O presente trabalho trata de uma análise sucinta acerca da aplicação do princípio da insignificância na esfera dos bens jurídicos metaindividuais, tema que gera vigorosos debates no mundo jurídico.
Bem jurídico metaindividual seria uma espécie de bem jurídico que, ultrapassando o interesse individual, passa a abranger interesses de grupos determinados, determináveis ou indeterminados de pessoas, de forma que os indivíduos não detêm sua disponibilidade sem afetar a coletividade. O sistema de saúde, econômico, tributário, financeiro, consumerista e o meio-ambiente seriam exemplos de bens jurídicos supra-individuais, pois sua violação acarretaria reflexos em grupos sociais ou em toda sociedade, conforme o caso concreto.
O caráter supra-individual da tutela penal é a criminalização das condutas que afetam conceitos indeterminados, visando à proteção da coletividade. Logo, as condutas praticadas nesse tipo de crime são difíceis de serem identificadas e dessa maneira a percepção social é diferenciada, ou seja, a criminalidade econômica não é associada à delinqüência como fenômeno marginal. Com isso os agentes desses delitos, na grande maioria das vezes, não são enxergados como verdadeiros criminosos por eles mesmos, por outros criminosos e pelo público em geral.
Modernamente, o Estado se abdicou de reprimir certas condutas que, em face de seu valor (insignificância da afetação do bem jurídico), se tornam irrelevantes. Tal posicionamento corrobora com o entendimento doutrinário de César Roberto Bittencourt, que ensina que "A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico". [01]
Nesse ínterim, reza o Princípio da Insignificância que para uma conduta ser considerada criminosa, além do juízo de tipicidade formal (adequação do fato ao tipo descrito em lei), mister se faz o juízo de tipicidade material, traduzido na verificação da ocorrência do pressuposto básico da incidência da lei penal, ou seja, a lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade. Assim, caso a conduta, apesar de formalmente típica, cause uma lesão desprezível ao bem jurídico protegido, não há que se falar em tipicidade material, transmutando o comportamento típico em atípico, tornando-o indiferente ao Direito Penal, em razão do desvalor de seu resultado.
É certo que o princípio da insignificância não encontra um suporte genérico documentado pelo Congresso Nacional. Contudo, o Direito não se faz só da lei escrita, pelo contrário, ele se constrói, sobretudo, da interpretação dela e da Constituição, principalmente, porque esta não é algo estagnado no tempo, travado pela necessidade de formalização e publicação de escritas, como o é a norma oriunda do Legislativo. A falta de uma previsão expressa do princípio da insignificância não impede que o magistrado, como intérprete de nosso sistema jurídico o aplique a casos concretos e especiais que mereçam. Portanto, o princípio da insignificância no Direito Penal tem como fundamento a intervenção mínima e visa estabelecer uma adequada proporcionalidade entre o delito e a pena, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, nos ditames do art. 59, do CP. O confronto axiológico (valorativo), no caso concreto, entre a conduta formalmente típica e o grau da lesão jurídica causado é que permite inferir se há ou não necessidade de intervenção penal e, portanto, se é possível aplicar o princípio da insignificância.
O princípio enunciado pioneiramente por Klaus Roxin galgou rápida aceitação em nossa doutrina e jurisprudência [02] pátria principalmente na tutela de bens jurídicos individuais, onde a bagatela é de fácil constatação e salta aos olhos de qualquer um. Ao passo que, na tutela de bens jurídicos supra-individuais, é difícil constatar que lesão seria significativa ao bem jurídico protegido, posto que tais bens trazem em sua essência uma conflituosidade social (não deixam de proteger também um interesse individual, porém, não é a lesão a este que produz a tipicidade penal).
Para sanar tais questionamentos, apenas um critério deve ser aplicado para se estabelecer à existência de infração penal de bagatela, o qual está consubstanciado no desvalor da própria infração, suficiente para a tipificação, ou seja, caso afete o bem jurídico de maneira irrisória ou insignificante, ali está o nascedouro de um delito de bagatela, podendo-se aplicar o princípio da insignificância. Salienta-se que o princípio da insignificância é um instrumento de interpretação restritiva do direito penal, que busca descriminalizar condutas que embora sendo típicas não atingem de maneira relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal.
