Apelação Criminal nº 1.0000.07.456021-0/000 (1), nos termos da ementa a seguir:

EMENTA: INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - RESERVA DE PLENÁRIO - ART. 305, DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO - INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO FUNDAMENTAL AO SILÊNCIO - INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA. (Incidente de Inconstitucionalidade nº 1.0000.07.456021-0/000 – Comarca de Lagoa da Prata. 5ª Câmara Criminal. Rel.:Des. Sérgio Resende)

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, por meio da lavra da relatora Desembargadora Salete Silva Sommariva, nos autos da Apelação Criminal n. 2009.026222-9, também entendeu que o mencionado ilícito penal é incompatível com a Constituição Federal de 1988, razão pela qual arguiu incidente de inconstitucionalidade ao Tribunal Pleno, nos seguintes termos:

ART. 305 DO CTB – FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE PARA ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL OU PENAL – INCOMPATIBILIDADE COM A CF/88 – INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE – ARGÜIÇÃO AO TRIBUNAL PLENO (CF/88, ART. 97; CPC, ART. 481 E RITJSC, ART. 161)

I- Não se pode conceber que, pelo simples fato de estar na condução de um veículo, o motorista que se envolve em um acidente de trânsito tenha que aguardar a chegada da autoridade competente para averiguação de eventual responsabilidade civil ou penal, porquanto reconhecer tal norma como aplicável seria impor ao condutor a obrigação de produzir prova contra si, hipótese vedada pela Constituição Federal por ofender o preceito da ampla defesa (CF/88, art. 5º, LV) e do direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII). Ademais, estar-se-ia punindo o agente por uma conduta praticada por qualquer outro delinquente, qual seja, a de evasão da cena do delito, sem que por tal conduta receba sanção mais alta ou acarrete maior gravosidade em suas penas, estabelecendo-se forte contrariedade aos princípios da isonomia e da proporcionalidade.

Desse modo, afigura-se inviável vislumbrar outra responsabilidade penal a ser imputada ao motorista que se evade do local do crime que não a omissão de socorro, situação com disposição específica no CTB (art. 304). Assim, imaginar-se que o condutor envolvido em acidente, do qual resulta apenas danos materiais, pode ter sua liberdade cerceada, estar-se-ia criando nova modalidade de prisão por responsabilidade civil, matéria que encontra limites constitucionais inestendíveis pelo legislador ordinário, o qual sofre limitação pelo art. 5º, LXVII da CF/88, que impede a prisão civil por dívida, afora as hipóteses nele excetuadas.

II – Na hipótese de reconhecida pela Câmara a discutibilidade acerca da constitucionalidade de artigo de lei federal, justifica-se a argüição de incidente de inconstitucionalidade ao Tribunal Pleno, ex vi dos arts. 97 da CF/88, 481 do CPC e 161 do RITJSC.

Do corpo do acórdão, colhem-se alguns fundamentos de destaque que merecem transcrição:

(...)

Com efeito, ao se examinar o artigo 305 do CTB, tendo-se em mente a supremacia da Constituição Federal, pode-se concluir que, não obstante as boas intenções do legislador, tal comando normativo padece de vícios constitucionais que prejudicam a sua aplicabilidade, destacando-se a afronta aos princípios da isonomia, da proporcionalidade e, principalmente, da ampla defesa.

(...)

Ocorre que, no afã de facilitar a administração da justiça, em virtude da dificuldade de se aferir a autoria de delitos de trânsito em caso de fuga do condutor, o dispostivo feriu alguns dos mais importantes princípios constitucionais, como igualdade, proporcionalidade e, principalmente, ampla defesa, consubstanciada no direito ao silêncio e da não produção de prova contra si.

(...)

Por fim, como ponto nodal da tese de inconstitucionalidade, verifica-se que o referido artigo fere frontalmente o princípio constitucional do devido processo legal por não respeitar a ampla defesa, amparado no art. 5º, LV da CF/88, especificamente substanciado no direito do réu a permanecer em silêncio (CF/88, art. 5º, LXIII), e endossado pelo o princípio do processo penal de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si (nemo tenetur se degenere).

(...)

