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Shakespeare, Von Ihering e a interpretação do contrato

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"Dispõe-te, assim, para cortar a carne. Mas não derrames sangue, nem amputes senão o peso justo de uma libra, nem mais nem menos; pois se retirares mais ou menos do que isso, o suficiente para deixá-la mais pesada ou leve na proporção, embora, da vigésima parte de um pobre escrópulo; ou, ainda, se a balança pender um fio, apenas, de cabelo, por isso a vida perdes, ficando os teus bens todos confiscados..." (SHAKESPEARE, William, O Mercador de Veneza, in Comédias, trad. Carlos Alberto Nunes. Brasília: Universidade de Brasília / Melhoramentos, 1982, p. 262, palavras de PÓRCIA).

I. Gerações muito à frente da nossa, por certo, discutirão acerca das implicações jurídicas do contrato celebrado entre Shylock e Antônio. Este se responsabilizou como fiador de um empréstimo feito a Bassânio, firmando que, caso não pagasse os Ducados até o vencimento da dívida, Shylock poderia cortar uma libra de sua carne de qualquer parte do corpo. Vencida a dívida, pretendendo o credor a execução do pactuado, Pórcia, que se fazia passar por um magistrado, surge para apreciar a questão. Esse, entre outros enredos, imortalizaram "O Mercador de Veneza", mais uma, dentre as grandes obras de William Shakespeare.

II. É voz comum na doutrina que, quando duas ou mais vontades ajustam-se, em determinado momento e mediante modo estabelecido, surge o conceito de contrato. É bem verdade ser tal definição ainda ingênua, todavia, de maneira geral podemos dizer que o contrato é a manifestação ajustada da vontade humana, conforme as prescrições da lei e com escopo de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos, ou como bem sintetizou Caio Mário: é "o acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos" (1).

No direito privado fala-se da liberdade das partes para a realização dos contratos, ou melhor, da chamada liberdade de contratar (2) assente em quatro momentos distintos, segundo o escólio do professor Caio Mário (3). Primeiro, na vontade de resolver atendendo os interesses e conveniências das partes envolvidas. Ninguém é obrigado, em regra, a contratar, se bem que no Estado contemporâneo, nos moldes de sua organização, marcado pelo intervencionismo, existem mais e mais situações onde o indivíduo vê-se compelido a contratar em favor de uma pretensa destinação social. A segunda implicação é a da escolha com quem se pretende o ajuste e o tipo de negócio a realizar. O indivíduo é livre para contratar com quem entender necessário. O poder individual aqui também não é absoluto, eis que a opção quanto à pessoa nem sempre pode ser feita (ex: monopólios públicos, contratos de adesão). O terceiro momento é o da fixação do conteúdo do negócio. As partes firmam o que deve conter o ajuste, conforme seus interesses. Todavia, tal fixação está cada vez mais limitada. Por derradeiro, uma vez concluído o contrato, passa a constituir fonte de cognição do direito, autorizando qualquer das partes a reclamar seu cumprimento perante o Judiciário.

Entretanto, a liberdade de contratar, nos moldes tradicionais do direito privado, encontra limitação, modernamente, na idéia de ordem pública, vez que o interesse individual não pode prevalecer sobre o interesse social, o da coletividade. Não podem, pois, os princípios assentes na ordem pública verem-se afrontados por convenção entre particulares. Nesse aspecto o artigo 6º do Código Civil Francês é expresso: "Não se pode derrogar, por convenções particulares, as leis que interessam a ordem pública e aos bons costumes". Pontes de Miranda, lecionando sobre o que ele chama de "auto-regramento" da vontade, comentando exatamente a respeito das limitações acerca do querer do homem, afirma que "no direito como processo social de adaptação, o regramento jurídico veda alguns atos humanos (atos ilícitos absolutos e relativos)..." (4).

Se por um lado é permitido aos homens poder considerável para dispor livremente de sua vontade, o direito positivo limita a ação livre de cada um, sem o que a vida coletiva estaria perturbada (5).

Desta forma, no berço do próprio direito privado, em tempos onde é prevalecente o interesse social, aumentando a extensão e intensidade das normas de ordem pública, o Estado interfere cada vez mais, seja impondo a contratação, instituindo cláusulas coercitivas, ou mesmo concedendo ao juiz a faculdade de rever o pactuado. Obviamente que hoje observamos a diminuição da interferência estatal com o fenômeno da globalização, mas esse é outro assunto.

III. Pois bem, tendo Pórcia a possibilidade de rever o pactuado, enxergou que aquele pacto era válido, tendo em conta que o título obedeceu a sua forma e a autonomia da vontade imperava. Na comunidade ninguém duvidava da validade do título, inclusive o próprio Antônio, embora todos achassem injusto. Mas, hoje sabemos que a fixação do conteúdo do negócio infringia a lei penal. O homicídio, inclusive em sua forma tentada, era previsto como tal pelas leis de Veneza. Desta forma, aquele que faz acordo no intuito de retirar uma libra, aproximadamente um quilograma, de carne no corpo de um homem, ainda que o consinta a vítima, estar a realizar uma conduta delituosa se põe início à execução. No mínimo reside, na espécie, o chamado dolo eventual.

