Conclusões
O clamor social pela criminalização do condutor de veículo que se afasta ou foge do local do acidente para evitar a responsabilidade civil ou penal que lhe possa ser atribuída, inscrita no art. 305 do Código de Trânsito, desencadeou no legislador uma atuação repressiva, não logrando uma solução jurídica e socialmente adequada.
Na doutrina e na jurisprudência, verificou-se que o entendimento majoritário é no sentido da perfeita adequação do dispositivo legal aos preceitos constitucionais. Tal posicionamento sustenta-se na suposta preocupação do legislador em tipificar o crime em questão revelando o objetivo de punir aqueles que tentam obstar ou dificultar o trabalho da Justiça no esclarecimento dos fatos ou, ainda, impedir sua identificação para fins de responsabilização ulterior abandonando o local do acidente.
A concepção apresentada por essa corrente é interessante, mas não está imune a críticas. Não obstante minoritária, a corrente que entende o referido tipo penal como violador de alguns princípios constitucionais, especialmente o da não autoincriminação, inserido no da ampla defesa, também apresenta coerência em suas argumentações. A razão está no fato de suas concepções sobre o crime de fuga do local do acidente partirem de uma análise sistemática do ordenamento jurídico, fundado no bem jurídico tutelado pelo Estado, nos preceitos fundamentais contidos no Pacto de São José da Costa Rica e na Constituição Federal.
Tendo em vista que alguns tribunais começam a despertar para a inconstitucionalidade do referido ilícito penal, ainda que em controle difuso, talvez seja este um caminho sem volta.
Portanto, conclui-se que o disposto no art. 305 do Código de Trânsito conflita com o princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), constitucionalmente assegurado, decorrente das garantias do devido processo legal e da ampla defesa, bem como da presunção de inocência, valores estes agasalhados no art. 5º, incisos LIV, LV e LVII, da Constituição Federal. Não é demais lembrar que está também vinculado à preservação da dignidade humana, um dos postulados norteadores do Estado brasileiro, como Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1º, III, do mesmo diploma legal. E, ainda, saliente-se que o referido princípio está previsto expressamente no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em seu art. 14, nº 3, g, e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, em seu art. 8º, nº 2, g, ambos ratificados pelo Brasil.
Referências bibliográficas
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[2] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 40.
[3] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 40.
[4] JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503/97). p. 143-144.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação penal especial. p. 298-299.
[6] COSTA JÚNIOR, Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do Código de Trânsito. p. 67.
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[8] RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito brasileiro. p. 788-789.
[9] JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503/97). p. 143.
[10] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 40.
[11] CARNEIRO, Joseval. Comentários aos crimes de trânsito. p. 34.
[12] PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito na Lei nº 9.503/97. p. 210.
[13] JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503/97). p. 142.
[14] Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de San José de Costa Rica [...] Parte I – Deveres dos Estados e Direitos Protegidos [...] Capítulo II – Direitos Civis e Políticos [...] Art. 8º. Garantias judiciais [...] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.
[15] GOMES, Luiz Flávio. CTB: primeiras notas interpretativas. Boletim IBCCrim. [s.1.], nº 61, p. 4-5, dez. 1997.
[16] LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Crimes de trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998., p. 219.
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[18] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 39.
[19] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação penal especial. p. 297.
[20] PIMENTEL; Jaime; SAMPAIO FILHO, Walter Francisco. Crimes de trânsito comentados: analisados à luz da Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. São Paulo: Iglu, 1998, p. 49-50.
[21] CARNEIRO, Joseval. Comentários aos crimes de trânsito. p. 34.
[22] RT 316/338.
[23] BRASIL. Apelação criminal nº 1.275.003/7. 8ª Câmara. Julgado em 18 de outubro de 2001. TACrim-SP. Relator: René Nunes.
[24] COSTA JÚNIOR, Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do Código de Trânsito. p. 67. Os autores, nessa obra, limitam-se a descrever a classificação do delito em exame sem adentrar na discussão da sua possível inconstitucionalidade.
[25] Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves.
[26] COSTA JÚNIOR, Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do Código de Trânsito. p. 67.
[27] MONTEIRO, Ruy Carlos de Barros. Crimes de trânsito (e a aplicação da Lei nº 9.099, de 26.9.1995, e a responsabilidade civil). p. 199.
[28] RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito brasileiro. p. 789.
[29] BRASIL. Apelação criminal nº 1.215.177/4 . TACrim-SP. Relator: Mesquita de Paula.
[30] RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito brasileiro. p. 789.
[31] PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Palo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 62.
[33] PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 96.
[34] GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 24 (Série As ciências criminais no século XXI: V.5).
[35] PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito na Lei nº 9.503/97. p. 54.
[36] GOMES, Luiz Flávio. As garantias mínimas do devido processo criminal nos sistemas jurídicos brasileiro e interamericano: estudo introdutório. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 222.