Um dos maiores obstáculos inerentes à aposentadoria especial daqueles que exercem atividade policial concerne à necessidade de uma exaustiva exegese para a aplicação das normas que disciplinam a matéria sem impor à classe dos policiais uma distinção prejudicial e que afronta os mais comezinhos princípios e normas emanadas do texto constitucional.
Assim, não se trata simplesmente de saber qual norma ser aplicada, mas a atividade do operador do direito se volta a interpretar sistematicamente o conjunto de normas que regem a aposentadoria do funcionário policial e, o que demanda ainda mais empenho no exercício exegético, a atividade do hermeneuta, necessariamente, deve integrar a jurisprudência emanada do Superior Tribunal de Justiça e, especialmente, do Supremo Tribunal Federal à interpretação a ser dada às normas que regulam a matéria.
É inconteste a pertinência jurídica, social e moral da aposentadoria especial do Policial, haja vista sua condição de carreira exclusiva de Estado e essencial à Justiça, ordem pública, além das características adversas e extraordinárias em que desempenha suas funções, absolutamente diferentes da maioria dos demais funcionários públicos.
Ocorre que a matéria atinente à aposentadoria do funcionário policial se mostra ainda mais tormentosa quando se trata da incorporação do tempo de serviço em atividades outras que não estritamente policiais exercidas sob condições especiais ao tempo necessário para a aposentadoria especial do funcionário policial previsto na Lei Complementar n º 51/1985.
Importante destacar o Supremo Tribunal Federal já declarou em diversos julgados que a Lei Complementar n º 51/1985 foi recepcionada pela Constituição Federal, razão pela qual os seus dispositivos continuam em conformidade com a Carta Magna e, ainda, com as Emendas Constitucionais de nº 20, 41 e 47.
Ademais, além do STF, o Tribunal de Contas da União decidiu nos autos do TC n º 020.320/2007-4 que a LC nº 51/1985 foi totalmente recepcionada pela Constituição Federal, não sendo cabível a aplicação de leis vigentes que impõe aos policiais a aposentadoria proporcional em afronta ao preceito emanado da LC nº 51/1985.
Assim, o funcionário policial tem o direito à aposentadoria especial com proventos integrais após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial.
Assim, a grande celeuma é quanto à possibilidade de incorporação do tempo de serviço em atividades consideradas de risco e que prejudiquem a saúde ou a integridade física ao requisito temporal específico previsto na LC nº 51/1985, ou seja, se é possível ao policial incorporar à exigência temporal específica de 20 (vinte) anos o tempo de serviço exercido em atividades que não sejam estritamente policiais, mas que se enquadram como atividades de risco, danosas, penosas, que prejudiquem a saúde ou a integridade física do funcionário.
A simples interpretação literal leva a concluir que o policial deve exercer atividades estritamente policiais durante 20 (vinte) anos e mais 10 (dez) anos em atividades exercidas em condições comuns para fazer jus à aposentadoria especial, mas a simples literalidade da norma não dispõe sobre o trabalho exercido em condições especiais anteriores ao exercício da atividade policial e muito menos sobre a metodologia a ser utilizada para incorporação do tempo de serviço necessário para a concessão da aposentadoria especial.
O que se constata é que a LC nº 51/1985 dispõe sobre dois requisitos que devem ser observados para a concessão da aposentadoria especial com proveitos integrais, sendo um voltado à questão da humanização da atividade laboral e outro ligado à seguridade social.
Assim, houve a exigência do transcurso de 20 (vinte) anos de exercício da atividade laboral em condições especiais e 10 (dez) anos de exercício de serviços em atividades comuns, tendo restado uma lacuna no que concerne a casos em que o policial soma 30 (trinta) anos de serviço dos quais 20 (vinte) anos são de serviços prestados em condições especiais, mas sem se tratar especificamente de atividade estritamente policial
Um exemplo é o caso de policial civil que tenha prestado serviços às forças armadas por 10 (dez) anos e veja indeferido o pleito para incorporar o referido tempo de serviço aos 20 (vinte) anos previstos na LC nº 51/1985 como requisito específico para a concessão da aposentadoria especial com proveitos integrais.
