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O fenômeno jurídico na antiguidade

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30/03/2011 às 17:00
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4- A sociedade grega

A chamada cultura clássica é vasta. Por onde começar o seu estudo? Emprestando a resposta à Heidegger, com os gregos! Porque na Grécia estão as sólidas bases de toda a cultura ocidental. Efetivamente, com genial inventividade, lançaram os gregos as sementes da Física, da Matemática, da Retórica, da Política e da mãe de todas as ciências, a Filosofia. Foram também eles os primeiros a se habilitarem na definição do homem. Sócrates definira o homem como ser dotado de palavra e pensamento - zoon logikon echon. Aristóteles, na Política, definira o homem com suporte em sua aptidão para a coexistência social, em sua vocação política, segundo a participação na vida da pólis, portanto, como ser capaz de dar vida, de formar ou plasmar a sociedade - zoon politikon. [23]Vem-nos também dos gregos, precisamente de Aristóteles, a célebre tripartição de poderes resgatada na modernidade pelo Barão de Montesquieau. Entretanto, antes, de nuclearmos a alguns aspectos da cultura e do direito daquele povo, cuidemos primeiro de situá-los e apreender a sua formação.

A Grécia localiza-se na Península Balcânica, no Mediterrâneo oriental, entre os continentes europeu e asiático.Seu território divide-se em três regiões distintas: Grécia continental, peninsular e insular. O território grego apresenta topografia montanhosa, formando inúmeros vales. O litoral é recortado e apresenta vários portos naturais o que contribuiu para o desenvolvimento da navegação e do comércio.

A compreensão da formação sócio-cultural, política e jurídica dos gregos - assim como a dos romanos – acha-se permeada por elementos mítico-religiosos. A religião primitiva funcionou, naquelas sociedades, como fundamental amálgama a vincular (donde um dos sentidos do vocábulo religião derivado de re-ligare, verbo latino que significa encadear, unir, atar), com profundo significado, as variadas experiências sociais, tal como a experiência jurídica. Unindo o profano ao divino, a religião primitiva plasmou a forma da cidade-Estado antiga, centrada no culto sagrado. Essa é a perspectiva defendida por Fustel de Coulanges na Cidade Antiga, muito embora não atraia, nesse particular, a aceitação de significativa corrente de historiadores.

Ensina Cardoso (1987: 19) que a célula inicial da sociedade grega era o genos, família de nobres que agregava demais membros livres e escravos, além de variado conjunto de bens (terras, animais, edificações, plantações, víveres, etc), elementos humanos e materiais que se subordinavam a um chefe comum. Os genos eram também uma nucleação cultural e religiosa, de sorte que os membros desse grupo aristocrático criam descender de um herói ou de um deus. Ao entorno desse ampliado núcleo familiar, (também denominado oikos) viviam os trabalhadores que prestavam serviços de medicina, de artesanato especializado e outros ofícios.

Muitas são as teorias existentes acerca da formação da pólis grega. Porque não nos interessa tal polêmica, poder-se-ia afirmar que a cidade-Estado surgiu a partir da integração de plúrimos fatores como os conflitos agrários, a superpopulação, a crescente urbanização, a divisão do trabalho e o crescimento da atividade mercantil. A partir da progressiva conjugação desses elementos, a primitiva estrutura gentílica se transformaria na nucleação urbana, econômica, política e jurídica: a pólis grega.

Ao longo do tempo, destacaram-se, na Grécia continental, as cidades-estado de Tebas, Delfos e Atenas. Na região peninsular - separada do continente pelo golfo de Corinto – sobressaíram-se Esparta, Corinto e Olímpia. Já na Grécia insular, que compreende várias ilhas ao longo do mar Egeu e do Mediterrâneo, sobressaíram-se Creta, Lesbos e Eubéia. Entre todas as cidades, merece destaque a cidade de Atenas, a precursora da ordem político-democrática ocidental, o que se fará adiante.

4.1- Formação étnica

Vários foram os grupos que ao longo do tempo povoaram a península. Sabe-se que os primitivos habitantes da região eram povos seminômades, migrantes de origem indo-européia. Embora cressem serem autóctones, ou seja, originários da própria terra em que habitavam, os gregos compunham-se da miscigenação de povos vários. Os seus primeiros ocupantes viveram em Creta, por volta do ano 2000 a C. Um século depois, migrando da Ásia para a Península, chegaram os aqueus e, posteriormente, os jônios, os dórios e os eólios.

