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A experiência jurídica romana

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30/03/2011 às 18:00
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4- Conclusão

Como se viu, o sistema jurídico erige-se a partir de vasto substrato social constituído por variáveis religiosas, éticas, econômicas e políticas, de sorte a plasmar-se em obediência às demandas produzidas pela sociedade num dado momento histórico. As lições vindas dos romanos nos ensinam que o direito, na qualidade de ciência social, oscila segundo o poder e a força daqueles que o criam e manejam, ora adquirindo conteúdo transformador das estruturas sociais, ora abrigando matizes reacionárias, legitimadoras do status quo de seus manipuladores.

Em face dessa constatação, ao jurista impende a tarefa de transcender a mera factualidade legal e ao dogmatismo tecnicista vigente nas lições acadêmicas com vistas a pesquisar acerca das estruturas constituintes do fenômeno jurídico. Desse modo, poderá apreender-lhe a essência e a cooperar para a sua hodierna reconstrução.

Enfim, ultrapassada a fase do estudo histórico constituidor do direito romano, importa agora aproximar dos institutos jurídicos concebidos por aquele povo. Tal empresa será feita a seguir, topicamente, quando estudaremos alguns institutos que conformam os chamados direitos das pessoas, os direitos reais, o direito das sucessões e o direito de ação.


5- BIBLIOGRAFIA

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Notas

  1. Acerca da fundação romana existem também relatos mitológicos. Para o poeta latino Virgílio, Roma teria sido fundada pelo guerreiro troiano Enéas, filho de Anquises e de Vênus, que, fugindo à destruição de sua pátria por ocasião da guerra de Tróia, migrara para a região do Lácio. Os descendentes desse troiano fundaram a cidade de Alba Longa cujo primeiro rei fora Numitor. Desavenças entre Numitor e seu irmão, Amúlio, resultaram na deposição do primeiro e na colocação de sua filha, Réa Sílvia, num colégio de vestais para que ela não tivesse descendentes. Contudo, Réa, da união com o deus Marte, viria gerar os gêmeos Rômulo e Remo. Descobertos por Amúlio, os gêmeos foram lançados ao rio Tibre. Salvos e amamentados por uma loba, os irmãos foram recolhidos por um pastor e, quando adultos, retornam à Alba, derrubam o tio usurpador e recebem, em recompensa, a região em que fundam a cidade de Roma.
  2. A helenização foi fenômeno marcante e alimentador da cultura romana. Os romanos viriam a ser influenciados em quase tudo pelos gregos. Dos gregos aprenderam política, religião e direito. Na religião, por exemplo, adotaram as divindades gregas travestidas de nomes romanos: Zeus-Júpiter, Atena-Minerva, Afrodite-Vênus, entre outros. No direito, os romanos sofreram influência grega por ocasião da criação da Lei das doze Tábuas, inspirada na experiência de legisladores atenienses, em especial de Sólon.
  3. CARDOSO. A cidade-Estado antiga. p. 14.
  4. Na realidade, a plebe não formava um todo homogêneo. Havia uma plebe mercantil residente nos municípios e bem acomodada à dinâmica estatal; havia também a plebe rural formada por habitantes do Lácio, Itália Central e Meridional que constituía uma espécie de classe média rural. Existia, ainda, a plebe urbana, que vivia em Roma, desviada do trabalho no campo em função da concorrência com os servos a qual era facilmente corrompida pelo tráfico de votos eleitorais. Os historiadores costumam qualificar a plebe urbana como sendo uma massa politicamente imatura, imediatista e oscilante entre anseios revolucionários e conservadores, dubiedade política frequentemente capturada por personagens demagógicos fartamente encontráveis na vida pública romana.
  5. COULANGES. A cidade antiga. P. 260.
  6. Segundo relatos do historiador romano Tito Lívio, algumas prodigiosas gens totalizavam cerca de 300 membros as quais mobilizavam mais de 4000 clientes.
