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Fundamentos filosóficos da doutrina onusiana de intervenções internacionais.

Da guerra justa à responsabilidade de proteger

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29/03/2011 às 10:01
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2.CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOBERANIA ESTATAL

No âmbito das relações internacionais a soberania é um dos pilares do jogo de interesses entre as nações, cuja construção pode ser remetida à Paz de Vestfália [37], em 1648.  Segundo a lição de Williams Gonçalves e Guilherme Silva [38], no que concerne às relações interestatais, coloca-se a regra absoluta de não-intervenção em assuntos internos, não obstante os de ordem política e legal, como também os de ordem religiosa. De acordo com os estudiosos das relações internacionais, a soberania, bem como os conceitos essenciais de Estado e Território, não são estáticos, sofrendo influência direta dos contextos sócio-históricos em que são analisados.

Para Dallari [39], a soberania é uma concepção de poder estatal incontestável e o seu significado é verificado sobre o poder que exerce sobre os indivíduos e sobre todo o limite territorial do Estado.

A abordagem de Luigi Ferrajoli sobre o tema em A Soberania no Mundo Moderno é esclarecedora, posto que o autor reapresenta as ideias, já expostas em linhas pregressas, do jurista espanhol Francisco de Vitoria.

Para Ferrajoli, períodos de instabilidades e mudanças, o Estado torna-se um ente autônomo no cenário jurídico e político internacional. Deste quadro, o jurista italiano, retira duas conseqüências, a saber: 1. A negação do próprio direito internacional. 2. O espírito de potência e vocação expansionista e destrutiva (alimentando o paradigma da soberania estatal).

Tal paradigma, ainda segundo Ferrajoli [39], atinge seu auge e seu declínio na primeira metade do séc. XX, no período das duas guerras mundiais (1914-1945). Seu término é dado pela criação da ONU (Organização das Nações Unidas) em 1945 e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Os dois fatos considerados chaves para tirar o mundo, ao menos no plano normativo, do Estado de natureza o levando para um Estado civil. A soberania deixa de ser livre e se subordina a duas normas fundamentais: 1. O imperativo da paz; 2. A tutela dos direitos humanos. Neste sentido, o autor preconiza que a carta da ONU equivale a um contrato social internacional, limitando o poder Soberano.

Aduz ainda o mestre italiano que o Estado nacional como sujeito soberano encontra-se, hodiernamente, em uma crise que surge sob dois prismas. De cima, o primeiro deles, por causa da transferência maciça para sedes supra-estatais ou extra-estatais de boa parte de suas atribuições – defesa militar, controle da economia, política monetária, combate à grande criminalidade. De baixo, devido aos impulsos centrífugos e processos de desintegração interna, os quais são engatilhados, de forma muitas vezes violenta, pelos próprios desenvolvimentos da comunicação internacional, e que torna sempre mais difícil e precário o cumprimento das outras duas grandes funções, a saber: a unificação nacional e a pacificação interna.

A crise percebida por Ferrajoli e por outros pensadores do direito contemporâneo pode ser tomada como uma crise atinente à limitação da soberania face às transformações e exigências do mundo hodierno, e, uma consequência da situação atual do Estado, é a restrição de sua soberania. Antes vista como um instituto absoluto, ela passa a ser limitada pelo respeito, cada vez mais crescente, aos direitos humanos. Fato este que enseja a compreensão de que a soberania, hoje, pode ser relativizada e violada quando um Estado não cumprir sua função primaz de proteção aos seus cidadãos, ou quando, a própria autoridade estatal é sujeito ativo de graves violações dos direitos fundamentais de seu povo.

Vale a lembrança neste momento de que: a Declaração da Carta das Nações Unidas em 1945 e a Declaração dos Direitos do Homem, em 1948, conduzem também para o plano internacional os limites à soberania até então pertencentes exclusivamente à ordem intra-estatal, ocorrendo, desta feita, um processo de internacionalização da proteção dos direitos fundamentais, exigindo dos Estados, uma práxis que se dirija tanto para seus interesses particulares quanto para aquilo que se observa como o interesse comum dos povos.


3 O PANORAMA CONTEMPORÂNEO

É certo que mais de dois séculos se passaram desde o surgimento das idéias kantianas acerca de um jus cosmopoliticum. Diante do tempo transcorrido, ainda é possível adotar na atualidade os conceitos apresentados por Kant, em 1795?

A resposta a esta indagação não foge ao estudo dos acontecimentos históricos que acompanharam o desenvolvimento do Direito Internacional, notadamente a partir do início do século XX, com a ocorrência de duas Guerras de alcance mundial, até os dias atuais, nos quais efervescem as preocupações acerca da paz e da guerra, dentre outros temas concernentes às relações interestais.

