A ERRÔNEA INTERPRETAÇÃO DO MINISTRO EROS GRAU
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no dia 16/04/2010, por votação majoritária, retificar a proclamação do resultado do julgamento do pedido de Extradição do senhor Cesare Battisti. A decisão foi tomada na apreciação de uma questão de ordem levantada pelo governo italiano quanto à proclamação do resultado da votação no dia 18/11/2009. A proclamação dizia que, por maioria (5 a 4), a Suprema Corte autorizou a extradição, porém, também por maioria (5 a 4), "assentou o caráter discricionário" do cumprimento da decisão pelo presidente da República. Ou seja, que caberia ao Presidente da República decidir sobre a entrega ou não do paciente reclamado. Na sessão do dia 16/04 ficou assentado que seria retirada da proclamação do resultado a discricionariedade do Presidente da República para efetuar a extradição. Como se vê da ementa nº 08, supra transcrita, foi realmente retirada da proclamação a discricionariedade do Presidente da República e se fez constar que "deve o Presidente da República observar os termos do Tratado celebrado com o Estado requerente, quanto à entrega do extraditando".
Nessa mesma sessão, justificando seu confuso e equivocado voto, o ministro Eros Grau proferiu as seguintes impropriedades:
"O presidente da República tem a possibilidade de entregar ou não o extraditando";
"O presidente autoriza ou não, nos termos do tratado";
"O único ponto que precisava ser esclarecido é que, no meu entender, ao contrário do que foi afirmado pela ministra Cármen Lúcia, em primeira mão, o ato não é discricionário, porém há de ser praticado nos termos do direito convencional", observou o ministro Eros Grau, lembrando que, neste ponto, seguia jurisprudência firmada por voto do ministro Vítor Nunes Leal (aposentado), em outro caso de extradição.
"... para evitar confusão: ... Eu acompanhei, quanto à questão da não vinculação do presidente da República à decisão do Tribunal, a divergência. Mas, com relação à discricionariedade ou não do seu ato, eu direi: esse ato não é discricionário porque ele é regrado pelas disposições do tratado".
A menos que se considere o voto do ex-ministro Eros Grau tendencioso - idéia de que nos afastamos, sinceramente!! -, só se pode admitir que foi ele, o ex-ministro-juiz, o mais gravemente afetado psicologicamente pelo terror causado pelo fã-clube do extraditando.
O FUNDAMENTO DO SEU VOTO
O ex-ministro perdeu a noção do que significa a mais Alta Corte de Justiça do Brasil – e nisto se fez acompanhar por alguns de seus pares. Mas a linha de raciocínio abraçada pelo ex-ministro foi por demais extravagante. Para segui-la fez uma descabida e cansativa viagem: foi além túmulo. Disse o ex-ministro Eros Grau que fundamentou seu voto em "jurisprudência" firmada por voto do ex-ministro-juiz do STF Victor Nunes Leal, que em determinado caso de extradição não reconheceu poder discricionário do Presidente da República, mas que o ato de extraditar deveria observar "os termos do direito convencional". Um entendimento errôneo e hoje, mais do que nunca, imprestável para o deslinde de qualquer caso de extradição. E isto que ora afirmamos é de fácil entendimento. Senão reparem. O ex-ministro-juiz Victor Nunes Leal, falecido em 1985, teve assento no Supremo Tribunal Federal em período conturbado de nossa história – de 1960 a 1969. À época em que o ex-ministro Victor Nunes Leal exerceu a magistratura no STF viveu o Brasil sob a égide de duas Constituições: a de 1946 e a de 1967.
Estabelecia a Constituição de 1946:
Art 5º - "Compete à União:
I - manter relações com os Estados estrangeiros e com eles celebrar tratados e convenções; ... ;"
Art 87 – "Compete privativamente ao Presidente da República: ...;
VI - manter relações com Estados estrangeiros;
VII - celebrar tratados e convenções internacionais ad referendum do Congresso Nacional; ..."
Art 101 – "Ao Supremo Tribunal Federal compete:
I - processar e julgar originariamente: ...;
g) a extradição dos criminosos, requisitada por Estados estrangeiros e a homologação das sentenças estrangeiras; ..."
A Constituição de 1967 repetiu quase "ao pé da letra" os dispositivos retro transcritos:
Art 8º - "Compete à União:
I - manter relações com Estados estrangeiros e com eles celebrar tratados e convenções; participar de organizações internacionais; ..."