4.2- Periodização

Não se deve esquecer que toda periodização acerca do fenômeno histórico é arbitrária, haja vista que a História se processa num continuum em que os eventos se entrelaçam em inevitável corrente de relações. Desse modo, a divisão aqui adotada tem como suporte critérios sedimentados pela historiografia e objetiva tão-somente inteligir os fatos pretéritos e suas múltiplas interfaces: sociais, econômicas, religiosas, políticas, jurídicas e culturais.

Costumeiramente, divide-se o processar da civilização grega nos seguintes períodos:

- pré-homérico (século XX a XII a C), época da formação do povo grego, marcada pela vida agrária;

- homérico (século XII a VIII a C), período da organização gentílica (da vida nas gens);

-arcaico ( século VII e VI a C), que marca a transição entre a vida gentílica e rural para a formação da polis. Período quando ocorre a consolidação da oligarquia política ateniense;

- clássico ( século V - IV a C), consolidação da pólis e apogeu da vida político-jurídica grega, notadamente de Atenas;

- helenístico (século IV - II a C), fase de decadência político-econômica e conseqüente dominação grega pelos macedônicos.

4.3- A civilização cretense

Dos primórdios das civilizações egéias muito pouco se sabe, haja vista que a escrita primitiva daquelas populações ainda não fora suficientemente decifrada. Desse modo, as sínteses até hoje elaboradas sobre os primitivos gregos devem ser atribuídas aos esforços da arqueologia e do estudo de textos lendários como os de Homero. [24]

A ilha de Creta, situada ao sul da Península Balcânica, foi o primeiro centro cultural do mar Egeu. Provavelmente, entre o ano 1700 e 1450, verificou-se em Creta o florescimento de uma monarquia teocrática absolutista, o governo dos Minos. Dados arqueológicos revelam a construção de palácios, como o de Cnossos, cujos afrescos permitem certas inferências políticas e sociais. A julgar pelos elementos arqueológicos, acredita-se que do trono palacial (palácio de complicada arquitetura, como que um labirinto) o governante desempenhava funções variadas como a administração do Estado, do exército e do comércio, cuidando, ainda, da distribuição da justiça. Governando através de uma burocracia estatal própria, o soberano editava atos e os fazia gravar por escrito.

A experiência econômica cretense baseava-se no exercício da atividade comercial e em incursões imperialistas promovidas na Península Balcânica [25]

Quanto às práticas religiosas, vigorava entre os cretenses, por força da influência de outras culturas orientais, um princípio feminino de fecundidade expresso na representação da Grande-Mãe, deusa servida por outras sacerdotisas, revelando, assim, um autêntico culto à fertilidade. A vida social cretense notabilizou-se pela pequena distinção entre classes sociais, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres e pela pouca importância atribuída à escravidão. Entre suas principais cidades cita-se Faístos, Cnossos, Haghia e Tríada.

4.4- A civilização aquéia (ou micênica)

Diga-se, preambularmente, que a civilização aquéia costuma ser estudada após a civilização cretense. Tal conduta tem natureza meramente metodológica, posto que não se pode olvidar que ambas as civilizações hajam coexistido por um certo tempo.

Os aqueus eram povos de origem indo-européia que ocuparam Cnossos por volta de 1450. Da fusão e evolução entre as culturas cretense e aquéia resultou a denominada civilização creto-micênica, em referência a mais importante das cidades aquéias, Micenas, sede do palácio real.

A principal atividade econômica dos micênicos era o comércio, então praticado com egípcios, mesopotâmicos e habitantes da Itália. Justamente em razão da expansão de seus interesses marítimo-comerciais é que os micênicos se envolveram, ao lado de Esparta e demais cidades, na fabulosa guerra de Tróia [26], cidade que ocupava estratégica posição econômico-comercial ao norte da Ásia Menor - banhada pelo mar Egeu e próxima ao mar Negro, o que facilitava o contacto com o ocidente pelo mediterrâneo e com o extremo oriente, pelo mar Negro.

4.5- A organização gentílica

A partir do século XVIII nova onda de povos imigrantes atinge a Grécia, destacando-se a pacífica chegada dos jônios e eólios os quais se misturam à organização social local. Migram os jônios para a Eubéia, Naxos e demais regiões próximas a Àtica e para a porção central da Ásia Menor. Essa região ficou depois conhecida por Jônia, local onde seria fundada posteriormente uma confederação de cidades.

Os dórios chegaram à região no século XII. Um povo dotado de sólida cultura. Ao suplantar a cultura dos aqueus, provocou-lhes a dispersão ao longo do mediterrâneo.

