RESUMO
No contexto da Administração Pública em nosso país, vez por outra se tem notícia de casos de corrupção em que administradores públicos exorbitam os poderes que lhes são conferidos e praticam atos com objetivos particulares, em detrimento do interesse público, o qual detém supremacia sobre o interesse privado. Nesta senda, este trabalho cuida de analisar a utilização desta liberdade conferida à Administração Pública como forma de troca política de empregos por retribuições alheias ao interesse público - prática esta chamada de clientelismo – e que se dá por ato discricionário do administrador, o qual nomeia cargos em comissão com fulcro no artigo 37, inciso II, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Pretende ainda relacionar esta prática com o princípio da moralidade administrativa, demonstrando-se a violação aos preceitos de honestidade, lealdade e boa-fé, e conseqüentemente, a violação de tal princípio. Demonstrada a transgressão ao princípio da moralidade, cuida de abordar o enquadramento deste fenômeno na Lei 8.429/92, Lei da Improbidade Administrativa, classificando o ato do clientelismo como ato de improbidade. Por fim, conclui por defender a aplicação direta da aludida Lei como instrumento de punição para os transgressores, ressaltando ainda a urgente necessidade da edição de uma norma legal que discipline as formas de acesso a cargos em comissão, limitando-as, a fim de valorizar o concurso público como meio idôneo de garantir o mérito, a isonomia e a moralidade no provimento de cargos públicos, estreitando os caminhos para a corrupção. Quanto ao método, este trabalho utiliza o método indutivo, cuja consecução se deu por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando, inclusive, notícias jornalísticas. Por tudo isso, este estudo se mostra, no cenário e dias atuais, oportuno por proporcionar uma profunda reflexão sobre o tema, apresentando, alfim, sugestões para a prevenção e o combate à corrupção que decorre do clientelismo.
LISTA DE SIGLAS
CRFB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
LIA – Lei de Improbidade Administrativa
RE – Recurso Extraordinário
REsp – Recurso Especial
RMS – Recurso em Mandado de Segurança
SUMÁRIO:1. INTRODUÇÃO. 2. O ACESSO A CARGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO BRASIL – EVOLUÇÃO HISTÓRICA. 3. DAS FORMAS DE INGRESSO NO SERVIÇO PÚBLICO NA CRFB/88. 4. O CLIENTELISMO. 4.1 Conceito e características. 4.2 Casos sugestivamente clientelísticos nos dias atuais. 4.3 A discricionariedade administrativa nos casos clientelísticos. 5. O CLIENTELISMO E O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. 6. A IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA EM DECORRÊNCIA DA DISTRIBUIÇÃO DISCRICIONÁRIA DE CARGOS COMISSIONADOS. 7. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS
1.Introdução
Considerando o ordenamento jurídico-administrativo, é cediço que o interesse público possui supremacia em relação aos interesses particulares, devendo aquele ser perseguido a todo momento pela Administração Pública, seja qual for o ato praticado. É, pois, por essa razão que o sistema de normas confere à Administração algumas prerrogativas e privilégios que a situam em patamar diferenciado em relação aos administrados, como por exemplo, a presunção de legitimidade e veracidade de seus atos, entre outros. Tudo isso com o intuito único de lhe imprimir maiores condições na busca pelos interesses da coletividade.
Nesta via, não poucas vezes o administrador público é autorizado pela lei a realizar suas atribuições com a utilização do poder discricionário. Este, por sua vez, é conferido ao agente público em alguns casos, no intuito de lhe possibilitar certa margem de liberdade na decisão sobre qual a atitude melhor se aplica ao caso concreto, já que a lei nem sempre é capaz de fazê-lo. Dessa forma, ao agir discricionariamente, o administrador deve, pautando-se em critérios de oportunidade e conveniência, decidir qual a solução mais adequada a atingir o objetivo pretendido legalmente, qual seja, o interesse público.
Contudo, tem-se observado – não somente nos dias atuais, mas também em outras épocas, passando por toda a história do país – que administradores públicos, descompromissados com a coisa pública, nem sempre têm agido com esse fim, visando principalmente à satisfação de seus próprios interesses ou de quaisquer outros, diversos do interesse coletivo, e, para isso, geralmente se utilizam do poder discricionário que lhes é conferido.
Um caso de ato praticado com o uso da discricionariedade é a nomeação de servidores nos quadros da Administração Pública sem que estes tenham se submetido à regra do concurso público. Trata-se dos conhecidos "cargos comissionados" ou "cargos de confiança", encontrados em todas as esferas da administração.
