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Tendência legislativa europeia, clonagem animal para produção de alimentos e a conformidade ao Direito do Comércio Internacional

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30/04/2011 às 16:04
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O uso da técnica de clonagem animal para produção de alimentos não representa, em realidade, um padrão moralmente errado no território da União Europeia.

Introdução

Em 1997, um verdadeiro alvoroço foi trazido à tona pela imprensa mundial a respeito de um importante avanço científico realizado na Escócia sobre clonagem animal. Era o anúncio pelo cientista Ian Wilmut da confirmação de que a ovelha Dolly, como a batizara, estava viva e suas células continham exatamente o mesmo material genético de uma célula mamária de outra ovelha viva e adulta. Demorou quase um ano para se provar que o material genético do clone Dolly era exatamente o mesmo da ovelha doadora. Pronto. Estava comprovada pelo processo de transferência nuclear a possibilidade de se reproduzir assexuadamente mamíferos utilizando-se material genético de uma célula adulta.

O processo apresentado consiste basicamente em cinco etapas. Primeiramente, extrai-se o material genético ou DNA (ácido desoxirribonucléico) – o qual contém as informações genéticas que coordenam o funcionamento e crescimento nos seres vivos – de uma célula somática adulta de um animal doador. Esta célula somática nada mais é do que qualquer célula que contenha a cadeia de DNA completa que não seja espermatozóide ou óvulo. Em segundo lugar, obtém-se um óvulo retirado de uma fêmea da mesma espécie, o qual terá seu núcleo inteiramente retirado e descartado, pois é a parte da célula que contém o material genético da fêmea doadora de órgão. Em terceiro lugar, insere-se o material genético extraído da primeira célula somática no óvulo "vazio" onde é feito uma fusão por meio de eletricidade. Em seguida, este óvulo "preenchido" é estimulado para que se divida como ocorreria numa reprodução normal se tivesse sido fertilizado por um espermatozóide, sendo colocado em um meio de cultura para que se desenvolva na forma de blastocisto – um período anterior ao estágio embrionário. Finalmente, após alguns dias, este blastocisto é inserido em uma fêmea para que se desenvolva como em uma gestação normal.

É verdade que todo este processo é resultado de um grande estudo científico e aperfeiçoou-se muito desde 1997. Em muitos países, já se tem notícias de que diversas espécies foram clonadas. Somente para mencionar algumas conhecidas e de uso comercial, começa-se com um caso no Canadá, onde, no ano de 2000, foi anunciado o nascimento do touro Starbuck II, clone do renomado reprodutor Hanoverhill Starbuck, o qual havia morrido 2 anos antes e tivera seu material genético extraído de tecidos congelados. [01] Em 2001, cientistas da Texas A&M University clonaram com sucesso um gato. [02] Em 2003, no Laboratório de Tecnologia Reprodutiva em Cremona, na Itália, foi a vez dos cavalos. Tratava-se da fêmea Prometea, caso em que, pela primeira vez, a gestação de um clone ocorreu na mesma fêmea doadora do material genético. [03] Uma fêmea de camelo batizada de Injaz nasceu em 2009 nos Emirados Árabes Unidos, revelando a possibilidade também da clonagem nesta espécie. [04]

Mesmo diante dos resultados satisfatórios da clonagem desses animais, não se pode afirmar que a técnica goze, nos dias de hoje, de um status de simples procedimento realizado em qualquer lugar ou por qualquer pessoa. Na grande maioria dos países onde se domina a tecnologia, uma estrutura cara e profissionais altamente qualificados são demandados.

Tendo em vista tal complexidade, a técnica de clonagem é limitada economicamente, sendo utilizada fora do campo estritamente científico apenas para criar réplicas de animais de grande valor ou, em outros termos, os que têm uma carga genética muito valorizada por possuírem características ótimas da sua espécie. Um ótimo primeiro exemplo é o caso do touro-clone canadense Starbuck II, sêmen do qual já foi vendido para os Estados Unidos e diversos países na América Latina. [05] Na Espanha, o excelente e valioso "touro de briga" Vasito, que morreu em março deste ano, foi clonado dando origem a outro de nome Got. No Brasil, a técnica também vem sendo utilizada para fins comerciais. É caso do Touro Irã, por exemplo, um importante reprodutor que já deu origem a mais de 10 "irmãos", vivos, criados por clonagem.