Não é demais reiterar que os dados acerca desse período são esparsos e precários e quase tudo que se sabe tem como fonte os poemas homéricos. Aliás, muito pouco se conhece sobre a formação da cidade-Estado grega, organização política que se constituiu no século VIII. [27] O que se sabe, com certeza, é que os povos que habitavam a Grécia praticavam formas sociais de organização político-familiar – as gens, as fratrias e as tribos – enredadas por determinante elemento religioso.

A organização social micênica assentava-se na gens, organização social baseada em grandes famílias cujos membros acreditavam descender de um mesmo antepassado. Os membros das gens tinham-se por parentes e cultuavam deuses comuns. A economia baseava-se na agricultura, na propriedade coletiva da terra e em uma incipiente atividade comercial alicerçada na troca. A religião era politeísta cujas cerimônias exaltavam e cultuavam os heróis e seus grandiosos feitos.

No campo do direito e da política, cada gens elegia um chefe que se revestia de atribuições militares, religiosas e jurídicas (basileu) cujo encargo era exercido sem qualquer remuneração ou privilégio. Naquele período, em que prevalecia o poder comunitário, com suporte nos clãs, poucos e relativamente singelos eram os conflitos de interesses verificados na sociedade grega. Contudo, nos séculos seguintes, o surgimento da propriedade privada, a concentração de terras e de demais riquezas nas mãos de poucos viria produzir grave conflitividade social demandando, pois, a instalação de um governo oligárquico. As classes abastadas, receosas quanto aos riscos representados pelas camadas excluídas, bem assim pela ação de grupos vizinhos, passaram a reivindicar a instalação de um governo de segurança, centralizado e forte.

É consentâneo o fato de que a civilização grega primitiva desconhecera regimes políticos absolutos. Mesmo na época da Monarquia, o rei (basileu) governava com apoio em duas importantes instituições, um conselho de anciãos, denominado gerusia (Esparta) e Areópago (Atenas), respectivamente, e uma assembléia popular formada por guerreiros. Entretanto, com o passar do tempo, o crescimento das forças produtivas imprimiria nova configuração às instituições jurídico-políticas. A expansão do comércio (na região da Àsia Menor), o crescimento do latifúndio familiar e o poderio bélico das camadas enriquecidas viria arruinar a organização monárquica em torno dos clãs. No novo cenário econômico delineado, a aplicação do direito funcionava como importante instrumento legitimatório e mantenedor do status social da emergente aristocracia. O impacto de tais mudanças sobre a vida jurídica fora assim assinalada por Petit:

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"As grandes famílias dominavam o conselho dos Anciãos, distribuíam a justiça segundo as leis não escritas (a Têmis), uma justiça freqüentemente privada e baseada na "solidariedade familial" e eram as únicas a conhecer os arcanos da religião, o meio de conciliar para todos os favores dos deuses. O rei tendia a ser apenas um magistrado, de atribuições religiosas secundárias; os que não pertencessem a um genos eram explorados sem apelo." [28]

Com a paulatina desagregação da sociedade gentílica as fratrias tornaram-se aglomerados de destaque social. Em seu interior, importantes questões - casamento, filiação, maioridade, serviço do exército e atribuição de direitos cívicos - eram tratadas e decididas sempre aos cuidados dos deuses. Já as tribos representavam a agremiação de várias fratrias unidas pela adoção de um ancestral primitivo, e obedientes a um mesmo rei (phylobassileus). No interior das tribos a prestação da justiça incumbia ao basileu ou rei. Das fileiras tribais recrutavam-se os membros da magistratura, os participantes da assembléia conselheira da realeza e os servidores do exército.

A evolução dos fatores sócio-econômicos formataria novas instituições sociais e políticas. O declínio da vida comunitária e a paulatina apropriação e concentração dos meios de produção nas mãos de certas famílias ensejaria a consolidação de uma nova classe social, econômica e juridicamente preponderante: a aristocracia. Então, a vida na cidade suplantaria a vida no campo, a vida litorânea e comercial precederia à vida interiorana, restando, no campo, uma agricultura escassa e pauperizada. Nesse período, as cidades-Estado se afirmaram como centros independentes e autônomos nos aspectos políticos, religiosos e militares. A seguir, constituídas, organizadas e bem armadas elas dariam início a um grande movimento de expansão em toda a região balcânica entre os séculos VII e VI.