Autorizados pela própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, inciso II, os cargos em comissão foram trazidos por esta Carta Magna como uma exceção à regra do concurso público, podendo ser ocupados por qualquer pessoa, conforme a pretensão do administrador, o qual pode nomeá-la e exonerá-la livremente.
Entretanto, ocorre que, ao autorizar a possibilidade de criação desses cargos, a Lei Maior apenas atribuiu como limitação a necessidade de previsão em lei, a qual deverá mencionar os percentuais de cargos a serem preenchidos por esta forma de provimento funcional. Dessa forma, a Constituição abriu um leque enorme de possibilidades de utilização desse dispositivo para nomear servidores sem o crivo do concurso público. E é nesse contexto que surgem os maiores abusos.
Completamente descompromissados com o interesse público, muitos administradores, como se tem observado, têm usado dessa lacuna legal e do seu poder discricionário para criar cargos demasiados – na maioria das vezes sem a efetiva necessidade – os quais, em sua maior parte, são ocupados por pessoas que não possuem qualificação técnica suficiente.
Visando a fins totalmente contrários ao interesse público, esses cargos comissionados geralmente são utilizados pelos administradores como meio de troca política, ou seja, os cargos comissionados desnecessários são distribuídos a apaniguados, os quais devem retribuí-lo por meio de votos, apoio político, dízimo partidário, etc. Esta troca política, por sua vez, em que se tem como único escopo a satisfação de interesses particulares, é chamada de clientelismo, e tem sido observada com bastante freqüência nas relações políticas do país, sendo de fundamental importância o seu estudo, razão por que foi escolhido como tema deste trabalho.
Contudo, observa-se que são poucos os trabalhos acerca deste fenômeno, e, quando existem, não costumam relacioná-los aos princípios constitucionais nem analisam seus impactos no ordenamento jurídico. Geralmente, os trabalhos abordando este tema se limitam apenas a realizar uma análise histórica ou política sobre o assunto.
Por essa razão, percebeu-se a necessidade de realizar um estudo que relacionasse tal prática aos princípios constitucionais, mais precisamente ao princípio da moralidade administrativa, dissecando suas implicações no âmbito jurídico, e analisando ainda o seu possível enquadramento como ato de improbidade administrativa.
Pretende-se, pois, nestes escritos, efetuar uma análise do fenômeno do clientelismo, sobretudo em relação à distribuição de cargos comissionados como forma de troca política, fazendo ainda uma relação com o princípio da moralidade, além de situá-lo como ato de improbidade administrativa.
Para fazê-lo, inicialmente será realizada uma análise da evolução histórica das formas de acesso a cargos e funções públicas no Brasil, desde o período colonial até o advento da Constituição Federal de 1988, sempre contextualizando com os acontecimentos de cada época, relacionando-as ainda com os sistemas constitucionais que vigiam.
No momento seguinte, será abordada a forma de acesso a cargos públicos atualmente permitida no ordenamento jurídico, trazendo o que preconiza a Constituição de 1988. Nesta ocasião, serão pormenorizadas as formas de ingresso no serviço público, abordando-se o instituto do concurso público e as possibilidades de ingresso nos cargos em comissão em que é dispensado o certame.
Logo em seguida, introduzir-se-á o conceito de clientelismo, situando-o especificamente nos casos de distribuição discricionária de cargos comissionados, assim como se apresentam dois casos observados na mídia nacional e que possuem características de práticas clientelísticas.
Após esse momento, abordar-se-á sobre o princípio da moralidade administrativa, trazendo-se à colação o seu significado, suas características e sua previsão legal, sem deixar de relacioná-lo ao fenômeno do clientelismo em decorrência da distribuição de cargos comissionados.
Por fim, será realizada uma análise da ofensa causada pelo clientelismo ao princípio da moralidade, sob a perspectiva da Lei da Improbidade Administrativa, realizando uma análise do possível enquadramento do clientelismo como ato de improbidade.
Quanto ao método, neste trabalho, foi utilizado o indutivo, cuja consecução se deu por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando-se, inclusive, notícias jornalísticas.
Ademais, a tratativa de tal temática adquire, sobretudo no cenário e dias atuais, incontestável importância à ciência jurídica, tendo em vista que se trata de um fenômeno sócio-político que apresenta importantes e graves implicações no âmbito jurídico. Além do mais, o presente trabalho se mostra por demais oportuno, uma vez que traz o tema de maneira ordenada e precisa, sem se desvirtuar dos conceitos e princípios jurídicos propostos, a exemplo da moralidade administrativa e do conceito de improbidade administrativa.
