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Mercadorias abandonadas em estabelecimentos comerciais

29/04/2011 às 09:14

Resumo:


  • O Código de Defesa do Consumidor não prevê todas as situações de consumo, e em casos de bens não retirados por consumidores, deve-se recorrer ao Código Civil e ao Código de Processo Civil para ações adequadas.

  • Cláusulas que preveem a perda da propriedade do produto por não retirada são consideradas abusivas e nulas pelo CDC, mas é permitido cobrar pelo armazenamento após prazo estipulado.

  • Em caso de não retirada do produto, o fornecedor deve notificar o consumidor e, após um mês sem retirada, pode-se recorrer ao procedimento de coisas vagas do Código de Processo Civil, entregando o bem à autoridade competente.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O que fazer com as mercadorias deixadas por consumidores em oficinas, lojas ou assistências técnicas que não são retiradas posteriormente?

RESUMO: Diante da diversidade de situações criadas pelas relações de consumo nos deparamos constantemente com particularidades que não são resolvidas expressamente no Código de Defesa do Consumidor. Podemos destacar as mercadorias deixadas por consumidores em oficinas, lojas ou assistências técnicas para fazer algum procedimento no produto, seja em garantia ou não e que não são retiradas posteriormente. A dúvida do que fazer com o produto nestes casos é constante, principalmente considerando o custo elevado de alguns bens, e o receio de responder civil e criminalmente caso seja dado destinação que não esteja amparada em lei. Apesar do código consumeirista não responder a esta questão, devemos buscar nos Códigos Civil e de Processo Civil a complementação necessária para obter amparo jurídico, resguardando-se assim os interesses envolvidos.


INTRODUÇÃO

O Código de Defesa do Consumidor, assim intitulada a lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, é um importante avanço legislativo para regular as relações de consumo, resguardando não só os consumidores como também os fornecedores que passaram a ter parâmetros para o exercício de suas atividades comerciais.

A referida lei, traça linhas gerais, e elenca diversas situações em que define parâmetros a serem seguidos nas relações de consumo, chegando a prever sanções administrativas e penais.

Apesar da abrangência do código consumeirista, não é possível prever todas as situações que a vida em uma sociedade moderna pode criar, ainda assim, não se pode deixar sem respaldo legal nenhuma relação jurídica, sendo que neste caso a própria lei 8.078/80 diz em seu artigo 7º que outras leis serão utilizadas, além dos princípios gerais do direito, analogia e equidade.

Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.

Desta forma, não havendo determinação expressa do que o fornecedor deverá fazer em caso de mercadoria abandonada no Código de Defesa do Consumidor, deveremos buscar guarida nas demais legislações aplicando a analogia se for o caso.


O ABANDONO NÃO SE PRESUME

A perda da propriedade está regulada no artigo 1.275 do Código Civil, são elas: alienação; renúncia; abandono; perecimento da coisa; desapropriação.

Quando um consumidor deixa uma mercadoria em uma oficina ou qualquer estabelecimento para fazer um reparo, troca ou melhoramento, seja ou não em garantia, e não volta para buscá-lo, poder-se-ia pensar que houve um abandono do bem.

No entanto, não é o que ocorre na realidade, o abandono não se presume, devendo existir voluntariedade, ou seja, intenção de abandonar, ou nas palavras de Silvio de Salvo Venosa:

"O abandono é percebido pelo comportamento do titular. É preciso, no entanto, avaliar se existe voluntariedade ... O fato de o proprietário não cuidar do que é seu por período mais ou menos longo não traduz de per si abandono ... Como também se trata de ato de disposição de direitos, na dúvida o abandono não se presume." (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.246)

Devemos considerar que uma pessoa que tenha intenção de abandonar uma mercadoria não a levará até uma assistência técnica para consertá-la.