4.6- A Grécia Arcaica

As instituições aristocráticas típicas do regime monárquico prevaleceram durante séculos na Grécia Antiga. Enquanto durou o regime aristocrático, a aplicação do direito obedeceu a um regime de leis calcado na parcialidade, no privilégio de classes, na excludência e no poder exercido por uma minoria. Segundo informa Petit (1979: 79), as assembléias da Grécia arcaica eram formadas unicamente por proprietários os quais detinham prerrogativas como o de votar leis, por simples aclamação, e de eleger magistrados. Os conselhos, sempre restritos, compunham-se de antigos magistrados ricos e idosos, dotados de amplo poder decisório, enquanto outros magistrados – chamados pritanos, arcontes ou dikastai (juízes) - cuidavam da execução das decisões dos primeiros. Em cidades mais conservadoras, os juízes exerciam suas funções sob o regime da hereditariedade ou da vitaliciedade; noutras, mais democráticas (como Atenas), eram eleitos anualmente. De todo modo, era comum naquele regime o conluio das poderosas famílias com vistas a compartilharem os postos essenciais da vida pública.

Com o tempo, o dinamismo da vida sócio-econômica cuidaria de por fim à predominância política aristocrática. Entre os fatores explicativos da crise do regime oligárquico costuma-se citar o aparecimento de nova classe social emersa da colonização grega e da atividade comercial: uma burguesia mercantil enriquecida e ávida por tomar parte nos negócios públicos. Além desse importante fator, registra-se também o surgimento e a lenta difusão da moeda e de novas técnicas bélicas (como a substituição de lentos navios por ágeis naus de combate, movidas e equipadas por representantes de camadas populares, bem assim as inovações na técnica de combate em terra, substituindo-se o pesado lutador pelo soldado ágil, o hoplita, organizado em densas falanges). Essas novas circunstâncias promoveram a inclusão de grupos sociais marginais na ordem econômica e na defesa da pólis, de sorte que, por tais razões, passaram a também reivindicar real espaço na condução da vida política. Destaque-se que o processo de integração de tais camadas nas decisões políticas estendera-se no tempo e marcara-se por violentos conflitos civis cuja intensidade e duração variara de cidade para cidade, conforme a capacidade de resistência da privilegiada aristocracia de então.

Foi nesse cenário crítico que surgiriam as primeiras tentativas de condensação legislativa. O avanço das forças sócio-econômicas e produtivas, os conflitos de interesses entre povos e entre indivíduos de mesma raiz criariam a necessidade de objetivar, de se inscrever em formas e fórmulas o direito consuetudinário até então praticado. E para quê tal esforço?A objetivação do direito visava a controlar o exercício do poder dos julgadores, a findar com os privilégios no conhecimento das leis, tornando-as públicas, acessíveis ao povo, obedecendo, assim, às palavras Teseu, proferidas nas Suplicantes de Eurípedes, ao afirmar que "quando as leis são escritas, o pobre e o rico têm justiça social."Licurgo de Esparta, Drácon e Sólon de Atenas foram os mais conhecidos magistrados do período arcaico.

Como se tem verificado, as formas de governo na Antiga Grécia, antes de acederem à democracia, materializaram-se na monarquia (centrada no poder real e no conselho de nobres), depois na oligarquia aristocrática (em que os nobres proprietários governavam representados pelos arcontes) e, eventualmente, na tirania (governo de lideranças populistas que combatiam os privilégios da aristocracia agrária).

Relativamente a essas variadas formas de governo praticadas nas muitas cidades gregas, importantes contribuições foram legadas pelo ensino de Aristóteles, que viveu entre 384-322 a. C. Após estudar mais de uma centena de constituições, Aristóteles baseara-se na constituição de Atenas para formular sua teoria política (politéia, em grego, que significa Estado).

Evitando vislumbrar um regime político idealizado, concebido a priori, – como o fizera Platão na República – Aristóteles, partiu da realidade política concreta para então distinguir três tipos fundamentais de constituição: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Sem rejeitar qualquer uma delas, aduzia que todas essas formas de governo poderiam ser boas segundo a época, as condições e as necessidades dos povos. Contudo, não deixou Sócrates de preconizar um modelo ético para o Estado: para o estagirita, o Estado perfeito seria aquele fundado no equilíbrio (mesotes), no meio-termo, de modo a evitar os extremos, quer da opulência, quer da escassez. [29] Em termos políticos, esse meio-termo ou essa áurea mediocridade aristotélica apresentava como condição de virtude o evitar-se a prevalência dos muito ricos ou dos muito pobres na gestão do Estado. Desse modo, pretendendo a evitar a total exclusão de grupos por outros, o Estado aristotélico preconizava a prevalência do atendimento à diversidade de interesses sociais de modo a materializaria o virtuoso equilíbrio ético na gestão estatal.