  7. Chamamos urbs à cidade de Roma no sentido topográfico. Quanto ao termo civitas, em latim, cidade-Estado, tem como sentido - tal como a pólis grega - a referência ao senso cívico, à coletividade formada pelo conjunto dos sujeitos aceitos, inseridos e atuantes na dinâmica da sociedade romana. A civitas não é, pois, um conceito geográfico, mas um conceito jurídico-político.
  8. A força do elemento religioso na configuração da vida sócio-cultural e jurídica dos antigos - gregos e romanos - constitui perspectiva central da obra de Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga. Acerca da fundação de Roma, Coulanges apanha trechos do historiador romano Tito Lívio, que vivera ao final do período republicano, quem dissera: "não há lugar nesta urbe que não esteja impregnado de religião e ocupado por alguma divindade (...) os deuses habitam nela". COULANGES. A cidade antiga. p. 153. Quanto à redução do cidadão à condição de escravo, trata-se de disposição expressamente contida na Lei das Doze Tábuas e ocorria em face do inadimplemento voluntário de obrigação pelo devedor.
  9. O vocábulo quiritário vem de quirino, quirites. Segundo a mitologia, Rômulo morrera após ter sido apanhado por um raio durante uma tempestade quando fora arrebatado aos céus, tornando-se um deus, o deus quirites. Nesse sentido, referenciando-se ao direito romano primitivo, denomina-se direito quiritário ou, também, jus civile, a manifestação jurídica que nasce com a fundação de Roma, por volta do século VIII a C, e que vigorou até meados do século IV a. C.
  10. As leis romanas – não poderia ser diferente – refletiam a sua organização social. Por isso, as leis materializam privilégios, no exato sentido desse vocábulo (vide, a respeito, capítulo primeiro, nota de n...). A "lei" (costumeira) assegurava direitos a alguns e excluía a outros. Assim, os patrícios eram os únicos destinatários da ordem jurídica, competindo-lhes o direito ao voto nas assembléias, o direito de ocupar cargos públicos, de integrar os colégios sacerdotais, de possuir terras públicas, de buscar a prestação da justiça, bem como de casarem-se segundo os costumes do casamento civil ou justas núpcias. A classe patrícia era quem produzia o direito costumeiro e quem dele se beneficiava de maneira exclusiva e excludente. Fora do alcance da proteção jurídica estatal estavam os plebeus, os clientes e, por elementar, os escravos. Os sujeitos considerados incapazes - como os infantes, os impúberes e as mulheres - detinham direitos, porém não o seu autônomo exercício, o qual se efetuava mediante a intervenção de terceiros como curadores ou tutores.
  11. Juris prudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia. MADEIRA, Hélcio M. França. Digesto de Justiniano. Liber Primus. 3. ed. Editora Revista dos Tribunais: Osasco, São Paulo, 2002. Os entrelaçamentos entre sagrado e profano são igualmente reproduzidos em várias outras obras romanas, tal como disposto no livro primeiro das Institutas de Justiniano, especificamente no título primeiro, no qual se aborda o tema da justiça e do direito - De justitia et de jure.