Com isso a presunção de abandono não se sustenta, pois em uma época como a nossa podemos considerar diversas situações que impediriam o consumidor de retirar a mercadoria, tal como: viagem, mudança, doença, acidente, falta de tempo, esquecimento, falecimento, etc.


CLÁUSULA COM PRAZO DE RETIRADA

Quando o consumidor deixa uma mercadoria para reparo, uma prática comum é a de escrever no recibo da mercadoria ou ordem de serviço que "se o consumidor não retirar o produto no prazo de 90 dias após a data marcada, o consumidor perderá a propriedade do produto depositado, podendo ser vendido como forma de pagamento pelo serviço autorizado".

Tal cláusula não tem validade jurídica, tendo em vista que não há previsão legal para abandono presumido como já observamos retro.

A cláusula que fixa prazo sob pena de perda da propriedade é considerada abusiva nos termos do artigo 51, IV do Código de Defesa do Consumidor e é entendida como não escrita.

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

IV. estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Nestes termos a cláusula com prazo para retirar o produto sob pena de perder a propriedade é nula de pleno direito, e é uma prática que deve ser evitada pelos fornecedores.


PRAZO DE RETIRADA SOB PENA DE COBRANÇA A TÍTULO DE GUARDA

Por outro lado é possível no momento em que o consumidor entregar o produto para reparo, lhe fornecer o recibo da mercadoria com a informação expressa de que haverá um prazo limite para a retirada do produto, sendo que após esta data será cobrado um valor pré-estabelecido a título de guarda do bem.

É lícita esta cobrança pois o fornecedor terá despesas e responsabilidades com a guarda do produto em seu estabelecimento. Cumpre observar que o valor a ser cobrado pela guarda dever ser fixado sem excessos, sob pena de se tornar abusiva.

Um parâmetro que pode ser tomado para fixação do custo de guarda é o limite do valor do serviço realizado. Deve-se considerar que a mercadoria não ficará por período indeterminado com o fornecedor pois este poderá dar a ela uma destinação amparada em lei, até mesmo porque ele terá interesse em se restituir dos valores despendidos e evitar prejuízos com a inércia do consumidor.


DO PRODUTO NÃO RETIRADO

Quando o consumidor deixa uma mercadoria com o fornecedor para execução de algum serviço ele transfere somente a posse precária, a propriedade continua com ele até que ocorra uma das hipóteses do artigo 1.275 do Código Civil.

O fornecedor neste caso deverá informar pelos meios comuns (telefone, e-mail, fax, carta), que o produto pode ser retirado. Caso o consumidor não compareça, deverá ser feita uma notificação por via postal com aviso de recebimento ou via cartório.

Importante verificar que o próprio consumidor tenha assinado o aviso de recebimento para que a notificação tenha pleno efeito.

Cumpre ressaltar que esta é uma medida para o fornecedor se resguardar e não é pelo fato de que o consumidor, mesmo cientificado, não vá retirar o produto que poderá ser entendido como abandono, mesmo porque motivos alheios à vontade dele podem impedi-lo de tomar providências.

Circunstância diferente é o próprio consumidor dizer por escrito de forma clara que não quer retirar o produto doando para o fornecedor, com assinatura de próprio punho, preferencialmente reconhecida firma, e desde que ele seja capaz e possa dispor do bem.


O QUE FAZER COM O PRODUTO NÃO RETIRADO?

No caso de não haver a retirada do produto mesmo depois de notificado pessoalmente ou o consumidor não for mais encontrado, não há no Código de Defesa do Consumidor uma saída.

Necessário será recorrer ao regramento geral determinado no Código de Processo Civil que nos artigos 1.170 a 1.176 traz o procedimento com relação às coisas vagas.

Apesar de se tratar de um procedimento criado a princípio para destinação de coisas perdidas, o artigo 1.175 diz que o regramento é aplicável aos objetos deixados em hotéis [01], oficinas e outros estabelecimentos.