As sempre oportunas reflexões aristotélicas impelem-nos à sua transcrição:

"Chamamos monarquia ao governo em que o poder, dirigido para o interesse comum, pertence a um só. Aristocracia àquele em que o poder é confiado a mais de um, isto é, a poucas pessoas, escolhidas entre as mais honestas, e que só têm em vista o bem comum do Estado e de seus membros. E democracia aquele governo em que o poder é do povo, que governa para a utilidade pública. Essas três formas de governo podem degenerar em governos viciados: a realeza em tirania, a aristocracia em oligarquia, a democracia em demagogia." E prossegue: "a tirania é a monarquia orientada para o interesse do rei; a oligarquia é a aristocracia voltada para o interesse dos ricos; e a demagogia só vê o interesse dos pobres; nenhuma dessas formas de governo se ocupa do interesse geral.

A aristocracia distribui as honras (os cargos públicos) segundo o merecimento das pessoas. A oligarquia os distribui segundo a riqueza, excluindo os pobres (...). Na democracia, o governo caminha segundo a lei. Mas onde as leis não têm força, aí aparecem os demagogos. Eles pisam as leis aos seus pés e fazem predominar os decretos." [30]

Como se vê, para Aristóteles a virtude objetivada no Estado é a justiça que, numa comunidade, significa tratamento com igualdade para todos os que se igualam, e que a busca do justo "é a busca do meio-termo; pois a lei é o meio-termo".

4.6.1- O despertar da democracia ateniense: Drácon e Sólon

Interessa aproximar da experiência política ateniense porque fora lá que emergiram os pilares do regime democrático contemporâneo. Entre os sustentáculos jurídico-políticos urdidos pelos cidadãos de Atenas estão os princípios da representação popular, o princípio da participatividade política, bem ainda os princípios da isonomia e da legalidade, todos retores do regime democrático moderno.

Atenas inaugurou o direito político, o que justifica dela se aproximar. Atenas fora fundada pelos jônios que se estabeleceram na península da Ática, região habitada pelos primitivos cretenses. Contam as lendas que os jônios, liderados por Teseu, dominaram as aldeias cretenses e lá fundaram uma cidade que batizaram de Atenas em homenagem à deusa da sabedoria, Atená. A primeira forma de governo de Atenas fora a monarquia. Nesse regime, o rei (basileu) desempenhava funções religiosas, jurídicas e administrativas e a participação no governo restringia-se aos eupátridas (os bem-nascidos, ou cidadãos) os quais tomavam parte do poder mediante a eleição de uma assembléia de representantes, chamados arcontes.

Por volta dos séculos VIII e VII a.C, o governo passou a ser exercido por um grupo de arcontes, magistrados eleitos entre membros da aristocracia, em número total de nove, os quais exerciam funções variadas: funções religiosas, outros militares, e outros ainda dotados de atribuições judiciárias. Entre os arcontes, seis incumbiam-se da jurisdicção e tinham por obrigação redigir e publicizar repertórios de decisões já proferidas e tornadas obrigatórias para toda a comunidade. Ao lado do arcontado, funcionava o Areópago, um conselho de anciãos formado por ex- arcontes, uma espécie de tribunal supremo e vitalício, zeloso pelo funcionamento do regime.

Ao tempo dos primeiros legisladores a situação em Atenas era conflituosa: aos fatores naturais, como a escassez de terras férteis e o aumento populacional, somavam-se outros, de ordem política, como a insatisfação popular com o regime aristocrático e o empobrecimento massivo dos camponeses cujas terras vinham sendo hipotecadas em face de crescentes dívidas contraídas junto à nobreza latifundiária. Nessa época, no campo se praticava a escravidão por dívidas. Como saídas para problemas como superpopulação e escassez alimentar, os gregos promoveram expansões ao longo do mediterrâneo em busca de novas terras. Tratava-se do colonialismo grego.