Cabe destacar que ao negar ao policial a incorporação do tempo de serviço em atividades especiais não se faz outra coisa senão impor ao funcionário policial a sujeição a uma aberração jurídica, haja vista que o funcionário policial passa a fazer parte da única classe a ser submetida a atividades exercidas em condições reconhecidamente especiais por tempo superior aquele exigido para todos os demais funcionários públicos, o que é um despautério decorrente de uma lacuna hermenêutica.
Ora, se o policial trabalhou 05 (cinco) anos ou seja qual período for em condições que prejudiquem a sua integridade física e a sua saúde, portanto, em condições de reconhecido risco e desgaste físico e psicológico, nada mais justo que o tempo de serviço em referidas atividades seja incorporado e utilizado para fins de cálculo dos 20 (vinte) anos exigidos como requisito específico para a aposentadoria especial com proveitos integrais.
Portanto, como exemplo, se antes de exercer a atividade policial o policial exerceu 10 (dez) anos de atividade comum, 10 (dez) anos de trabalho em condições especiais e conta com mais 10 (dez) anos de atividades estritamente policiais, nada obsta que seja concedida aposentadoria especial com proveitos integrais, haja vista que a interpretação sistemática do ordenamento jurídico torna necessária a integração da LC nº 51/1985 com o que preceitua o § 4º do Artigo 40 da Constituição Federal e, ainda, com o que dispõe o Artigo 100 da Lei nº 8.112/1990 e Artigo 57, §5º da Lei nº 8.213/91.
A conclusão acima não decorre de simples exercício mental, mas de atividade interpretativa exaustiva decorrente da aplicação dos diversos métodos e técnicas oriundas da hermenêutica jurídica.
Impende destacar que a Lei Complementar nº 51/1985 não deve ser interpretada isoladamente, sob pena de se restringir e até mesmo negar o direito dos policiais a aposentadoria especial, o que seria um atentado à boa técnica legislativa e aos direitos dos funcionários policiais e macularia perniciosamente o princípio da isonomia .
Para se chegar à verdadeira mensagem consubstanciada na LC nº 51/1985, torna-se necessário estudar e analisar toda a discussão em torno da aprovação do Projeto de Lei Complementar nº 249/1985 que deu origem à LC nº 51/1985.
Assim, importante transcrever o primeiro pronunciamento sobre o PLP nº 249/1985 realizado pelo então Deputado Federal Rubens Ardenghi – PDS, o qual fez diversas pontuações, dentre as quais destaca-se:
´´(...)
Merece louvores, inegavelmente, a proposta presidencial, pois conforme todos sabemos é profundamente desgastante a função policial, tornando-se difícil o trabalho até uma idade mais avançada, porque, para tanto, não colaboram o estado físico e o estado psicológico do policial, condições sem as quais a atividade não poderá ser desempenhada em toda sua plenitude.
É justa porque várias outras atividades, não tanto desgastantes quanto a policial já gozam do direito de aposentadoria com tempo menor que o normal, podendo citar aqui como exemplos os professores, os policiais militares, os operadores de raio x, etc..
(...)´´ [01]
O legislador não concedeu ao funcionário policial a possibilidade de se aposentar em tempo menor que os demais funcionários públicos simplesmente em decorrência de exercerem a atividade policial, mas a aposentadoria especial decorreu do reconhecimento de que a atividade policial está enquadrada entre aquelas que causam danos, potenciais e em concreto, à saúde e/ou integridade física do trabalhador, por ser, no mínimo, perigosa e penosa.
Portanto, para concluir acerca da possibilidade de incorporar o tempo de serviço em condições especiais àquele tempo de 20 (vinte) anos previsto no inciso I do Artigo 1º da LC nº 51/1985, deve ser levado em consideração que a atividade estritamente policial prevista expressamente na LC nº 51/1985 como requisito para aposentadoria especial está englobada pelas exceções previstas no §4º do Artigo 40 da Constituição Federal.
Importante frisar que não é a atividade policial em si que garante ao funcionário policial a aposentadoria especial com proveitos integrais, como se fosse um privilégio, mas são as condições de trabalho do policial que atrai a aplicação da LC nº 51/1985, haja vista o reconhecimento de que o exercício da atividade policial se enquadra perfeitamente no conceito de periculosidade e penosidade previsto na Lei Orgânica da Previdência Social, n º 3.807, de 26.08.1960 – que introduziu no mundo jurídico o instituto da aposentadoria especial.