Por tudo isso, o presente estudo não se limita à apresentação dos fatos, mas se preocupa em proporcionar uma profunda reflexão sobre o tema, apresentando, alfim, sugestões para que o clientelismo em decorrência da distribuição discricionária de cargos possa ser minimizado no cenário sócio-político-jurídico brasileiro.
2.O ACESSO A CARGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO BRASIL – EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Inicialmente, antes de se adentrar no tema propriamente dito deste trabalho, necessária se faz a análise de como se deu, no decorrer da história de nosso país, a ocupação das funções e cargos públicos, considerando sempre o contexto histórico, bem como o contexto sócio-cultural em que estavam inseridas as nomeações e ingressos nos cargos públicos.
Após o descobrimento do Brasil, a ocupação de nosso território só veio efetivamente a acontecer, ainda no período colonial, com o sistema de Capitanias Hereditárias em 1534, que foi o primeiro projeto político e econômico da Coroa portuguesa com o fito específico de povoar e colonizar as terras aqui descobertas.
Através deste sistema, a coroa dividiu o território brasileiro em 12 porções irregulares, confrontantes com o oceano, e as doou a membros da pequena nobreza lusa – os donatários – que deveriam estar decididos a habitar o país, devendo ainda ser necessária e suficientemente ricos para colonizar e defender as novas terras
Sobre o assunto, o constitucionalista José Afonso da Silva (2007, p. 70) assim dispõe:
As capitanias eram organizações sem qualquer vínculo umas com as outras. Seus titulares – os donatários – dispunham de poderes quase absolutos. Afinal de contas, elas constituíam seus domínios onde exerciam seu governo com jurisdição cível e criminal, embora o fizessem por ouvidores de sua nomeação e juízes eleitos pelas vilas. (Grifo nosso)
Ante o exposto, percebe-se que o sistema de Capitanias Hereditárias foi o marco inicial das nomeações de cargos no Brasil, uma vez que os donatários, titulares das terras distribuídas no país, passaram a ter poderes, conferidos pela Coroa Portuguesa, para nomear e investir quem fosse de seu interesse em funções públicas, ao seu livre arbítrio.
Contudo, tal sistema não prosperou, fracassando em seus objetivos originais. Alguns donatários nem vieram ao Brasil, e outros logo desistiram diante das dificuldades com as resistências indígenas e com a necessidade de elevados investimentos. Dessa forma, apenas as capitanias de São Vicente, Porto Seguro, Ilhéus e Pernambuco tiveram um maior sucesso.
Em 1548, houve a trágica morte do donatário da capitania da Bahia, que fora devorado por índios tupinambás, dando causa à retomada daquelas terras pelo poder real. Tinha início, então, o Governo-geral, que se caracterizava por ser um sistema unitário, tendo como escopo a centralização do poder na colônia. Este sistema, por sua vez, não surgiu em substituição definitiva do sistema anterior, mas passou a coexistir com aquele.
Através do Regimento do Governador-Geral, datado de dezembro daquele mesmo ano, foi nomeado o primeiro governador – Tomé de Souza – implicando ainda uma maior organização do governo geral do Brasil.
Referindo-se aos regimentos dos governadores-gerais, "foram eles, pois, cartas organizatórias do regime colonial, que conferiam ao governador-geral poderes atinentes ao ‘governo político’ e ao ‘governo militar’ da colônia" (SILVA, 2007. p. 70). Estes regimentos implicaram também o estabelecimento do posto de ouvidor-mor, de procurador da fazenda e de capitão-mor da costa.