  12. PETIT. História Antiga, p. 200.
  13. Como anteriormente dito, nos primórdios de Roma, na Realeza, as decisões jurídicas e políticas eram tomadas pelos comícios curiatos cujos membros eram exclusivamente patrícios. Depois, com o crescimento da cidade, e durante a era republicana, o surgimento de novas necessidades políticas e administrativas fez surgir assembléias maiores, as assembléias ou comícios centuriais, baseados na organização do exército romano, nas quais as leis eram discutidas e das quais participavam patrícios e plebeus em idade militar, desde que dotados de determinada capacidade financeira, haja vista o caráter censitário dessa assembléia. Observe que mesmo os poderosos de Roma pertenciam a categorias sociais distintas: a nobreza primitiva; b) os novos nobres, ou nobilitas, ou seja, membros resultantes da fusão de famílias patrícias com plebeus ricos; e c) os eqüestres, a mais alta categoria censitária da Roma republicana. Releva destacar que o processo de votação dos comícios centuriatos fazia prevalecer a vontade das camadas ricas sobre as demais. Isso porque o processo de votação se iniciava com os nobres e eqüestres os quais possuíam capacidade eleitoral superior às demais classes componentes do comício. O escrutínio iniciava-se pelas primeiras classes (da qual a nobilitas participava) as quais possuíam demais unidades votantes sob seu controle. Uma vez obtida a maioria, encerrava-se o processo de votação, de sorte que, quase sempre, nem todas as classes efetivamente votavam. Não é difícil notar que o poder decisório, tal como praticado nessas assembléias, ficava sob controle das classes mais ricas que ratifica, uma vez mais, a idéia de que quem detém poder econômico detém poder político.
  14. O evoluir das regras processuais romanas compreendeu três grandes sistemas: o sistema das ações da lei (legis actiones), o sistema formular (per formulas) e o sistema extra-ordinário (extraordinem cognitio). Nos dois primeiros, a concreção da justiça encarregava-se a um árbitro particular (judex) indicado às partes pelo rei ou pelo magistrado que acolhia a postulação dos mesmos. Grosso modo, em ambos os sistemas a lide (do latim, litis, contenda, luta) funcionava em duas etapas: uma, perante o magistrado (in jure) quando este ouvia as alegações do autor e do réu e, a seguir, indicava-lhes um terceiro capaz de efetivamente decidir ou pronunciar o direito aplicável ao caso; outra, diante de um árbitro particular (apud judicem), geralmente um sujeito versado nas leis, como um ex-senador ou ex-cônsul, cuja manifestação no processo ancorava-se em sua autoridade pessoal, haja vista que o exercício de tal função não representava a participação estatal na composição da controvérsia. Em razão de que a decisão da contenda dava-se mediante a ação privada, ou seja, de árbitros particulares, a essa fase da dinâmica processual romana chamamos ordem da justiça privada – ordo judiciorum privatorum. Contudo, os dois sistemas não eram idênticos. A substancial diferença existente entre as ações da lei e o processo formular residia no fato de que enquanto que naquelas predominavam a oralidade na manipulação das fórmulas processuais, neste, o magistrado, após audição das partes, redigia uma fórmula na qual lançava as informações básicas do conflito (qualificação das partes, indicação do julgador do conflito, a postulação do autor e a resposta do réu, etc) fórmula em que o árbitro particular (judex) se basearia para compor a lide, ficando aos seus contornos aprisionado para decidir. Já o terceiro sistema, extraordinem ou extraordinario cognitio (no vocábulo extraordinem, o prefixo latino extra indica ir além, ultrapassar, com sentido de superação da ordinem privatorum, da justiça feita por particulares) divergia substancialmente dos dois primeiros, embora deles haja recolhido contribuições. No sistema extra-ordinário o processo tornou-se escrito, instituiu-se o princípio da identidade física do juiz (de sorte que o mesmo magistrado que recebia a postulação inicial do autor e a resposta do réu era o mesmo que instruía e julgava a lide) e, o mais importante, a prestação da justiça passou a ser ônus estatal quando então se oportunizava às partes a possibilidade de interposição de recurso da decisão proferida dirigindo-o à apreciação de um colégio de julgadores.
  15. A respeito das magistraturas, aduz Petit (1979:208) que o magistrado romano, diversamente do grego, exercia real autoridade sobre o povo por ser o detentor, temporário e colegial, de parte do poder do Estado. As magistraturas superiores (consulado, pretura e ditadura) dotavam-se de imperium, enquanto que as magistraturas inferiores (a edilidade e a questura) detinham apenas competências especializadas, tais como a administração das cidades e a gerência de assuntos financeiros. Observe que o exercício da jurisdição em Roma tinha natureza administrativa, vale dizer, era incumbência de funcionários administrativos do Estado, dotados de prerrogativas para solver demandas .