Art 83 – "Compete privativamente ao Presidente: ...;
VII - manter relações com Estados estrangeiros;
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, ad referendum do Congresso Nacional; ..."
Art 114 – "Compete ao Supremo Tribunal Federal:
I - processar e julgar originariamente: ...;
g) a extradição requisitada por Estado estrangeiro e a homologação das sentenças estrangeiras; ...".
Não nos demos ao trabalho de investigar em que processo extradicional o falecido ministro Victor Nunes Leal proferiu o voto que cegamente, "in memorium", seguiu o ex-ministro Eros Grau. Percebe-se que foi um voto completamente equivocado. Tanto a Constituição de 1946, no seu art. 101, inciso I, letra g, como a Constituição de 1967, no seu art. 114, inciso I, letra, g, outorgaram prerrogativa ao Supremo Tribunal Federal para processar e julgar a extradição requisitada por Estado estrangeiro. Essas duas Cartas também delegaram ao Executivo competência para celebrar com Estados estrangeiros tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.
Da história do falecido ex-ministro Victor Nunes Leal depreende-se que competência intelectual lhe sobejava. Diante do que dispunham as retro mencionadas Constituições não havia como se admitir que o Governo celebrasse acordo, tratado ou convenção extradicional estabelecendo que a si coubesse a decisão sobre extradição passiva. Seria um contra-senso; um explícito, indesejável e inadmissível "pré-estabelecido" conflito de competência, já que as Constituições brasileiras vigentes legaram essa prerrogativa ao Supremo Tribunal Federal. Certamente, esses instrumentos não seriam referendados pelo Congresso Nacional. Não sabemos que razões levaram o falecido ministro a proferir esse esdrúxulo voto e do qual o ministro Eros Grau é simpatizante. Mas se foi com base em dispositivo de tratado similar ao inciso "f" do parágrafo 1º do art. 3º do Tratado Brasil-Itália está claro que incidiu em equívoco injustificável; foi de uma infelicidade sem tamanho, como adiante se verá.
O ex-ministro Eros Grau enveredou pelo mesmo caminho. E ainda mais injustificável foi sua errônea interpretação do retro citado inciso "f" do § 1º do art. 3ºdo tratado ora em foco. O voto do ex-ministro-juiz do STF Victor Nunes Leal foi proferido na década de 60, há mais de quarenta (40) anos portanto, quando o instituto da extradição ainda não tinha uma regulamentação, um regramento que deixasse claro suas nuances. Como antes dissemos, hoje, mais do que nunca, não se concebe a interpretação do ministro Eros Grau. O instituto da extradição está regulamentado pela Lei nº 6.815/80 que, por sua linguagem simples, é bastante elucidativa; não deixa margem para errôneas interpretações nem mesmo para leigos. Sua perfeição é inquestionável, principalmente no que diz respeito ao instituto da extradição. Tanto é verdade que mesmo após a promulgação da Constituição de 1988 continuou em vigor.
O VOTO FÚNEBRE
Perdoe-nos o ilustrado ex-ministro Eros Grau. Sua interpretação com base no entendimento do ex-ministro-falecido é irracional. Se, por hipótese, as Constituições de 1946 e 1967 (regulamentações não existiram nos períodos de suas vigências) tivessem contemplado o Governo com poder para celebrar acordos, tratados ou convenções extradicionais e nesses instrumentos inserir cláusula a ele, Governo, assecuratória do poder de decidir sobre a matéria não haveria razão alguma para um processo extradicional se submeter à análise do Supremo Tribunal Federal. Teria o Presidente da República poder discricionário para decidir sobre o pedido do Estado estrangeiro. Como essa prerrogativa não foi reconhecida por nenhuma das Constituições, só podemos concluir que o voto ex-ministro Victor Nunes Leal, se não decorreu de um momento de rara infelicidade, foi tendencioso, visivelmente apaixonado, afastado da legalidade – "para um bom entendedor meia palavra basta": no início de 1969 foi ex-ministro afastado do STF por força de Ato Institucional. E, em face deste raciocínio, por questão de justiça - abandonando a descrença antes registrada – passamos a entender que o voto do ex-ministro Eros Grau deve, com maior razão, ser adjetivado como o voto do ex-ministro Victor Nunes Leal: tendencioso, apaixonado, ilegal. Dissemos "com maior razão" porque ele seguiu um voto que, mesmo que tivesse sido proferido com base legal, hoje, diante da legislação que rege a matéria, estaria obsoleto. O ex-ministro Eros Grau não sabia que o ex-ministro Victor Nunes Leal teve assento no STF na década de 1960? Que está o ex-ministro nas Graças de Deus desde 1985 – três (3) anos antes da promulgação da vigente Constituição? Sabia, sim, o ex-ministro Eros Grau que o entendimento esposado no voto do falecido ex-ministro não poderia ter aplicabilidade em processo extradicional hodierno.