Não diferente do sistema de Capitanias hereditárias, o sistema de Governo-geral também conferia aos governadores poderes para nomeação de cargos, apesar de ter diminuído o seu arbítrio em relação ao sistema anterior. Isto se evidencia nas palavras de Ronaldo Vainfas (2001 apud FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 270), como se verifica no excerto seguinte:
O governador-geral foi definido como chefe supremo da administração colonial, com ênfase nas suas funções militares, sendo o posto de comandante da tropa sua atribuição fundamental. Em termos administrativos, ficava responsável pelo governo civil, articulando as diversas capitanias e cuidando dos assuntos fazendários. Na área judiciária, assumiu a responsabilidade de preencher cargos serventuários, comutar penas e, posteriormente, supervisionar os trabalhos do Tribunal da Relação da Bahia, criado em 1609. (Grifo nosso)
Posteriormente, a partir de 1808, se dá a instalação da corte no Rio de Janeiro, com a chegada de D. João VI ao Brasil, assim como ocorre, sete anos depois, a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal, finalizando, assim, o sistema colonial. Com este acontecimento, ocorreu a instalação das repartições da corte, assim como órgãos do estado, conforme se observa abaixo, em pensamento expresso por Silva (2007, p. 72-73):
Transferida a sede da Família Reinante para o Rio de Janeiro, era preciso instalar as repartições, os tribunais e as comodidades necessárias à organização do governo; cumpria estabelecer a ordem, com a polícia, a justiça superior, os órgãos administrativos, que tinham até aí faltado à colônia. Assim se fez a partir de 1º de abril. Foram instituídos, criados e instalados o Conselho de Estado, a Intendência Geral de Polícia, o Conselho da Fazenda, a Mesa da Consciência e Ordens, o Conselho Militar, o Desembargo do paço, a Casa da Suplicação, a Academia de Marinha; a Junta-Geral do Comércio, o juízo dos falidos e conservador dos privilégios; o Banco do Brasil, para auxiliar o Erário, a Casa da Moeda, a Impressão Régia etc.
Entretanto, convém mencionar que a atuação destes órgãos não ultrapassou os limites do Rio de Janeiro, atingindo muito brandamente o restante do país, onde se manteve o hábito da apropriação privada do poder público.
Com a proclamação da independência, surge um problema: a necessidade da unidade nacional, com a estruturação de um poder centralizador e uma organização nacional que obstasse os poderes regionais e locais. Isto fez ascender a idéia do constitucionalismo, reforçando a necessidade do surgimento de um novo pacto político, que estivesse condizente com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e que, ao mesmo tempo, além de declarar os direitos dos cidadãos aqui instalados, estabelecesse mecanismos de separação dos poderes.
Diante disso, surgiu a assembléia constituinte de 1823 e, por conseguinte, a Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824. Com este texto constitucional, veio a instituição dos poderes executivo, legislativo, judiciário e de um quarto poder, o poder moderador. Previsto no artigo 98 do referido texto constitucional, o poder moderador caracterizava-se por atribuir poderes peculiares ao imperador, determinando que a pessoa deste era "inviolável e sagrada". Confronte-se o que preconizava o referido texto constitucional, in verbis:
Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos. [sic!]
Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma. [sic!] (BRASIL, 1824)
Para elucidar as prerrogativas que foram atribuídas ao imperador com a instituição do poder moderador, é oportuno mencionar o pensamento de Cecília Helena de Sales Oliveira (2003, p. 14), como se vê abaixo:
O texto determinava que a "pessoa do Imperador" era "inviolável e sagrada", não estando "sujeita a responsabilidade alguma", e que o poder moderador conferia a ele as seguintes prerrogativas: nomear os senadores, com base em listas tríplices formuladas através de eleições provinciais; convocar o poder legislativo extraordinariamente; sancionar decretos e resoluções do poder legislativo para que tivessem força de lei; aprovar ou suspender as resoluções dos conselhos provinciais; prorrogar ou adiar os trabalhos legislativos; dissolver a Câmara dos Deputados, "nos casos em que o exigir a salvação do Estado, convocando imediatamente outra, que a substitua"; nomear e demitir "livremente" os ministros de Estado; suspender magistrados acusados de prevaricação; perdoar ou moderar as penas impostas a réus condenados por sentença (direito de graça); e conceder anistia. Para auxiliá-lo nessas decisões haveria um Conselho de Estado, composto por dez membros vitalícios, e que não contava com a participação dos ministros. Nomeado pelo monarca, deveria ser ouvido em todos os "negócios graves" e "em todas as ocasiões" em que as atribuições do poder moderador fossem exercidas. (Grifo nosso)
Como se vê, surgiu então, concomitantemente, o Conselho de Estado, que tinha as funções de auxiliar ao Imperador nas suas decisões mais importantes. Como já se pode observar, os laços de parentesco, assim como características de apadrinhamento sempre se mantiveram presentes na história do país, e agora não era diferente. Isto fica plenamente evidenciado no excerto seguinte, que se refere ao Conselho de Estado, veja-se:
Seus membros faziam parte do seleto grupo de famílias que, ao longo do primeiro reinado, iria compor as primeiras casas titulares do Império. Eram homens cujas fortunas vinham se consolidando desde os fins do século XVIII e que além de controlarem largas faixas do mercado – pois atuavam na produção e comercialização de gêneros de exportação e de abastecimento e no tráfico negreiro – exerciam cargos na magistratura e na administração, ascendendo, também, a postos importantes do Banco do Brasil e do Real Erário durante o período joanino. Por vínculos de parentesco e negócios pertenciam aos setores mercantis mais ricos e poderosos da província fluminense e da região centro-sul e haviam atuado de forma direta nas decisões que ensejaram a separação de Portugal, pois antes mesmo da revolução de 1820 partilhavam o projeto de construir um Império no Brasil. (OLIVEIRA, 2003, p. 21, grifo nosso)
Ademais, o imperador tinha ainda o poder de nomear senadores; nomear e demitir ministros de estado; nomear magistrados e prover os mais empregos civis e políticos, conforme era previsto nos artigos 101, §§ 1º e 6º; e 102, §§ 3º e 4º, da referida constituição.