Esses exemplos são claramente provenientes de atividades dos defensores da técnica como uma maneira confiável de manter rebanhos da mais alta qualidade, pois assim se possibilita uma rápida reprodução dos animais melhores e de superior qualidade genética. Ainda, outras estratégias são levadas em conta como o aumento da resistência a patologias, fertilidade e outros aspectos gerais da robustez animal. Por outro lado, existe um número razoável de defensores da proibição do uso da técnica, os quais a consideram contrária aos princípios da natureza por razões ligadas ao resultado do sofrimento e bem-estar dos animais e, ainda, por preocupações ligadas à diminuição da diversidade genética.

Alguns países já se manifestaram diante da seriedade da questão. A Dinamarca, por exemplo, já impôs uma proibição ao uso da clonagem animal par fins comerciais, liberando a atividade somente para fins essenciais, entendidos estes como pesquisa básica, pesquisa aplicada com o fim específico de melhorar a saúde e o meio ambiente ou ainda para a criação de animais que produzam substâncias as quais essencialmente beneficiam a saúde e o meio ambiente. Fora essas exceções, a proibição baseia-se em aspectos éticos levando em conta o stress ou sofrimento animal, incluindo considerações como integridade, instinto e bem-estar.

No mesmo sentido, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução em 3 de setembro de 2008 chamando a Comissão Européia para que submetesse propostas proibindo, no que tange à produção de alimentos, (i) a clonagem de animais, (ii) a criação de animais clonados ou da prole desses animais, (iii) a oferta no mercado de carne ou laticínios derivados de animais clonados ou de sua prole, e (iv) a importação de animais clonados, sua prole, sêmen ou embrião de animais clonados ou de sua prole, e carne e laticínios derivados de animais clonados ou de sua prole. O Parlamento baseou-se na Opinião Científica, denominada "Segurança Alimentar, Saúde Animal e Bem-Estar e Impacto Ambiental dos Animais derivados da Clonagem por transferência nuclear de células somáticas (SCNT)" [06] [07] elaborada pelo Comitê Científico da Autoridade Européia para a Segurança de Alimentos (EFSA), e na opinião do Grupo Europeu em Ética na Ciência e Novas Tecnologias para a Comissão Européia sobre os Aspectos Éticos da clonagem animal para o fornecimento de alimento publicada em 16 de janeiro de 2008. [08]

A Comissão da União Européia, seguindo a citada resolução, elaborou um relatório [09] ao Parlamento e Conselho da União Européia sobre clonagem animal para produção de alimento, o qual foi publicado em 19 de outubro de 2010. Na conclusão do documento, a Comissão estabelece algumas propostas de medidas legislativas que, se adotadas, poderão trazer grande impacto ao comércio internacional uma vez que podem criar barreiras injustificadas ao livre comércio estabelecido entre os países da União Européia e os países de fora desta zona. Os mais afetados seriam, sem dúvida, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá e, principalmente, os Estados Unidos, o país líder no processo de clonagem animal para a produção de alimentos.

Nesse sentido, este estudo cuidará de analisar a conformidade da possível medida legislativa proposta pela Comissão com o sistema de Acordos sob a égide da Organização Mundial do Comércio tal qual estabelecido em 1994 pelo Acordo de Marrakesh. Começar-se-á descrevendo a medida legislativa proposta (I) e seus objetivos e finalidades (II), tais quais estabelecidos pelo relatório. Num terceiro momento, e o mais importante, será analisada a conformidade da proposta com Acordos da OMC aplicáveis (III).


I – Identificação das medidas legislativas propostas pela Comissão Europeia

A Comissão Europeia propõe a adoção de duas medidas legislativas para regular a clonagem animal para fins de produção de alimento. É proposto:

(i)"Suspender temporariamente o uso da técnica dentro da União Europeia para a reprodução de todo tipo de animal destinado à produção de alimentos; o uso de clones desses animais; e a comercialização de alimento vindo dos clones." [10]

(ii)"Estabelecer a rastreabilidade da importação de sêmen e embriões para permitir que fazendeiros e indústrias estabeleçam um banco de dados dos descendentes de clones dentro da União Européia." [11]

Em uma tabela apresentada ao fim do relatório, a Comissão mostra o que será estabelecido fazendo uma divisão entre as conseqüências para o que é produzido na União Européia e o que é importado para seu território. A Comissão esclarece ainda que as medidas legislativas deverão conter uma cláusula de revisão após 5 anos e ter fundamento nas considerações e objetivos apresentados no relatório.