"... PARA EVITAR CONFUSÃO: ...
EU ACOMPANHEI, QUANTO À QUESTÃO DA NÃO VINCULAÇÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA À DECISÃO DO TRIBUNAL, A DIVERGÊNCIA.
MAS, COM RELAÇÃO Á DISCRICIONARIEDADE OU NÃO DO SEU ATO, EU DIREI: ESSE ATO NÃO É DISCRICIONÁRIO PORQUE ELE É REGRADO PELAS DISPOSIÇÕES DO TRATADO".
Um impropério digno de ser submetido a um psicanalista. Terminantemente, não estava o ex-ministro Eros Grau em seu normal estado psíquico. Deve ter deixado seus pares não só atônitos, mas extremamente preocupados com seu estado de saúde.
Dizendo o ilustrado ex-ministro que não reconhece a vinculação do Presidente da República à decisão do Supremo Tribunal Federal em processo de extradição passiva e que o ato de extraditar ou não é regrado pelas disposições do tratado nada mais fez do que reconhecer que num tratado extradicional pode ser incluída cláusula que confira ao Presidente da República poder para decidir sobre extradição. Ou não? E que significa isso senão poder discricionário?
No capítulo em que tratamos "do arquivamento do processo" reproduzimos nosso ponto de vista sobre a submissão absoluta do Presidente da República ao acórdão prolatado pelo STF. E este modesto entendimento é compartilhado com muitos outros – leigos e operadores do Direito. Acreditamos que o ex-ministro Eros Grau e poucos de seus pares são raríssimas exceções. Na abertura do Ano Judiciário de 2011, inquirido por alguns jornalistas, o ministro Gilmar Mendes assim se pronunciou a respeito do assunto: "Eu destaquei que não fazia sentido o tribunal se pronunciar, uma Corte com o papel do STF, para produzir uma sentença, digamos assim, litero-poética recreativa. Um tribunal desse tem que decidir com efeito vinculante. Continua sendo minha posição, mas não foi a posição majoritária naquele momento".
O INCISO "f" DO § 1º DO ART. 3º DO TRATADO BRASIL-ITÁLIA
Nobres leitores, o Tratado Brasil-Itália, no que diz respeito ao instituto da "extradição", não regra ato discricionário, seja de quem for. Os acordos, tratados e convenções internacionais é que são regrados pelas legislações próprias das partes celebrantes. Com o Brasil não poderia ser diferente. O instituto da extradição agasalhado pelo Direito brasileiro é, hoje, regrado pela Constituição Federal "de 1988" e pela Lei nº 6.815/80 – "Estatuto do Estrangeiro". No regramento desse instituto esses diplomas não contemplam o Executivo com poder para decidir sobre extradição. A prerrogativa é do poder Judiciário na sua mais alta expressão - o Supremo Tribunal Federal - e plenitude. Nenhum acordo, tratado ou convenção internacional de que seja o Brasil parte pode se afastar dos regramentos estabelecidos nos retro mencionados diplomas. O parágrafo 3º do Tratado Brasil-Itália observou, no que diz respeito ao Brasil, o quanto estabelecido na Constituição Federal, e na Lei nº 6.815/80
Reza o art. 5º, inciso LII, da Constituição: "não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião".
O art. 77 da Lei nº 6.815/60 estabelece: "Não se concederá a extradição quando:
I - se tratar de brasileiro, salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido;
II - o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente;
III - o Brasil for competente, segundo suas leis, para julgar o crime imputado ao extraditando;
IV - a lei brasileira impuser ao crime a pena de prisão igual ou inferior a 1 (um) ano;
V - o extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido;
VI - estiver extinta a punibilidade pela prescrição segundo a lei brasileira ou a do Estado requerente;
VII - o fato constituir crime político; e
VIII - o extraditando houver de responder, no Estado requerente, perante Tribunal ou Juízo de exceção.
§ 1° A exceção do item VII não impedirá a extradição quando o fato constituir, principalmente, infração da lei penal comum, ou quando o crime comum, conexo ao delito político, constituir o fato principal".