Com o passar dos anos, foi amadurecendo, principalmente entre a elite agrária, a idéia do federalismo, como forma de assegurar o controle do Estado e garantir seus interesses, pois a monarquia já representava um obstáculo ao desenvolvimento econômico nacional. Confira-se o contexto da época:
(FREITAS NETO; TASINAFO, 2006. p. 525)O poder econômico estava, sem dúvida, centrado nas mãos dos cafeicultores paulistas, mas não o político. Os ministérios e a Câmara dos Deputados contavam com elementos da elite agrária de outras áreas, como, por exemplo, Nordeste e Rio de Janeiro. A centralização monárquica era, certamente, um empecilho à economia nacional. Assim, os cafeicultores viam no federalismo, na instituição da República, a solução de seus problemas, pois nesse sistema as províncias teriam maior autonomia em relação ao poder central.
Assim, a efusão de tais pensamentos leva à Proclamação da República em 1889, e, por conseguinte, ao surgimento de novas constituições, quais sejam, as constituições republicanas de 1891, de 1934, de 1946, de 1967 e a Emenda Constitucional de nº 01/1969.
Na primeira constituição republicana, a de 1891, insere-se no contexto nacional o regime presidencialista, a separação e tripartição dos poderes do Estado, consolidando-se o governo sob a forma de República Federativa, cuja estrutura era até então desconhecida nestas terras. Isso se confirma nos dizeres seguintes:
A nova Constituição foi promulgada em fevereiro de 1891, consagrando em seus pontos fundamentais: estabelecimento dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário; o mandato do presidente da República seria de quatro anos. O presidente poderia intervir nos estados quando houvesse ameaça separatista, guerra ou conflitos entre eles; voto universal (aberto, não-secreto) masculino aos maiores de 21 anos, exceto aos analfabetos e soldados; autonomia aos estados federados para elaborar sua própria Constituição, eleger seu governador, realizar empréstimo no exterior, decretar impostos e ter suas próprias forças militares (...) (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 567)
Nesta constituição, permanece a idéia de livre arbítrio na nomeação de cargos e funções públicas, com a diferença de que, enquanto outrora apenas o imperador nomeava quem ele bem entendesse, agora a constituição previa que cada poder (o legislativo, através da Câmara de Deputados e do Senado, assim como o Judiciário) detinha as atribuições de nomear seus empregados.
Por outro lado, deve-se destacar que a primeira constituição republicana brasileira vinculou a criação de cargos à previsão legal, além de consagrar a idéia da ampla acessibilidade aos cargos públicos, disciplinando, em seu artigo 73, que são acessíveis a todos os brasileiros os cargos públicos civis e militares. Apesar disso, o texto não trouxe qualquer mecanismo de controle do acesso e de impessoalidade do acesso aos cargos, razão por que tais modificações, apesar de extremamente importantes, não significaram uma forma de inibição efetiva dos abusos até então existentes. Além disso, era muito forte e arraigado nos costumes daquela época o fenômeno do coronelismo. Nesta via, interessante trazer à colação o que aborda Silva (2007, p. 80), apresentado palavras de Edgar Carone (1969):
O poder dos governadores, por sua vez, sustenta-se no coronelismo, fenômeno em que se transmudarem a fragmentação e a disseminação do poder durante a colônia, contido no Império pelo Poder Moderador. "O fenômeno do coronelismo tem suas leis próprias e funciona na base da coerção da força e da lei oral, bem como de favores e obrigações. Esta interdependência é fundamental: o coronel é aquele que protege, socorre, homizia e sustenta materialmente os seus agregados; por sua vez, exige deles a vida, a obediência e a fidelidade. É por isso que o coronelismo significa força política e força militar". [Grifo nosso]
Já a constituição republicana de 1934, "estatuiu princípios sobre o funcionalismo público" (SILVA, 2007, p. 82), em seus artigos 159 e 172, sendo responsável por introduzir na Administração Pública brasileira as principais alterações significativas no tocante ao acesso a cargos e empregos públicos. A primeira destas alterações diz respeito ao Ministério Público, o qual, segundo o artigo 95, § 3º da referida carta política, só poderia ter seus cargos providos através de concurso. Além disso, a perda do cargo só seria possível por sentença judicial ou processo Administrativo, sendo assegurada a ampla defesa.