Diz o dispositivo de lei que o procedimento de coisas vagas é aplicável aos objetos deixados e não reclamados dentro de 1 (um) mês, apesar de não estar claro na lei o termo inicial, é prudente contar o prazo de um mês após a notificação de que o prazo de retirada (constante do recibo de entrega do produto ao fornecedor) expirou.

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Esta cautela é importante porque, caso o fornecedor cause algum prejuízo ao consumidor com dolo, ou seja, induzindo a outra parte em erro (ludibriar, enganar), será condenado a indenizá-lo nos termos do artigo 1.235 do Código Civil que diz:

Art. 1.235. O descobridor [02] responde pelos prejuízos causados ao proprietário ou possuidor legítimo, quando tiver procedido com dolo.

Assim, é importante que primeiro tenha escoado o prazo para retirada do produto constante no recibo da manutenção, depois disso seja feita uma notificação ao cliente com aviso de recebimento, e somente após a cientificação seja contado o prazo de um mês para dar destinação ao produto não retirado.

Nesta notificação, deverá constar que caso o consumidor não retire o produto no prazo de um mês, este será entregue em juízo para que seja dada a destinação nos termo da lei, deverá constar ainda se haverá ou não despesas referente aos eventuais reparos e à guarda.

Passado o prazo da notificação, o produto poderá ser entregue à autoridade policial (delegado) ou judiciária (juiz) junto com a prova da notificação ou das tentativas frustradas de encontrar o consumidor [03].

Se entregue à autoridade policial será lavrado auto de arrecadação, colhendo as informações sobre o produto, o fornecedor e as circunstâncias, assim como o nome do dono (consumidor), e o endereço conhecido. Após, o auto de arrecadação e o produto serão encaminhados para o juiz.

Se preferir entregar diretamente para o juiz deverá ser feita uma petição assinada por advogado.

O local de ajuizamento da ação é o domicílio do consumidor, caso tenha se mudado e seja desconhecido o seu novo endereço, a ação poderá ser ajuizada no domicílio do fornecedor.

O juiz mandará citar o consumidor para retirar o produto, condenando ele a pagar às despesas do fornecedor, tanto referentes aos reparos (caso o orçamento tenha sido aprovado), como relativos à guarda do bem.

Se o consumidor não retirar o produto ou não quiser pagar a dívida, o produto vai a leilão, podendo o fornecedor adjudicar o bem, caso tenha interesse, depositando a diferença.


EXISTE PENALIDADE PARA A VENDA OU NÃO DEVOLUÇÃO DA MECADORIA?

Caso o fornecedor venda, doe, ou por qualquer modo dê outra destinação à mercadoria não restituindo ao seu dono, poderá responder civil e criminalmente.

Na esfera criminal, podemos observar a apropriação indébita, descrita no artigo 168 do Código Penal.

Apropriação indébita

Art. 168. Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:

Pena – reclusão, de 1 a 4 anos, e multa.

Na esfera cível o consumidor poderá requerer a devolução do bem ou a indenização equivalente mais perdas e danos.


E SE PRODUTO FOR ROUBADO OU AVARIADO NO ESTABELECIMENTO DO FORNECEDOR

O fornecedor assume o risco da atividade negocial e todas as obrigações inerentes à prestação de serviços. Nestes termos quando um consumidor entrega uma mercadoria em garantia ou não, para um reparo, troca ou melhoramento, ele está confiando que o bem lhe será devolvido, no mínimo, nas condições em que se encontrava.

Neste caso é aplicada a regra da responsabilidade civil objetiva do fornecedor, ou seja, ele responderá por quaisquer danos causados ao produto de seus clientes sob a sua guarda independente de ter culpa no fato gerador do dano.

Em outros termos, o fornecedor é obrigado a indenizar o consumidor por qualquer dano ao produto, ou mesmo em caso de incêndio, roubo, raio, etc. Não importa o motivo pois a responsabilidade é objetiva.