No trato da permissividade legal, cabe destacar que não há norma que proíba a incorporação do tempo de serviço em atividades especiais para fins de concessão da aposentadoria especial ao policial de modo que o tempo não seja contado como tempo de serviço comum, mas seja integrado aos 20 (vinte) anos para contagem do tempo especial para a aposentadoria daquele que exerce atividade policial.
A Lei nº 8.112/90 dispõe em seu Artigo 100 que o tempo de serviço público federal, inclusive o prestado às forças armadas, deve ser contado para todos os efeitos, ou seja, se o tempo de serviço for de atividade comum, assim será computado para fins de aposentadoria, mas se for caso de serviço prestado em atividades reconhecidas como insalubres, perigosas e penosas, o tempo de serviço em tais condições deve ser reconhecido como especial e, no caso dos policiais, deve ser incorporado ao tempo específico previsto no inciso I do Artigo 1º da LC nº 51/1985 para fins de concessão da aposentadoria especial.
Já o Artigo 57 da Lei nº 8.213/91 dispõe em seu parágrafo quinto que o tempo de trabalho exercido sob condições especiais que sejam ou venham a ser consideradas prejudiciais à saúde ou à integridade física será somado, após a respectiva conversão ao tempo de trabalho exercido em atividade comum, razão pela qual não há pertinência jurídica e sequer lógica de não se permitir a incorporação do tempo de trabalho exercido sob condições especiais em atividades que não sejam estritamente policiais para fins de concessão da aposentadoria especial.
Além da interpretação sistemática das normas que integram o ordenamento jurídico, há a necessidade de integrar as várias decisões do Supremo Tribunal Federal que tratam de matéria correlata ao tratado no presente artigo.
Assim, notória a importância da interpretação das decisões emanadas do STF que vem aplicando jurisprudência firmada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3817 no sentido de reafirmar que o inciso I, artigo 1º da Lei Complementar n º 51/1985 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, em conjunto com as decisões em sede de Mandado de Injunção que reconheceram a omissão do Poder Legislativo quanto à falta de norma regulamentadora do direito a aposentadoria especial dos servidores públicos e removeram o obstáculo criado por essa omissão, tornando viável o exercício do direito consagrado no Artigo 40, §4º da Constituição Federal, nos termos do Artigo 57 da Lei nº 8.213/91.
A interpretação conjunta das referidas decisões torna possível concluir que o tempo de trabalho em condições especiais desenvolvido pelo policial antes de assumir a atividade policial deve ser considerado como tal, ou seja, deve ser considerado como tempo de trabalho especial e jamais como tempo de trabalho comum, sob pena de se impor ao policial condição de trabalho desumano, degradante e discriminatório.
A lei não pode ser interpretada isoladamente, principalmente no caso referente à aposentadoria especial prevista na LC nº 51/1985, sob pena de se esvaziar o sentido da norma e tornar impossível o alcance da vontade do constituinte ao estabelecer critérios diferenciados para aposentadoria daqueles servidores que desenvolvem ou tenham desenvolvido trabalhos em condições penosas, insalubre e/ou perigosas.
Assim, a interpretação da LC nº 51/1985 em consonância com as demais normas que integram o ordenamento jurídico e, ainda, de acordo com os entendimentos firmados pelo Supremo Tribunal Federal, tornam possível ao policial a incorporação do tempo de trabalho em condições especiais pretérito ao desempenho da atividade policial para fins de aposentadoria especial, cabendo destacar que referido tempo deve ser considerado como de serviço em condições especiais e não como de serviço em condição comum, sob pena de sufragar do policial o direito de ver reconhecido a continuidade do desgaste físico, emocional e psicológico decorrente do trabalho desenvolvido em condições especiais.
Portanto, seja qual for o tempo de trabalho em condições especiais desenvolvido pelo servidor antes de assumir a função policial, deve ser levado em consideração e ser incorporado aos 20 (vinte) anos exigidos como requisito para a aposentadoria especial do funcionário policial.
Importante asseverar que o presente artigo não tem o objetivo de esgotar o debate sobre o tema levantado, mas se volta a trazer à baila um assunto de relevância, não somente para a nobre classe dos policiais como também para toda a sociedade.
Nota
01 http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=234510