Não é demais explicar o proposto, pois resta obscuro em alguns pontos, não se esquecendo que, se adotada a medida, o que acontecerá com os animais clonados, seus descendentes, alimentos e sêmen e embriões de animais clonados produzidos dentro da União Europeia não será discutido por trazer quase nenhuma relevância para a exportação dos países de fora deste membro.

O que mais interessa a este estudo, na verdade, é a medida proposta quanto à importação para a União Europeia com relação aos seguintes produtos: (a) animal clonado, (b) sêmen e embrião de animal clonado, (c) alimento produzido a partir de animal clonado, (d) descendente de animal clonado, (e) sêmen e embrião de descendente de animal clonado e (f) alimento produzido a partir de descendente de animal clonado.

A importação de animais clonados (a) será proibida para fins de produção de alimento desde que aquele tenha sido criado pela tecnologia de clonagem. Por mais que não fique claro no item (i) do relatório a proibição quanto à importação e não se tenha uma medida legislativa concreta para se chegar a esta conclusão, a tabela apresentada deixa claro esta intenção. Os embriões e sêmen de animais clonados importados para a União Europeia (b) serão excluídos da proibição geral da proposta. A Comissão não prevê, portanto, uma proibição do uso dentro da União Europeia de sêmen de animal clonado no exterior para reprodução convencional. Para tanto, a proposta determina uma rastreabilidade desse material para permitir que fazendeiros e indústrias estabeleçam um banco de dados dos descendentes de clones dentro da União Européia. Já o alimento importado produzido a partir de animal clonado (c) terá a suspensão temporária de sua comercialização. Em outras palavras, da mesma forma como foi interpretado no item (a), a comercialização de alimento produzido no exterior a partir de animal clonado será suspensa em todo o mercado europeu. Quanto aos descendentes de animais clonados, seja a importação desses animais vivos (d), a importação de sêmen ou embriões desses animais (e) ou a importação de alimentos produzidos a partir desses animais (f), não existirá restrição alguma; não será adotada nenhuma medida que possa restringir a importação desses três últimos produtos. Nesse ponto o relatório em sua parte final deixa claro que nenhuma medida é proposta com relação ao alimento vindo dos descendentes dos clones.

No sentido contrário à suspensão, quer a Comissão que a clonagem permaneça possível para todos os outros propósitos que não a produção de alimentos tais como pesquisa, produção de fármacos ou a conservação de espécies ameaçadas de extinção. Essa enumeração é apenas exemplificativa, pois se extraí da inteligência das expressões "tais quais" e "todos os outros propósitos" que qualquer produto que não se enquadre nos casos dos itens (a), (b) e (c) não deve ter sua importação proibida.

De forma a analisar a aplicação dos Acordos da OMC, portanto, deve-se ter em mente que, se adotadas da forma proposta, duas serão as medidas a afetar o comércio internacional, quais sejam: (i) a suspensão da importação para o mercado europeu de animais clonados para fins de produção de alimentos e de alimentos produzidos a partir de animais clonados e (ii) o estabelecimento de uma rastreabilidade para a importação de sêmen e embriões de animais clonados que sejam utilizados para a produção de alimentos.

Faz-se necessário, portanto, passar pelo esclarecimento dos objetivos e finalidades das medidas apresentadas no relatório.


II – Objetivos e finalidades das medidas legislativas apresentadas no relatório

O relatório faz uma análise de questões como segurança alimentar, bem-estar animal, ética e percepção da sociedade e stakeholders com relação ao uso da clonagem animal para a produção de alimentos. Acontece que a Comissão deixa claro que a finalidade e o objetivo é atender às preocupações com relação a bem-estar animal e percepções da sociedade de que a clonagem animal é moralmente errada. Ressalte-se que a Comissão assume que não existem preocupações com relação à segurança alimentar de produtos obtidos a partir de clones e de seus descendentes.

É bem verdade que somente depois de uma medida legislativa concreta se poderia ter certeza destes objetivos. Antes disso, deve-se ater às palavras da Comissão:

The assessment of the situation shows that it is scientifically accepted that there are no food safety concerns about food produced from clones or their offspring. The risks for animal welfare are however a solid basis for the Commission to initiate a legislative process. To address the concern that people perceive the cloning of animals as morally wrong could be seen as another factor to be taken into account under EU law. [12]

No que tange à finalidade de atender questões relacionadas ao bem-estar animal, percebe-se que a Comissão baseia suas conclusões no estudo do EFSA supra-referido. O relatório diz, primeiramente, que a grande maioria dos embriões falha ao desenvolver-se e, para os que conseguem, uma parte significante deles morre durante o parto, num breve período, dias ou semanas seguintes, e por conseqüência de falhas cardiovasculares, nos rins e no fígado, problemas respiratórios, imunodeficiências e anormalidades musculoesqueléticas.