Por isso é comum os estabelecimentos manterem seguro para cobertura de tais imprevistos e que indenize o montante suficiente para suprir os danos de todos os seus bens e de seus clientes.

Daí podemos extrair que enquanto o produto não for retirado pelo consumidor, o fornecedor deverá tomar todas as cautelas para evitar a sua deterioração ou qualquer outro risco contra a integralidade do bem.

O Código de Defesa do Consumidor trata da questão da responsabilidade objetiva em seu artigo 14, § 1º, inciso II, onde deixa claro que o fornecedor responde independente de culpa pelos danos causados.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.   

§ 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

[...]

II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

Podemos pegar como exemplo uma decisão relatada pelo Desembargador Natanael Caetano em um caso em que um veículo foi furtado dentro de uma oficina. Restou reconhecida a responsabilidade objetivo do fornecedor e a obrigação de indenizar.

É objetiva a responsabilidade civil do fornecedor de serviços perante os consumidores, bastando, para os fins de configurar o seu dever de indenizar, a prova da existência de um dano experimentado pelo consumidor e o liame havido entre o dano e a atividade empresarial colocada no mercado que o fez emergir, dispensando-se qualquer exame acerca da existência de culpa. Restando induvidosa a ocorrência de dano material consubstanciado no furto de veículo deixado em oficina para reparos e a não ruptura do nexo de causalidade entre o dano e o dever de guarda e proteção do veículo pelo prestador de serviços, o qual deve suportar os riscos de sua atividade empresarial, tem-se como devida a indenização pretendida. (TJ-DF; Rec. 2006.07.1.027418-4; Ac. 414.133; Primeira Turma Cível; Rel. Des. Natanael Caetano; DJDFTE 14/04/2010; Pág. 92)

Nestes termos, além de não poder desfazer de qualquer maneira do produto deixado pelo consumidor, o fornecedor deverá cuidar para que seja mantida a integridade do bem, sendo prudente providenciar a notificação e a correta destinação para não sofrer prejuízos mais tarde.


CONCLUSÃO

Nos casos em que o consumidor deixar uma mercadoria no estabelecimento do fornecedor além do prazo fixado para sua retirada, este não poderá se apossar do bem nem vendê-lo ou doar, deverá notificar o consumidor para que retire o produto em 30 dias, caso decorrido o prazo mesmo cientificado ou quando incerto o seu paradeiro, deverá ser observado o procedimento de coisas vagas, onde o produto deverá ser entregue a Autoridade Policial ou em Juízo. Tais cautelas estão respaldadas em lei e resguardam os interesses tanto do fornecedor quando do consumidor, em consonância com a transparência e o equilíbrio que permeiam os princípios norteadores das relações de consumo.


Notas

  1. Com relação às bagagens de hóspedes e viajantes em hospedarias deve-se observar o disposto no artigo 649 e parágrafo único cumulado com o 1.467, inciso I, do Código Civil, onde poderá ser retida como garantia das despesas de hospedagem.
  2. Apesar do texto se referir ao "descobridor", também poderá ser aplicado ao fornecedor neste caso, utilizado a redação do artigo 1.175 do CPC, que estende o procedimento de coisas vagas também aos bens deixados em hotéis, oficinas e outros estabelecimentos.
  3. Artigo 1.170 do CPC – Aquele que achar coisa alheia perdida, não lhe conhecendo o dono ou legítimo possuidor, a entregará à autoridade judiciária ou policial, que a arrecadará, mandando lavrar o respectivo auto, dele constando a sua descrição e as declarações do inventor.

Parágrafo único – A coisa, com o auto, será logo remetida ao juiz competente, quando a entrega tiver sido feita à autoridade policial ou a outro juiz.

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Sobre o autor
Leonard Batista

Advogado em Mogi das Cruzes (SP). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Leonard. Mercadorias abandonadas em estabelecimentos comerciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2858, 29 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18996. Acesso em: 22 dez. 2024.

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