O que não vislumbrou Von Ihering na sua crítica ao problema (ver A Luta Pelo Direito, 4a Edição, Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1983) foi a questão atinente à justiça. Para ele o direito restringia-se a mera forma. Houve um contrato, Antônio e Shylock o assinaram, o título foi reconhecido pelas leis locais, necessário, pois, seu cumprimento. Não há como deixar de ver a visão formalista do pensador alemão, apegado, sobremaneira, aos cânones legais, ao pacto estabelecido. Shakespeare, embora não enfrentando diretamente a questão, por não está afeito às discussões acadêmicas, manteve válido o título, considerando até as convenções da época, contudo, em mais uma demonstração de que estava à frente de seu tempo, atingiu a solução mais justa, utilizando-se da interpretação do negócio, realizada por Pórcia e foi além: o magistral escritor inglês percebeu a questão do conteúdo contratual e firmou posição no seu escrito determinando a condenação do avarento Shylock.

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IV. Carlos Maximiliano afirma que "interpretar uma expressão do Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta" (6). Nesse sentido, o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro expressa que "na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e as exigências do bem comum".

Não há como negar que tais exigências da moderna hermenêutica, embora ausente os rigores científicos e aspectos técnico-conceituais, foram percebidas por Shakespeare, que inicialmente valeu-se da interpretação meramente literal (gramatical ou filológica), quando Pórcia afirma que na letra pertencente a Shylock plenamente válida, em consonância com as leis de Veneza, apenas está registrada uma libra de carne, nem mais, nem menos, e nenhuma gota de sangue poderá ser derramada, vez que somente está garantido no título uma única libra de carne.

Pórcia, entrementes, não se socorreu apenas da interpretação gramatical. A linguagem, no dizer de Reale, só pode ser entendida de maneira estrutural, em correlação com as estruturas e mutações sociais (7). A moça, encarnada no juiz shakespeariano, valeu-se em conjunto da interpretação teleológica. Porém, visualizou não o fim, o qual Ihering reduzia a uma forma de interesse, mas antes, o sentido do valor reconhecido racionalmente enquanto motivo determinante da ação (8). Como afirma Reale, "os valores não se explicam segundo nexos de causalidade" (9) e tal interpretação conduz ao juiz a missão de, na aplicação da norma, "vencer os óbices criados por leis prenhes de individualismos" (10), atendendo às exigências do bem comum, objetivando a justiça, que no caso respeitou, mesmo naquele tempo, o valor supremo da dignidade da pessoa humana. Com um subterfúgio é verdade, mas subterfúgio que foi utilizado para segurança jurídica daquela coletividade, apegada ás formas e ao exagero da autonomia da vontade e não a subterfúgio para retirar o direito de Shylock que inexistia. Isto é que não percebeu Ihering, que o direito em questão tratava-se da proteção à incolumidade física e psíquica do ser humano, e não proteção à avareza, que é característica daqueles que entendem negócio, liberdade de contratar e forma, acima dos valores consignados ao homem enquanto homem.

V. Shakespeare, de fato, estava à frente de seu tempo e, no dizer de Joseph Kohler, a cena forense do Mercador de Veneza encerra "a quintessência do caráter e da formação do direito. Contém uma sabedoria jurídica mais profunda que a encerrada em dez volumes das pandetas, e proporciona uma visão mais penetrante que todas as obras sobre a história do direito, de Savigny a Ihering" (11).


NOTAS

1. PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 6.

2. LÔBO, Paulo Luiz Neto, Condições Gerais dos Contratos e Cláusula Abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 10 e 11. O autor afirma que "desde Kant a autonomia da vontade confundiu-se com a própria noção de liberdade: a liberdade concebeu-se no moderno sentido negativo de não impedimento e a autonomia como propriedade de ser lei para si mesma. A heteronomia seria típica das leis de natureza, onde imperaria a necessidade natural como causa eficiente. A vontade é que seria, diferentemente da causalidade natural (causas estranhas), uma espécie de causalidade humana. Afirma Kant que à idéia de liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de autonomia". Na fundamentação kantiana, segundo o professor, a autonomia envolve todo o direito não só o privado. Os juristas apropriando-se de tal princípio deram-lhe feição dogmático-jurídica estrita, fixando limitações através do ordenamento jurídico.

3. PEREIRA, Caio Mário, op. cit., p. 15.

4. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, Tomo XXIII, 2a edição. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, p. 6.

5. O conceito de liberdade marcou sobremaneira o Estado Moderno. A noção de liberdade foi importantíssima para o surgimento do Sujeito de Direito. Era preciso um indivíduo autônomo, autodeterminado, para ser livre. Livre para ter direito "subjetivo", o direito à propriedade. Como observa Kelsen, já na crítica à subjetividade, citando Puchta: "O conceito fundamental do direito é a liberdade... o conceito abstrato de liberdade é: possibilidade de alguém se determinar para algo... O homem é o sujeito de direito pelo fato de lhe competir aquela possibilidade de se determinar, pelo fato de ter uma vontade’, quer dizer: pelo fato de ser livre". Mas livre, principalmente, para ser proprietário, livre para contratar. (Ver KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, trad. J.B. Machado, 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995).

6. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1975, p. 22.

7. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 288.

8. REALE, Miguel. op. cit., p. 286.

9. REALE, ob. cit., p. 288.

10. TENÓRIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 162.

11. Apud VON IHERING, Rudolf, A Luta Pelo Direito, 4a Edição. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1983, p. 9.

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Sobre o autor
Alberto Jorge Correia de Barros Lima

Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco, Prof. da Escola Superior da Magistratura do Estado de Alagoas, Prof. Adjunto de Direito Penal, Direito Penal Constitucional e Criminologia da Graduação e do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, Juiz de Direito titular do 2º Tribunal do Júri de Maceió, atualmente exercendo as funções de Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Alberto Jorge Correia Barros. Shakespeare, Von Ihering e a interpretação do contrato. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1889. Acesso em: 23 dez. 2024.

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