O relatório menciona muitos problemas ligados ao bem-estar animal tais como perda gestacional tardia, maior dificuldade do parto e cria muito grande. Entretanto, o relatório assume que estes problemas são apresentados em bovinos e ovinos, mas não em suínos. Ainda, a Comissão lembra que algumas anormalidades somente aparecem depois de certo tempo de vida. Um texto publicado na revista "Revue Scientifique et Technique" é mencionado de forma a comprovar a existência dos problemas musculoesqueléticos e insuficiência de circulação nos membros inferiores.

O relatório afirma, porém, que, apesar da clonagem causar sofrimento para alguns animais, ela pode ser benéfica quando usada para a multiplicação de animais resistentes a certas doenças ou que possam se adaptar facilmente em condições ambientas difíceis.

Ainda, a Comissão ressalta a Pesquisa Pública [13] de 2008 sobre clonagem animal, com a qual obteve a seguinte resposta: a maioria dos cidadãos tem uma percepção geral negativa com relação ao uso da técnica para a produção de alimentos. Estas mesmas pessoas demonstraram preocupações com a falta de informação sobre as conseqüências a longo-prazo e com questões éticas. Apresentaram-se, segundo o relatório, preocupações de que o uso da clonagem para a produção de alimentos não beneficiaria o consumidor, pois não iria diminuir o preço desses produtos. Entretanto, afirma a Comissão que 44% da população têm a opinião de que a clonagem pode ser justificada sob certas circunstâncias como para a melhoria da resistência dos animais contra doenças ou para a preservação de espécies raras.

Diante desses objetivos buscados e justificações apresentadas, passa-se à análise da conformidade das medidas legislativas propostas aos Acordos da OMC.


III – Conformidade da medida legislativa proposta aos Acordos da OMC

O relatório deixa claro que o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) [14], o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS) e o Acordo sobre as Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT) são relevantes para o tratamento da matéria. Nesse sentido, por ser a União Européia signatária do Acordo de Marrakesh, o qual estabelece a Organização do Mundial do Comércio, ela não pode adotar medidas não conformes àqueles textos. Exige-se, portanto, uma análise destes Acordos.

III.a) Inaplicabilidade do Acordo SPS

O Acordo SPS é aplicável a uma medida que se enquadre na definição de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias. É o que estabelece o parágrafo 2 de seu artigo primeiro:

Article 1

, 2. For the purposes of this Agreement, the definitions provided in Annex A shall apply.

O anexo A, em seu artigo primeiro, define o que compreende as medidas:

Annex A, 1. Sanitary or phytosanitary measure — Any measure applied:

a)to protect animal or plant life or health within the territory of the Member from risks arising from the entry, establishment or spread of pests, diseases, disease-carrying organisms or disease-causing organisms;

b)to protect human or animal life or health within the territory of the Member from risks arising from additives, contaminants, toxins or disease-causing organisms in foods, beverages or feedstuffs;

c)to protect human life or health within the territory of the Member from risks arising from diseases carried by animals, plants or products thereof, or from the entry, establishment or spread of pests; or

d)to prevent or limit other damage within the territory of the Member from the entry, establishment or spread of pests.

Sanitary or phytosanitary measures include all relevant laws, decrees, regulations, requirements and procedures including, inter alia, end product criteria; processes and production methods; testing, inspection, certification and approval procedures; quarantine treatments including relevant requirements associated with the transport of animals or plants, or with the materials necessary for their survival during transport; provisions on relevant statistical methods, sampling procedures and methods of risk assessment; and packaging and labelling requirements directly related to food safety.

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Fica claro que as justificativas das medidas propostas não se enquadram em nenhuma definição das alíneas a a d. Entretanto, mesmo que a técnica de clonagem animal possa ser incluída em processos e métodos de produção do parágrafo único, não cabe a aplicação porque o texto exige que a medida seja relacionada diretamente com segurança alimentar. A essa conclusão se chega porque a Comissão Europeia claramente apresenta a justificativa relacionada a preocupações sobre o bem-estar animal, diferentemente da exigência da definição do anexo. Portanto, pode-se afirmar que o Acordo SPS não seria aplicado às medidas propostas.