O opúsculo kantiano é uma obra onde a moral e a política apresentam-se como entes indissociáveis, neste sentido, Kant acreditava na evolução da espécie humana sob o aspecto moral. Neste ponto de vista, o efeito pedagógico advindo do aprendizado com os horrores da guerra, e, a percepção de seus altos custos econômicos e sociais, unidos a um crescente sentimento de moralidade entre os cidadãos, concomitantemente ao desenvolvimento da ideia de um direito cosmopolita, transformaria a guerra em um recurso progressivamente fútil entre regimes democráticos.

Com a criação dos Direitos do Homem, no panorama pós-guerra, novamente entra em cena essa esperança kantiana. E, nos dias atuais, conforme a retrocitada profecia de Kant, a violação de um direito num lugar da Terra acaba por refletir sobre toda a humanidade.

No entanto, em face dos diversos interesses interestatais postos em jogo, notadamente no período que sucede às duas grandes guerras desaguando nos dias atuais, atingir o ideal kantiano demandou a utilização de instrumentos que, quando manuseados de forma eficaz, puderam auxiliar no cumprimento, ao menos parcial, desta tarefa hercúlea. Outrossim, entra em cena um novo formato de estruturação entre os Estados Soberanos, que, em função da necessidade de ajuda mútua e reciprocidade começam a se agrupar, formando as chamadas Organizações Internacionais, conforme será demonstrado abaixo.

3.1 As Organizações Internacionais

O ideário concernente à criação de instituições supranacionais não é recente. A intenção de unir Estados em torno de um só corpo político ou jurídico teve sua origem no pensamento dos mais diversos autores em seus respectivos momentos históricos, tendo como elemento comum, a imperiosa necessidade de buscar a colaboração entre os Estados.

No intuito de aclarar o seu significado, adota-se a conceituação de Organização Internacional oferecida pelos professores Ricardo Seitenfus e Deisy Ventura [40], segundo os quais: "as Organizações Internacionais são associações voluntárias de Estados constituídas através de um Tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns por intermédio de uma permanente cooperação entre seus membros".

Neste sentido surgem, em um primeiro momento, a Sociedade das Nações (SDN), de curta duração, e, posteriormente, a Organização das Nações Unidas (ONU), como aparelhos interestatais de maior proporção. [41]

3.1.1 Sociedade das Nações

Após o choque da Primeira Guerra Mundial, diante da constatação da profundidade da tragédia humana e da destruição material decorrente da intensidade dos instrumentos bélicos utilizados no conflito, as nações mais influentes, em especial as vencedoras, conscientizaram-se da necessidade de criação de uma organização de caráter universal voltada para a paz e a segurança internacionais. Assim, é criada pelo Tratado de Versalhes, de 1919, a primeira organização de vocação universal, nomeada de Sociedade das Nações, cuja finalidade primaz era a manutenção da paz.

Em linhas gerais, o Pacto ditava que para o desenvolvimento da cooperação entre as nações e para a garantia da paz e da segurança internacionais era indispensável que os Estados assumissem diversos compromissos, em especial, não recorrerem individual e unilateralmente à guerra, respeitando, desta feita, as normas de Direito Internacional, observando, com isto, as obrigações mútuas estabelecidas nos tratados e se relacionando sob os pilares da justiça e da honra. [42]

Não resta dúvida de que a Sociedade das Nações, tendo sido a primeira organização de alcance mundial, com vistas à organizar um sistema de segurança coletiva, trouxe importantes contribuições para a comunidade internacional, desencadeando, a partir de seus pilares, inúmeros tratados de criação de organizações internacionais, com as mais diferentes finalidades e áreas de atuação; admitindo o estabelecimento de uma força militar internacional de paz; incentivando uma cultura contrária à guerra nas relações internacionais; assim como, servindo como laboratório de aperfeiçoamento para a criação da ONU, nos anos subsequentes.

Nesse sentido, na visão de Ricardo Seitenfus [43], a Sociedade das Nações representa um marco de grande relevância nas relações internacionais, uma vez que foi a primeira organização de caráter universal e com a finalidade de manter a paz através de mecanismos jurídicos, fundamentada na associação intergovernamental de cunho permanente e nos Princípios da Segurança Coletiva e da Igualdade entre os Estados soberanos.

Não obteve grandes êxitos, dentre outras motivações, em função do caráter simbólico e não-vinculativo de suas deliberações, bem como pelo esvaziamento que o pacto sofreu com a ausência das grandes potências da época do cerne de suas deliberações. Porém, mesmo em face de seu relativo insucesso, especialmente em razão de não ter conseguido evitar a eclosão da Segunda Guerra Mundial [44], a SDN perdurou de fato até o ano de 1939, mas na esfera do direito somente foi extinta em 1947, ano em que foi incorporada pela Organização das Nações Unidas.