  16. PETIT. História Antiga, p. 206.
  17. Catilina foi um dos mais conhecidos personagens da vida republicana, afamado por urdir sagaz plano de conquista do poder cujo plano fora, entretanto, desbaratado pelo não menos importante orador, político e advogado Marco Túlio Cícero. Na ocasião, pretendendo alcançar o poder, Catilina tramou, junto a companheiros, uma sedição que compreendia ataques de exércitos, incêndios em Roma e assassinatos em série de políticos e oposicionistas, além de outras ações. No auge do processo sedicional, conta-se que Catilina conseguiu agregar cerca de 10 mil homens em exército próprio. O seu próprio acusador e algoz, o cônsul Cícero, fora alvo de sua trama revolucionária tendo dela escapado graças à delação de uma amante de um dos conjurados de Catilina quem denunciara a cilada ao orador, oportunizando-lhe escapar à armadilha de morte. Descoberta a trama, Catilina fora acusado pelo engenho e habilidade retórica e jurídica de Cícero que proferira no Senado as famosas cartas intituladas catilinárias, dirigidas ao conspirador.. Juntamente com seu grupo, Catilina foi condenado à morte, encontrando-a, porém, em batalha travada contra as tropas republicanas..
  18. POLÍBIO. História universal, VI, 6 e 7.
  19. PETIT. História Antiga, p. 208.
  20. Em face de sua importância, releva transcrever alguns trechos da Lei das XII Tábuas, datada do século V a.C, coligidos por Sílvio Meira: É permitido ao pai matar o filho que nasce aleijado, mediante o julgamento de cinco vizinhos; o pai terá, sobre os filhos nascidos de casamento legítimo, o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los; o que um pai de família determinar no testamento sobre seus bens ou sobre a tutela dos filhos terá força de lei; a mulher que residiu durante um ano em casa de um homem, como se fora sua esposa, é adquirida por esse homem e cai sob o seu poder. MEIRA, Sílvio. A Lei das XII Tábuas: fonte do direito público e privado. 5 ed. Belém, CEJUP, 1989, p 168.
  21. O vocábulo latino expressa adequadamente o status social dessa camada social. Derivado do substantivo latino proletariu, (em português composto do radical prole, acrescido do sufixo ário) esse termo significa aquele que gera prole ou filhos, de sorte que o seu reconhecimento enquanto classe em si decorria da capacidade de fornecer membros ao Estado. O proletariado romano era composto por pessoas extremamente pobres, sem qualificação, as quais sobreviviam às custas de minguados salários recebidos por trabalhos prestados na cidade. Esse estrato compunha, juntamente com outros grupos de miseráveis, uma das mais baixas classes sociais de Roma.
  22. FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário, p. 45.
  23. Nesse período, pretextando a defesa da estabilidade do Estado, o Senado costumava votar uma extremada medida jurídica intitulada senatusconsultum ultimum, instrumento legal que, ao mesmo tempo em que declarava a existência de um cenário de perigo e instabilidade para o Estado, tinha o poder de suspender o exercício de direitos consagrados em lei, convocando e permitindo aos magistrados adotarem severas medidas emergenciais voltadas à salvação das instituições republicanas. Por esse artificioso instrumento, perseguições, confiscos e mortes adquiriam status de legalidade podendo até mesmo ser as ações estatais legitimadas a posteriori. Com não rara freqüência, o Senado votava senatusconsultos contra os sujeitos considerados traidores da pátria, tal como o fizera contra o conspirador alhures mencionado, Catilina. Assim também sucedera ao tribuno Tibério cujo assassinato teria sido posteriormente legitimado com suporte naquele instrumento jurídico. O substrato legitimador desse mecanismo jurídico era a conflitividade social e política que conduzia a República para o declínio. Na verdade, e buscando na atualidade um mecanismo jurídico analógico ao criado pelos romanos, o senatusconsulto em muito se assemelhou aos mecanismos jurídicos adotados no Brasil por ocasião dos governos militares em que vigia a doutrina de segurança nacional, pelos quais a liberdade e outros direitos da cidadania foram sumariamente suprimidos em defesa da "estabilidade da pátria".