Nosso próprio ordenamento jurídico apresenta alguns critérios de desvalidação nos diversos tipos de bens jurídicos, indicando a aplicação deste princípio em inúmeras situações, tais como em crimes contra o sistema previdenciário, em que a insignificância está disciplinada no art 4º da Portaria MPAS nº 4.910/99, que considera atípica a dívida ativa do INSS de valor que não ultrapasse a quantia de R$ 5.000,00, posicionamento este que encontra respaldo na jurisprudência [03].
O mesmo se diga quando o assunto em pauta são os casos de contrabando e descaminho, onde o crime é desconsiderado quando o valor do tributo devido for inferior a R$ 10.000,00, ao mínimo executável pela Fazenda Pública, segundo o que preceitua o art. 20 da Lei nº 10.522/02 [04], com a redação dada pela Lei 11.033/2004.
Nas infrações estabelecidas na Lei de Drogas, a jurisprudência [05] considera pequenas quantidades de entorpecentes como insignificantes, sem repercussão na seara penal.
Já a legislação ambiental, em especial, a Lei n° 9.605/98, apesar de não aludir expressamente à possibilidade da aplicação do princípio da insignificância, em seu artigo 6º, ao indicar a forma pelo qual deve ser aplicada a sanção penal, possibilita a aplicação do princípio da insignificância ao juiz, na análise do fato concreto, pois se não há gravidade não há necessidade de ser considerado crime, ainda que possa ser aplicada uma sanção administrativa ou civil. Portanto, podemos dizer que há a possibilidade da aplicação do princípio da insignificância, aliado ao princípio da proporcionalidade esculpido no art. 59 do Código Penal e seus desdobramentos: adequação, necessidade e proporcionalidade estrito senso. Contudo, não podemos olvidar que o reconhecimento do princípio da insignificância deverá ser reservado para as hipóteses excepcionais, principalmente pelo fato de que as penas previstas na Lei nº 9.605/98 são leves e admitem transação ou suspensão do processo.
Desta forma, conclui-se que a princípio, toda e qualquer conduta deveria ser possível à aplicação do princípio da insignificância. Todavia, urge que se observe a afetação do bem jurídico tutelado. Se a afetação for mínima, pode-se aplicar a esta conduta o princípio da insignificância, pois num Estado Democrático de Direito, não se pode aceitar a incriminação de uma conduta não lesiva ou minimamente lesiva a um bem jurídico, ainda que esse bem jurídico tenha caráter metaindividual.
De acordo com Guilherme de Souza Nucci, o direito penal deve ser visto como subsidiário aos demais ramos do Direito. Fracassando outras formas de punição e de composição de conflitos, lança-se mão da lei penal para coibir comportamentos desregrados, que possam lesionar bens jurídicos tutelados.
O princípio penal da insignificância, adotado pela jurisprudência no Brasil e difundido pela doutrina, possui guarida implícita no modelo constitucional brasileiro. Entretanto, o alargamento de seu campo de incidência, ignorando as suas raízes e finalidade, deve ser é aplicado diante de comprovada necessidade, para que não represente uma ameaça à sobrevivência desse importante vetor de interpretação material do direito penal.
Referências Bibliográficas:
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BITTENCOURT. Cesar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 4ª ed. SP: RT, 2002.
LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da Insignificância no Direito Penal: análise à luz da Lei 9.099/95, Juizados Especiais Criminais, Lei nº 9.503/97, Código de Trânsito Brasileiro e da Jurisprudência Atual. 2ª ed. SP: RT, 2000, p. 42 e 176.
MAIA. Isaque Brasil. Bem Jurídico Supra-Individual. Cadernos Colaborativos. Disponível em: <http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/Bem_jur%C3%ADdico_supra-individual>.Acesso em: 23.11.2009.
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WILLEMANN, Zeli José. O princípio da insignificância no Direito Ambiental. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 686, 22 maio 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6753>. Acesso em: 25.11. 2009.
Notas
- BITTENCOURT. C. R. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 4ª ed. SP: RT, 2002, p. 45.
- TACRIM-SP. Apelação nº 1.278.997/5. 10ª Câmara. Birigui/SP. Rel. Vico Mañas. 21.11.200. V.U. nº 5.198.
- STJ. REsp nº 261403. Rel. Gilson Dipp. 16.10.2001.
- STJ. REsp nº 246590. Rel. Paulo Gallotti. 17.05.2001.
- STJ. AgRg nº 612357. Rel. Paulo Gallotti. 15.05.2006.