E por fim, elenca-se precedente da corte de justiça mineira, de relatoria original do Des. Hélcio Valentim, que em razão do voto do Des. Alexandre Victor de Carvalho, determinou a remessa dos autos ao plenário daquele tribunal, em virtude da arguição de inconstitucionalidade do art. 305 do CTB, nestes termos:

HOMICÍDIO CULPOSO - CONDUTA IMPRUDENTE - AGENTE QUE CONDUZ VEÍCULO AUTOMOTOR EM VELOCIDADE ACIMA DA PERMITIDA - FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE - IMPUTAÇÃO DE COMETIMENTO DO ARTIGO 305 DO CTB - INCONSTITUCIONALIDADE - PENA DE SUPENSÃO DA CNH - PROPORCIONALIDADE COM O QUANTUM DA PENA CORPORAL. Age com imprudência o agente que, sem habilitação, trafegando em lugar de enorme movimentação de veículos e pedestres, conduz automóvel em alta velocidade, gerando acidente com a morte da vítima. O delito de fuga à responsabilidade é inconstitucional, ofendendo o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo - nemo tenetur se detegere. Deve haver proporcionalidade entre o padrão estabelecido para a pena privativa de liberdade e o quantum estipulado para a pena restritiva de direitos de suspensão da carteira nacional de habilitação, devendo ser esta fixada no mínimo legal caso aquela também o seja, na forma do dispositivo no artigo 293 do Código de Trânsito Brasileiro.

E do corpo do voto:

Penso, como os juristas Guilherme de Souza Nucci e Luiz Flávio Gomes, que o referido tipo penal é inconstitucional, porquanto contraria o princípio pelo qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, não sendo razoável, ao meu entender, impor a alguém que permaneça no local do crime para se auto-acusar e, por conseguinte, sofrer as conseqüências penais e civis do ato que provocou.

[...]

Assim entendo, como já me pronunciei nesta Corte em outras oportunidades, que o referido tipo incriminador (art. 305 do CTB) ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal, e também o princípio da proporcionalidade previsto na mesma Constituição, no art. 5º, caput. (Ap. Crim. N. 1.0372.04.008035-3, rel. Des. Hélcio Valentim, rel. p/ acórdão Des. Alexandre Victor de Carvalho, j. Em 13-3-2007).

(...)

Sendo assim, evidencia-se o quão discutível é a constitucionalidade do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro, o que dá azo à argüição de incidente de inconstitucionalidade perante o Tribunal Pleno.

O mencionado incidente de inconstitucionalidade atualmente se encontra pendente de julgamento no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Contudo, pelo que se observa dos julgados de alguns outros tribunais, a tendência esperada é a de que a Corte Catarinense também julgue inconstitucional, em controle difuso, o art. 305 do Código de Trânsito, com amparo nos mesmos fundamentos elencados no presente estudo.

Diante das divergentes concepções interpretativas até aqui mencionadas, torna-se possível vislumbrar que a corrente partidária da constitucionalidade e aplicabilidade do preceito legal ora estudado parte de uma análise essencialmente dogmática e restrita do referido dispositivo em relação ao contexto da Lei 9.503/97.

Com efeito, é perceptível que o legislador pretendeu efetivamente punir aquele condutor de veículo que abandona o local do acidente para não ser identificado e escapar de suas responsabilidades perante a vítima. Por outro lado, em que pese minoritária, plausíveis são os argumentos da corrente adepta da inconstitucionalidade. Essa corrente parte de uma análise mais ampla, considerando não apenas o efetivo bem jurídico tutelado, o qual deve orientar o legislador ao criar a norma, mas também uma interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico, especialmente à luz dos fundamentos principiológicos da Constituição Federal. Ademais, não se pode olvidar de que o ônus da prova, em regra, cabe ao acusador, e não ao acusado.

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Sobre o autor
Marco Aurélio Souza da Silva

Pós-graduado em nível de especialização em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Assistente de Promotoria de Justiça no Ministério Público do Estado de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marco Aurélio Souza. A discutível constitucionalidade do crime de fuga do local do acidente de trânsito (art. 305, CTB) na visão da doutrina e da jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2820, 22 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18738. Acesso em: 17 nov. 2024.

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