3.1.2 A Organização das Nações Unidas

Em meados de 1945, mais uma vez sob o flagelo de uma Grande Guerra, renovou-se a consciência da necessidade de uma cooperação internacional para impedir novos conflitos mundiais. A necessidade de se (re)organizar o mundo por meio de instituições interestatais se fez evidente e o pensamento de Kant, demonstrado em seu opúsculo sobre a paz permanente, voltou à cena para oferecer os alicerces de diversas organizações internacionais, dentre as quais, a ONU merece destaque.

O kantiano valor pedagógico dos horrores da guerra parecia determinar o discurso político das potências dominantes no período pós Segunda Guerra Mundial. Estas se mostravam decididas a preservar suas próximas gerações dos horrores da guerra que por duas vezes, no breve espaço de tempo de uma vida humana, ocasionaram sofrimentos inexprimíveis à humanidade.

Corroborando o entendimento acima, Shiguenoli Miyamoto aduz que:

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No clima de fim de guerra foi pensada e gestada aquela que se converteria na melhor experiência de instituição universal, envolvendo 51 governos signatários em 1945 e atingindo, ao final do século XX, a marca de quase duas centenas de membros. A Organização das Nações Unidas concretizou-se, portanto, almejando reunir os países do mundo com a finalidade, diz o preâmbulo de sua Carta, de "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra" e "manter a paz e a segurança internacionais. [45]

Nesta perspectiva, a Organização das Nações Unidas nasce como a segunda tentativa de se institucionalizar um sistema de segurança coletiva. A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco, nos Estados Unidos da América, a 26 de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano.

Seguindo o ideário da Sociedade das Nações, a ONU passou a atuar buscando, num panorama posterior à Segunda Guerra Mundial, a paz e a segurança internacional. Ocorre que, assim como acontecera com a SDN, as contingências realistas desde logo se impuseram como verdadeiros empecilhos ao pleno alcance dos objetivos da nova Organização de caráter global.

Durante quase cinco décadas as Nações Unidas desempenharam sua função sob a desconfiança dos céticos, que, não acreditando em seu poder de decisão criticavam a postura onusiana de aceitação passiva do confronto entre os blocos políticos encabeçados pelos Estados Unidos da América (EUA), defensor do capitalismo, e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que patrocinava o socialismo. [46]

Já no final do século XIX, sem a presença da URSS no cenário internacional, com o fim da Guerra Fria, a combinação de desenvolvimento do regime do Direito Internacional dos Direitos Humanose as crises humanitárias catastróficas, com destaque para Ruanda (1994) e Kosovo (1999), aperfeiçoaram o debate em torno das intervenções humanitárias enfatizando a necessidade de reconciliar os conceitos de soberania e direitos humanos no Direito Internacional, resgatando, com isso, a legitimidade da não-intervenção, pelo estabelecimento de regras claras para o uso de intervenções com inquestionáveis propósitos humanitários.

A análise de Jürgen Habermas sobre o tema destaca que:

Com a fundação das Nações Unidas empreendeu-se um segundo assalto no sentido de estabelecer forças supranacionais capazes de agir em prol de uma ordem global pacifica, que ainda continuava incipiente. Com o fim do equilíbrio bipolar o terror, e apesar de todos os retrocessos, parece abrir-se a perspectiva de uma "política interna internacional" no campo da política internacional de segurança e direitos humanos. [47]

O panorama ilustrado acima delimita o contexto histórico e político ideal para que se coloquem em debate as questões inerentes à pedra angular da doutrina intervencionista defendida pela Organização das Nações Unidas, uma vez que inúmeros casos de violações dos Direitos Humanos ocorreram nas mais diversas partes do planeta, e, a ONU, por sentir a ausência de uma norma que autorizasse intervenções nos Estados transgressores, realizou análises caso a caso durante as últimas décadas.

Resta evidente que o desenvolvimento de uma doutrina de proteção internacional dos direitos humanos confronta-se com o conceito de soberania clássico, até então aplicado nas relações internacionais. Nesta esteira, "o princípio da não intromissão foi minado durante as últimas décadas, mormente pela política dos direitos humanos." [48]

Sob a luz deste problema, o ex-secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan, requereu no ano de 1999, a elaboração de uma nova diretriz de atuação nos casos de violações massivas de direitos humanos. Em resposta ao pedido de Annan, em 2001, surgiu, um relatório apontando a chamada doutrina Responsability to Protect (Responsabilidade de proteger), que, em linhas gerais, sugere alterações teóricas e práticas no tratamento oferecido ao tema das intervenções humanitárias pelo Direito Internacional, acarretando, com isto, uma abordagem que respeite ao mesmo tempo a importância do todo e a interdependência existente entre as partes envolvidas, propondo as responsabilidades de prevenir, reagir e reconstruir.

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Sobre o autor
Rodrigo Cogo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)<br>Professor dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. Fundamentos filosóficos da doutrina onusiana de intervenções internacionais.: Da guerra justa à responsabilidade de proteger. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2827, 29 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18804. Acesso em: 22 dez. 2024.

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