Em solução aos embates econômicos e políticos entre a nobreza e a multidão popular surgira a atividade legislativa que, em Atenas, inicia-se com Drácon, em 621 a.C. Além de consolidar o direito consuetudinalizado em leis, Drácon dotou-as de peculiar severidade. Pretendia, desse modo, coibir antigas vinditas familiares entre os nobres e ofertar maior proteção à prática dos negócios públicos. Escritas em pedras e colocadas na praça pública (ágora), as leis de Drácon tinham, entretanto, caráter conservador porquanto mantinham inalteradas as bases da organização social e política. Contudo, elas abrigavam inegável fator de equidade social porquanto retiravam das mãos dos eupátridas o privilégio do conhecimento das leis, e, conseqüentemente o poder de sua aplicação. As medidas abraçadas evitavam o arbítrio dos eupátridas na manipulação da aplicação das normas legais - prática comum em face do direito não escrito até então vivenciado - de sorte que ao conjunto das leis todos deviam obediência, ou seja, governantes, juízes e governados.Começava-se, então, a atribuir à prestação da justiça a um corpo de agentes tutelado pelo Estado. [31]

O governo conservador empreendido por Drácon manteve inalterada a estrutura político-social provocando revoltas que conduziram o legislador Sólon à magistratura. Eupátrida enriquecido pelo comércio, Sólon promoveu medidas jurídicas (de natureza eminentemente públicas) e econômicas do agrado da classe mercantil e dos camponeses: revogou a escravidão por dívidas (libertando os então cativos), impôs limites ao latifúndio, promoveu a liberação de hipotecas de endividados e incentivou a produção dos médios proprietários, fomentando, ademais, a atividade marítima mercantil.

A máxima do arconte Sólon fora "governar sem excessos". Esse legislador instituiu nova constituição e fez promulgar novas leis, de sorte que os atenienses abandonaram o código de Drácon, à exceção das leis sobre homicídio, mantidas por um certo tempo. O senso de equilíbrio almejado por seu governo pode ser captado na seguinte exortação aos ricos, lembrada por Aristóteles:

"Contenham em seus peitos os seus corações poderosos; vocês já possuem muito das boas coisas da vida; satisfaçam seu orgulho com o que é moderado, pois não iremos tolerar excessos nem reviraremos tudo da maneira que vocês querem". [32]

A democratização do exercício e do acesso à atividade jurídica dera-se também na magistratura de Sólon. Ao criar novas regras processuais, franqueou o acesso dos mais pobres (injustiçados) aos tribunais. É ainda Aristóteles quem se reporta às principais medidas adotadas no governo de Sólon:

"O que se segue parecem ser as três características mais populares da constituição de Sólon. A primeira e mais importante é que ninguém pode tomar dinheiro emprestado sob garantia da liberdade de alguém; a segunda é que ninguém pode tirar proveito daqueles que foram injustiçados; e a terceira, que dizem ter sido a que mais contribuiu para o fortalecimento da democracia, institui o direito de participar do dicastério, pois quando o povo tem o direito de votar nos tribunais, controla a constituição". [33]

No campo político, Sólon protagonizara a ulterior instauração da democracia ateniense. Embora haja também mantido a estrutura oligárquica, criou instituições cujo aperfeiçoamento marcaria o apogeu democrático ateniense. Opondo-se ao governo eugênico até então praticado, refutou o recenseamento social com base no nascimento e estabeleceu nova divisão censitária capaz de ampliar a participação na vida da pólis. Para tanto, dividiu os cidadãos atenienses em classes, com base na renda agrária anual. Mesmo tendo conservado os nobres no poder, a divisão censitária preconizada por esse legislador viria, depois, a admitir até mesmo a renda mobiliária para o cálculo do censo, permitindo, assim, a inclusão de comerciantes e armadores em altos cargos da vida política. [34]

Para institucionalizar a partilha do exercício do poder novos mecanismos de governo da vida coletiva foram criados. Sólon instituíra a Eclésia, assembléia popular aberta a todos os cidadãos, a Hélia ou Helieu, tribunal judiciário popular, e a Bulé, conselho composto de 400 membros representantes das tribos cuja função consistia no controle do Areópago, antiga instituição política formada pela nobreza aristocrática.

Entretanto, apesar das substanciais modificações políticas, as ações implementadas demonstraram-se insuficientes para solver os conflitos sócio-econômicos efervescentes na sociedade ateniense. E o insucesso das reformas legislativas na contenção das disputas sociais promoveria a ascensão de tiranos [35] ao governo, tendo sido Psístrato o primeiro deles. Aristocrata de raiz, Psístrato ascendera ao poder com suporte em sua fortuna pessoal e no apoio das insatisfeitas camadas populares. Seu governo teve como marcas o incentivo ao comércio marítimo, a construção de inúmeras obras públicas, o confisco de terras da nobreza para distribuição entre os camponeses e o patrocínio de variados eventos culturais, o que contribuiu para atrair a Atenas muitos poetas, filósofos e artistas.