  24. PLUTARCO. Vida de Tibério Craco, IX, 4.
  25. Na realidade, essa medida, embora de significativo alcance social, era nada revolucionária. Ao alimentar os famintos de Roma, a lei mantinha os pobres na situação de clientela, porém, na clientela do Estado e não mais dos particulares.
  26. Durante o governo de Sila publicavam-se listas de proscritos, de inimigos da República, os quais eram severamente perseguidos, junto com seus familiares, cujas propriedades eram confiscadas pelo Estado. Após cometer tantas atrocidades, Sila renunciou ao governo, delegou seus poderes ao Senado e retirou-se à vida privada. Sucederam-lhe, na direção do partido senatorial, os cônsules e generais Pompeu e Crasso, os quais passaram a compartilhar do poder outrora outorgado ao Senado pelo general Sila.
  27. Nesse cenário de crise, fértil para insurreições e golpes, é que surgiu, em 66 a.C, a conspiração de Lúcio Sérgio Catilina, patrício de grande prestígio junto à plebe, que insurgira contra as instituições capitaneadas por Pompeu. Catilina pregava a anulação de dívidas, o fim da oligarquia senatorial e a realização de ampla reforma agrária. Entretanto, a insurreição urdida por Catilina fora descoberta pelo orador, escritor e senador Cícero (104 - 43 a.C), arauto do patriciado, tendo sido denunciada em seus famosos discursos conhecidos por Catilinárias. Na primeira das quatro Catilinárias, o brilhante orador inicia seu discurso de denúncia utilizando-se de expressões de efeito, destinadas a impressionar e influir sobre o juízo da perplexa comunidade dos senadores. Fê-lo, pois, lançando contra Catilina a seguinte provocação: "Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?" – até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? Feita tal peroração, Cícero passou a demonstrar aos senadores reunidos, uma a uma, as ações tramadas pelo conspirador revelando-lhes detalhes de local, hora e efeitos desejados. Embora tivesse o Senado votado contra Catilina um senatusconsulto que lhe impunha a penalidade capital, os senadores optaram por converte-la em pena de exílio. Entretanto, o condenado fugira de Roma vindo a morrer em combate com as tropas fiéis ao governo. Por ter denunciado Catilina, Cícero fora ovacionado pelos romanos - exceto pelas classes populares - como "salvador da pátria".
  28. O elemento religioso, de capital importância nos primórdios de Roma, vivia, em fins da República, franco processo de declínio. Embora o populacho mantivesse uma série de crenças e superstições, as camadas da elite haviam substituído a religião tradicional pela filosofia helênica, operando, inclusive, a interpretação grega dos deuses latinos. De todo modo, os políticos continuariam a explorar a credulidade popular de forma a legitimar a expressão do poder. Apesar de inconfessadamente incrédulos, muitos políticos lançavam mão do apelo religioso em benefício de sua carreira pública, ora denominando-se protegidos por certos deuses populares (Vênus Félix, Vênus Genitrix, etc), ora investindo-se do augurato, a capacidade de controlar os presságios. Nessa época, a literatura jurídica encontrará expressão no labor de advogados como Hortênsio, dos oradores Licínio Crasso e Cícero. A retórica havia tornado-se instrumento indispensável ao exercício da política e do direito. Segundo as lições de Cícero, ao orador incumbia "agradar, convencer e emocionar" aos ouvintes, de sorte que muitas de suas obras revelam, efetivamente, tais qualidades.