O Tratado Brasil-Itália, com relação ao Brasil, ao tratar dos impedientes da extradição devia observância aos supra transcritos dispositivos, e assim o fez. Seu art. 3º, § 1º, ganhou a seguinte redação: "A Extradição não será concedida:
a)se, pelo mesmo fato, a pessoa reclamada estiver sendo submetida a processo penal ou já tiver sido julgada pelas autoridades judiciárias da parte requerida:
b)se, na ocasião do recebimento do pedido, segundo a lei de uma das partes, houver ocorrido prescrição do crime ou da pena:
c)se o fato pelo qual é pedida tiver sido objeto de anistia na parte requerida, e estiver sob a jurisdição penal desta;
d)se a pessoa reclamada tiver sido ou vier a ser submetida a julgamento por um tribunal de exceção na parte requerente;
e)se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político;
f)se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados";
g)se o fato pelo qual é pedida constituir, segundo a lei da parte requerida, crime exclusivamente militar. Para fins deste tratado, consideram-se exclusivamente militares os crimes previstos e puníveis pela lei militar, que não constituam crimes de direito comum.
A "parte requerida" a que se refere o § 1º, inciso f, do retro transcrito dispositivo é a REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, que tem como Poderes "independentes (?) e harmônicos (?)" entre si o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A parte requerida, pois, não é o Poder Executivo, não é o Governo. No Direito brasileiro, em matéria de extradição, pela República Federativa do Brasil, quem dá a palavra final é o Poder Judiciário, repetimos, na sua mais ata expressão – o Supremo Tribunal Federal, a quem os legisladores, constituinte e ordinário, concederam a prerrogativa, a exclusividade, de sobre ela, extradição, conhecer e decidir. Vale aqui transcrever os dispositivos que credenciam o Poder Judiciário a tanto:
art. 102 da Constituição Federal: "Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originalmente: ...; g) a extradição solicitada por Estado Estrangeiro; ..."
art. 83 da Lei nº 6.815/80: "Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão".
Também, e não poderia ser diferente, foi ao Poder Judiciário que os legisladores atribuíram a competência "exclusiva" para apreciar o caráter da infração. Reza o § 2º do art. 77 da Lei nº 6.815/80: "Caberá, EXCLUSIVAMENTE, ao Supremo Tribunal Federal, a apreciação do caráter da infração".
Os motivos elencados no inciso "f" do § 1º do artigo 3º do Tratado Brasil-Itália – assim como os discriminados nos demais incisos - devem, pois, ser apreciados pelo Supremo Tribunal Federal. E isto fica mais claro ainda ao nos depararmos com o que está disposto no § 3º do retro citado art. 77: "O Supremo Tribunal Federal poderá deixar de considerar crimes políticos os atentados contra Chefes de Estado ou quaisquer autoridades, bem assim os atos de anarquismo, terrorismo, sabotagem, seqüestro de pessoa, ou que importem propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social".
Ora, se é o Supremo Tribunal Federal legalmente credenciado para, diante de certas circunstâncias, deixar de considerar crimes políticos atos cometidos por motivos realmente políticos, mas que, no seu entender, por razões ponderáveis, extrapolam o tolerável para serem havidos como tais, por que se entender que é o Executivo "a parte requerida" com prerrogativa para negar extradição com fundamento no inciso "f" do § 1º do art. 3º do Tratado Extradicional celebrado entre a República Federativa do Brasil e a República Italiana?
Estamos cansados de dizer que o processo extradicional adotado pelo Direito brasileiro é eminentemente judicial e que para apreciá-lo e julgá-lo a prerrogativa exclusiva é da mais Alta Corte de Justiça do Brasil, que - pelo menos se presume - é composta da elite jurídica da nação brasileira e que por força de juramento é imparcial – também presumivelmente.
O multicitado inciso "f" diz: "se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição ..." .
Desnecessário, mas, para abusar da tolerância que até aqui nos dispensaram os distintos leitores, perguntamos: quem tem mais idoneidade e sapiência para expor essas "razões ponderáveis"?
Razões ponderáveis são razões detalhadamente estudadas, desapaixonadas, imparciais. Então, agora, respondam-nos: o Executivo, um poder político, sem comprometimento com imparcialidade, ou o Judiciário – na sua maior expressão, o STF , que tem por dever de ofício professar a imparcialidade?