4.7- O período clássico e seu legado jurídico-político

4.7.1- O governo de Clístenes

A tirania de Psístrato cedera ante as reações aristocráticas lideradas por Clístenes, político de raiz nobre que assumira o governo de Atenas a pretexto de introduzir amplas reformas políticas na condução da pólis. Seu governo se notabilizou pelas regras introduzidas no direito público.

A nota essencial do governo de Clístenes fora a afirmação da democracia. Poder-se-ia dizer que enquanto Sólon preparara a formação da democracia, Clístenes a consolidara. E o fizera neutralizando a força das facções regionais e o extremo poderio da aristocracia rural. Para tanto, substituiu a divisão social baseada em tribos étnicas, instituindo nova classificação fulcrada em dez tribos e 160 divisões administrativas, os demos, os quais, por sua vez, se repartiram em trinta circunscrições eleitorais. Tais circunscrições contemplavam as tribos do interior, da cidade e do litoral. Das demos se recrutavam os arcontes (magistrados em número de 10), os membros da Bulé, do exército (hoplitas e valeiros) e das demais instituições. Em geral, as medidas ampliaram a participação social nas decisões políticas, abolindo (?) a votação censitária instituída no governo de Sólon que privilegiava a atuação dos membros das grandes e poderosas famílias.

Em relação à Bulé, Clístenes elevara para 500 o número de seus participantes (cinqüenta por tribo, escolhidos à sorte), tornando-a a mais importante instituição governamental, porquanto dotada de atribuições administrativas, legislativas (preparação de projetos de lei), judiciárias (apreciação de alguns processos específicos, uma espécie de competência ratione materiae.) e ainda de competência para controlar o exercício das magistraturas.

As ações desse arconte não pararam aí. Alguns registros lhe atribuem a criação do ostracismo [36], bem como a ampliação dos poderes dos estrategos militares mediante a instituição de processos eletivos (ao invés da prática do sorteio) para acesso a tais funções. Tendo ou não sido obras de seu engenho, fato é que as ações empreendidas por esse legislador foram tão significativas que a historiografia costuma qualificar-lhe como sendo o "pai da democracia" clássica. Efetivamente, o governo de Clístenes teve como mérito a ampliação da participação popular na vida pública e a criação de mecanismos políticos destinados a afastar os riscos de retrocessos tirânicos e demagógicos no cenário público. Tais ações foram imprescindíveis ao ulterior aprimoramento democrático que despontaria no século seguinte.

4.7.2- Péricles e o apogeu democrático

Se com Clístenes nasceu a democracia, com Péricles ela evoluiu. Filho de família aristocrática, Péricles foi eleito estratego no século V a.C e governou Atenas por quatorze vezes, entre 443 e 429 a.C. A sua magnitude política fez projetar a qualificação de "o século de Péricles" a todo o período remanescente ao seu governo. Entre outras medidas, criou condições efetivas à participação dos cidadãos pobres e interioranos nos debates públicos da ágora - instaurando o princípio da isonomia no regime democrático grego - além de haver diminuído o poder do Areópago, instituição aristocrática, na condução da vida pública. [37]

Nesse período, o principal órgão político (ou seja, da pólis ateniense) era a Eclésia, reunião pública da qual todos os cidadãos maiores de 18 anos participavam debatendo e votando proposições [38].À Eclésia competiam funções administrativas (a declaração de guerra ou os tratados de paz, a tomada de contas dos magistrados), judiciárias (julgamento de certos delitos), eleitorais (deliberação sobre a escolha de magistrados, os estrategos, responsáveis pela execução das leis) e legislativas (votação de leis). Paralelamente à Eclésia, funcionavam outras instituições como a Bulé, a Estratégia e aHeliae ou Helieu.. A Bulé era um conselho composto por quinhentos cidadãos representantes das demos eleitorais. Para oportunizar o acesso indiscriminado (de ricos e pobres) nesse conselho, seus membros eram recrutados por sorteio e exerciam o mandato por um ano. Porém, apenas assumiam a função após se submeterem a exame moral (dokimasia) efetuado por antigos membros do conselho, devendo, ademais, ao final do mandato, prestar contas da atividade exercida. A principal atribuição da Bulé era a elaboração de projetos de lei os quais se submetiam à apreciação da Eclésia. A Estratégia, outra instituição do período, era uma espécie de poder executivo composto por 10 estrategos eleitos anualmente pelos participantes da Eclésia, cuja reeleição era permitida. Os estrategos exerciam a atividade sem remuneração e, de início, tinham por função capital o comando do exército. Com o tempo, ao assumirem novas funções, se encarregaram de dar cumprimento às leis votadas pelo povo. A terceira instituição, a Heliae, respondia pela prestação da justiça. Era um tribunal popular composto por seis mil cidadãos sorteados pelos membros da Eclésia para mandato ânuo, sem possibilidade de reeleição. As magistraturas eram colegiadas (em geral dez membros por categoria) e classificadas por especialidades, tal como sucedia com o arconte-rei, (basileu) encarregado das funções religiosas e da presidência do Areópago, e os seis arcontes tesmótetas, incumbidos de presidir os tribunais e de compilar anualmente as leis atenienses. Além de zelar pela prática do culto, esse tribunal popular era responsável pela condução dos processos e pelo julgamento de variadas causas públicas ou privadas, à exceção dos crimes de sangue (vg, homicídios, envenenamento e incêndio), que permaneceram na competência do Areópago. [39]