Não foi diferente em relação ao poder judiciário dos Estados, Territórios e Distrito Federal, cuja investidura, no primeiro grau, apenas poderia se dar mediante concurso, organizado pela Corte de Apelação (artigo 104). Trouxe ainda outra inovação: a exigência de concurso, assim como a inamovibilidade e vitaliciedade, aos cargos de professor oficial.
Todas essas alterações, influenciadas pelo inflamado cenário da revolução de 1930, tiveram o forte cunho de coibir as práticas patrimonialistas observadas a todo o momento.
Com o surgimento da constituição de 1937, que veio inserida no seio do regime ditatorial que se apresentava na época, não houve significativas mudanças no que preconizava a constituição anterior no tocante à forma de acesso aos cargos públicos. Entretanto, apesar da manutenção dos direitos anteriormente adquiridos, esta constituição, no seu artigo 157, abria a possibilidade de colocar em disponibilidade o servidor público civil cujo afastamento fosse considerado de conveniência ou de interesse público, desde que não fosse aplicada ao caso a pena de exoneração.
Em outras palavras, uma comissão disciplinar, nomeada pelo ministro, podia exonerar ou colocar em disponibilidade qualquer servidor, tomando como justificativa fatores subjetivos como a conveniência e o interesse público. Com isso, os direitos garantidos na mesma Carta Magna eram tolhidos pelo regime ditatorial.
A constituição de 1946 não trouxe significativas alterações sobre este assunto, devendo-se destacar apenas o surgimento da figura jurídica dos cargos de confiança e de livre nomeação e demissão, que até então não existia no ordenamento jurídico. Tal figura aparece quando, nos artigos 184 a 188, ao estipular o prazo de dois e cinco anos para aquisição de estabilidade dos servidores admitidos com e sem concurso público, respectivamente, o legislador excetua este direito aos detentores de cargos de confiança.
A introdução deste instituto abre um precedente à oficialização, por meio de lei, de servidores admitidos sem concurso, sob a justificativa de tratar-se de cargo de confiança.
Posteriormente, em 1967, o desencadeamento de acontecimentos leva o cenário nacional ao contexto de ditadura militar. A edição dos Atos Institucionais pelos Militares que se instauraram no poder, sobretudo a edição dos Atos Institucionais nº 4 e nº 5 (AI-4; AI-5), se sobrepôs à ordem constitucional vigente. Confronte-se o que é apresentado em seguida, com destaques acrescidos:
No governo Castelo Branco houve a criação de instrumentos de controle e perseguição de adversários que consolidaram o regime autoritário. Com a criação do SNI (Serviço Nacional de Informações), em 1964, e da Lei de Segurança Nacional (LSN), em 1967, montou-se o instrumento jurídico para as prisões políticas e cassações de direitos individuais realizadas pela ditadura.
[...]
Em 1967, após a convocação extraordinária do Congresso pelo AI-4 (6 de dezembro de 1966), o país tinha uma nova Constituição, pela qual o mandato presidencial era reduzido de cinco para quatro anos e o Poder Executivo consolidava seu fortalecimento em relação aos demais poderes, ratificando medidas adotadas pelos Atos Institucionais. (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 841, grifo nosso)
Foi promulgada então a constituição de 1967, e, posteriormente, foi promulgada em 17 de outubro de 1969 a Emenda Constitucional nº 1, a qual, seguida de mais 25 emendas, sustentou a ditadura militar até o seu declínio, com a convocação da Assembléia Nacional Constituinte, através da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985. Durante este período, não houve alterações importantes na forma de acesso aos cargos públicos.
No momento histórico seguinte, exsurge a Constituição Cidadã de 1988, a qual se encontra vigente até os dias atuais, sendo, por isso, objeto primordial deste estudo, e cuja análise far-se-á a partir do capítulo seguinte.