  29. Em decorrência de seus feitos César costuma ser considerado como o fundador do Império romano. Filho de patrícios influentes, oriundo da gens Júlia, destacou-se pela sagacidade militar e inteligência política. Não foi um imperador no sentido estrito do termo, porquanto na crise da República assumiu o poder e se proclamou ditador vitalício de Roma. Fato é que a dominação imposta à Gália sob a sua liderança dera início ao processo de romanização de grande parte da Europa ocidental, compreendendo regiões como Portugal, Espanha, França, Bélgica e sul da Alemanha. No aspecto lingüístico-cultural, o português, o castelhano, o francês, o italiano e o romeno são legados importantes da romanidade.
  30. Em seu governo as regras processuais civis modificaram-se substancialmente. Nessa ocasião, o sistema processual vigente era o da extraordinária cognitio, também chamado de processo extraordinário. Nesse sistema, o Estado atraíra para si a juris-dicção, tornando-se o responsável por solver os conflitos de interesses existentes na sociedade, mediante a atuação de juízes incumbidos do poder jurisdicional de cujas decisões se permitia a interposição de recurso para um colegiado de julgadores.
  31. Séculos adiante, com a total supressão das assembléias populares pelo imperador Tibério, o Senado atrairia, além das competências legislativas e eleitorais outrora exercidas pelos comícios, também outras de natureza administrativa e judiciária.
  32. Importantes escolas de jurisconsultos se consolidaram nesse período, merecendo menção a escola dos Sabinianos e dos Proculianos. Tais escolas examinavam e debatiam variadas questões jurídicas. Entre os mais conhecidos jurisconsultos do período estão Paulo, Modestino, Papiniano, Ulpiano, Gaio e Sabino.
  33. O universalismo das idéias de Jesus, a denúncia de injustiças, da cobiça e da licenciosidade atraíra-lhe a oposição de lideranças políticas, econômicas e religiosas - sacerdotes e rabinos conservadores. Traído por Judas e condenado pelo Sinédrio (com o aval do procurador romano Pôncio Pilatos), Jesus recebeu a infame sentença, típica dos marginais de então: a morte por crucifixão. Ao contrário do que se esperava, a sua morte acendeu em seus seguidores maior fervor. A notícia de sua ressurreição e a crença em sua filiação divina viria abalar os alicerces políticos do Império, haja vista que os cristãos, cada vez mais numerosos, não pagavam impostos e rejeitavam reverenciar os imperadores como deuses vez que criam existir apenas um único Deus digno de adoração, o Deus cristão. Embora fossem os romanos tolerantes com a cultura e a religiosidade dos povos subjugados, os postulados cristãos foram considerados perigosos à estabilidade imperial. Assim, após cerca de trinta anos da morte de Jesus, Nero promovera forte perseguição aos cristãos; depois, Dioclesiano viria fazer o mesmo. Após séculos de perseguições, os seguidores de Jesus tiveram a liberdade de culto assegurada em função do Edito de Milão (313), promulgado por Constantino, em cujo governo acontecera o famoso Concílio de Nicéia no qual foram lançados os fundamentos da doutrina cristã. A partir de então, o cristianismo cresceu e se fortaleceu com o suporte ofertado pelo Estado e, apesar de algumas tentativas frustradas de retorno ao paganismo, veio a ser proclamado religião oficial do Império por Teodósio, no ano de 380. A partir de então, os perseguidos se tornariam perseguidores: os pagãos foram duramente reprimidos e condenados e a religião cristã se difundira por vários reinos germânicos – Bavária, Gália, etc – tendo como eixo condutor os pilares culturais e políticos de Roma. A influência do cristianismo sobre a cultura jurídica foi significativa. Não podemos esquecer que da junção dos preceitos hebraicos aos cristãos é que viria formar o substrato de uma nova e importante ética, base de toda a cultura ocidental na qual nos formamos, nos movemos e somos: a ética judaico-cristã.