Acerca da constituição e do funcionamento dessas instituições político-jurídicas no governo de Péricles, oportuno é o magistério do historiador Petit (1979:124)

"A constituição quase não foi modificada, cabendo o essencial dos poderes à Bulé clisteniana de 500 membros, a qual resolve os negócios correntes, dirige a diplomacia, julga os magistrados (com apelo da Eclésia) e tem a iniciativa legislativa pelos seus proboulemata (projetos de lei). A Assembléia, reunida mais de 40 vezes por ano, exprime diretamente (não há deputados) a vontade nacional: decide a respeito de tudo, a paz, a guerra, finanças, elege estrategos e tesoureiros (sendo os demais magistrados escolhidos por sorteio) e fiscaliza-os, vota leis e decretos, julga em grau de apelo certos crimes e diretamente os de Estado (traição, ilegalidade). Não há partidos organizados, cada um pode tomar a palavra, propor uma decisão ou uma emenda; mas, na prática, apenas os especialistas intervêm e a ameaça de acusação de ilegalidade evita as iniciativas inconvenientes ou perigosas. Os magistrados não são, como em Roma, os depositários da autoridade pública, mas os servidores do povo; tirados à sorte, uns são simples executantes; eleitos após docimasia (controle moral e político), os estrategos e tesoureiros são vigiadíssimos (prestações de contas) e expostos a múltiplas acusações, o que enfraquece o executivo. A justiça está igualmente nas mãos do povo: se os crimes de sangue e religiosos são de alçada do Areópago, e os pequenos delitos submetidos à arbitragem dos juízes dos demos, todo o resto passa diante do Helieu, formado de 10 tribunais de 500 jurados cada um; justiça popular, pouco corruptível por causa do número, por vezes mal esclarecida e sensível às paixões, políticas, sobretudo."

Enfim, os eventos marcantes do governo de Péricles poderiam ser agrupados da seguinte forma:

- extensão de direitos políticos a todos os cidadãos, ou seja, aos homens maiores e livres;

- instituição do princípio da isonomia, princípio indispensável ao exercício democrático;

- diminuição da influência política e jurídica da nobreza (Areópago), mediante a diminuição de seus poderes políticos e, conseqüentemente, o fortalecimento dos poderes da assembléia popular;

- atenção dispensada às camadas desassistidas da população pela implementação da filantropia que se concretizou em mecanismos como as misthoi, as indenizações e os benefícios pagos a viúvas, órfãos e mutilados em guerras, entre outros.

Em síntese, as principais características do direito grego residiram na valorização da oralidade na prática dos atos jurídicos, (donde o apreço à retórica), na popularidade dos tribunais, compostos por pessoas comuns, tirados à sorte e, ante a inexistência do instituto da representação judicial, na laicidade dos atores forenses, de sorte que a atuação nos tribunais era feita pelos próprios particulares interessados na causa. Releva ainda anotar que a constituição de tribunais populares em muito contribuiu para a formação da justiça por arbitragem naquela sociedade, levada a cabo por árbitros públicos e privados. Por último, em símile com a figura dos Juizados Especiais tão em voga na atualidade, os gregos também instituíram, a seu modo, juizados especiais itinerantes destinados a apreciar demandas de pequeno valor.

Compreendida enfim a formação, a estrutura e o funcionamento das instituições democráticas gregas, releva abordar os séculos que sucederam ao governo de Péricles. Séculos de crise, que marcaram o declínio do regime. Em breve termo, serão visitadas as causas de tanto.

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Sobre o autor
Jairo Coelho Moraes

Advogado, mestre em Direito Administrativo pela UFMG, professor de Processo Civil e História do Direito da PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Jairo Coelho. O fenômeno jurídico na antiguidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2828, 30 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18805. Acesso em: 29 mar. 2024.

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