  34. A respeito, sugerimos assistir ao filme "O gladiador", romance dirigido por Ridley Scott. Sem a preocupação de ser fiel aos eventos históricos – haja vista a natureza romanceada da produção – o filme demonstra os embates finais do Estado romano com os bárbaros germânicos e retrata o caráter de alguns personagens acima citados primando pela beleza cenográfica e pelo enredo envolvente.
  35. A partir do século II o Império iniciou a sua trajetória de declínio e o cenário sócio-político da época explica o surgimento e a proliferação de várias seitas salvacionistas. As guerras civis entre os exércitos prejudicavam a agricultura e o comércio, minando as riquezas imperiais. Em resultado, fome e epidemias dizimavam a população. O desgoverno político, a ausência de referenciais na vida pública e a invasão dos territórios romanos pelos bárbaros geravam imensa sensação de caos, uma absoluta falta de perspectiva quanto ao futuro, resultando num profundo desregramento moral que produziria uma cultura calcada em comportamentos imediatistas vivenciados na expressão do esgotar, do haurir o hic et nunc (aqui e agora) de modo frenético e inconsequente. Essa cultura preconizava a vivência da máxima horaciana do carpe diem (Odes, I, 11,8), incitando-se ao proveito da vida em todas as suas formas, de maneira despreocupada e irresponsável. Vale dizer: uma vez que o fim era inevitável, restava resignar-se à força do destino aproveitando o pouco que ainda sobrava da vida, pensava o romano. A respeito dessa visão, os sermões de São Cipriano, bispo de Cartago em 250 a.C, demonstram bem o sentimento de juízo final que se abatera sobre a população nessa fase do Império. As guerras, as doenças epidêmicas e a fome eram, para ele, os sintomas do dia do juízo, "o castigo de Deus face o desprezo dos homens". Aproveitando-se desse sentimento de salve-se quem puder e apoiados no fracasso das expectativas individuais e coletivas, vários grupos religiosos difundiram seus valores. O maniqueísmo (doutrina que pega a dicotomia da realidade entre forças inconciliáveis do Bem e do Mal), a crença na vida após a morte e a promessa da redenção, de novos tempos eram algumas das crenças persas então divulgadas e absorvidas pelos cristãos. Não precisamos nos esforçar para compreender porque tais postulados atraíam profundamente aquela população desesperada, acuada e ávida por qualquer espécie de amparo.
  36. MARANHÃO, Ricardo. ANTUNES, Fernanda M. Trabalho e civilização, 1999.
  37. RUNCIMAN. A civilização bizantina, p. 52.
  38. As Institutas eram um manual didático destinado a introduzir o discipulado das escolas de Constantinopla nas letras jurídicas. O Digesto (do verbo latino digerere, com sentido de ordenar) ou Pandectas (do grego, pandekomai, que significa recolher tudo) reunia todo o repertório jurisprudencial até então produzido, compreendendo pareceres e princípios jurídicos. Os Códigos agregavam antigas e novas constituições imperiais, sendo as Novelas a reunião das mais novas delas, promulgadas sob o governo de Justiniano. As Cinqüenta Decisões eram decisões imperiais sancionadas no governo de Justiniano. Entre alguns princípios consagrados pelo direito romano e coligidos a mando de Justiniano, merecem destaque os seguintes: ninguém é forçado a defender uma causa contra a própria vontade; ninguém sofrerá penalidade pelo que pensa; ninguém pode ser retirado à força de sua própria casa; o encargo da prova fica com aquele que afirma, e não com o que nega; um pai não pode ser testemunha competente contra um filho, nem um filho contra um pai; na aplicação de penalidades, contam a idade e a inexperiência da parte culpada.
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Sobre o autor
Jairo Coelho Moraes

Advogado, mestre em Direito Administrativo pela UFMG, professor de Processo Civil e História do Direito da PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Jairo Coelho. A experiência jurídica romana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2828, 30 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18806. Acesso em: 29 mar. 2024.

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