III.b) Inaplicabilidade do Acordo TBT

Para o propósito de aplicação do Acordo TBT, deve-se observar as disposições do seu artigo 1.2, o qual remete à inteligência do Anexo 1. O artigo primeiro desse anexo estabelece a seguinte definição de regulamento técnico, o qual determina a própria aplicação do Acordo. É o texto:

Technical regulation – Document which lays down product characteristics or their related processes and production methods, including the applicable administrative provisions, with which compliance is mandatory. It may also include or deal exclusively with terminology, symbols, packaging, marking or labeling requirements as they apply to a product, process or production method.

Levando em consideração as medidas legislativas propostas, pode ser entendido que clonagem animal, assumido pela Comissão Europeia como sendo uma técnica a qual permite a reprodução assexuada de animais, enquadra-se no conceito de processo e método de produção (PPM) no sentido do artigo 1 do Anexo 1. É fato que o termo PPM refere-se ao modo pelo qual e técnica pela qual o produto é manufaturado ou produzido.[15]

Entretanto, um problema de interpretação aparece no termo "related" empregado no texto. Existem desacordos doutrinários em saber se o PPM deve ser ou não "relacionado" ao produto final para caracterizar-se uma medida técnica e aplicar-se o Acordo. Neste caso em tela, relevante é saber se o Acordo TBT é aplicado aos PPMs não-relacionados ao produto final.

Para uma melhor compreensão do assunto, deve-se mencionar que os PPMs não relacionados ao produto são os que não mudam a qualidade do produto final. Um exemplo disso foi dado em US – Tuna. Nesse caso, o atum capturado de um modo que mata golfinhos é exatamente o mesmo atum capturado de um modo que preserva golfinhos.

Há um entendimento majoritário de que deve ser considerado que somente os PPMs relacionados ao produto incluem-se na definição de regulamento técnico para fins de aplicação do Acordo TBT. A explicação vem da negociação histórica do texto. Naquele tempo, México propôs a inclusão da palavra "related" na definição de regulamento técnico. A justificativa dada revelou a intenção de mudar o projeto de tal forma a inequivocamente excluir da definição de regulamento técnico qualquer PPM que não impacte no produto final.

Ainda assim, há quem possa pensar que "animais clonados", "sêmen e embriões de animais clonados" e "alimento vindo de animais clonados" não sejam considerados os mesmos que, respectivamente, "animais convencionalmente reproduzidos", "sêmen e embriões de animais convencionalmente reproduzidos" e "alimento vindos de animais convencionalmente reproduzidos". Ora, entende-se que a técnica de clonagem animal para o propósito de produção de alimentos se trata de um PPM não relacionado ao produto com base na ideia de que todos os produtos são os mesmos pois não é possível diferenciá-los por uma análise física ou química ordinária, ou que os produtos possuam as mesmas características como sabor, cheioro, consistência ou aspecto.

Em conclusão, já que a técnica de clonagem animal pode ser considerada como um PPM não relacionado ao produto, as medidas legislativas propostas não cairiam sob os auspícios do Acordo TBT.

III.c) Conformidade ao GATT

Apensar de os Acordos SPS e TBT não se aplicarem às supostas medidas, as disposições gerais do GATT devem ser observadas.

III.c.1) Conformidade ao artigo III do GATT

A Comissão Europeia mencionou no relatório que as medidas legislativas propostas não poderiam ser adotadas de uma maneira discriminatória de acordo com o que reza o artigo III, parágrafo 4, do GATT, o qual se lê:

The products of the territory of any contracting party imported into the territory of any other contracting party shall be accorded treatment no less favorable than that accorded to like products of national origin in respect of all laws, regulations and requirements affecting their internal sale, offering for sale, purchase, transportation, distribution or use…

Este artigo contem o princípio do Tratamento Nacional o qual estabelece que nenhum Membro poderá impor medidas que tratem produtos nacionais de modo mais favorável que produtos similares estrangeiros. Em outras palavras, esta discriminação poderá ser invocada quando uma medida interna de um Membro explicitamente discriminar produtos com base em sua origem – neste caso tem-se uma discriminação de jure. Além disso, também pode existir uma violação do princípio quando medidas nacionais adversamente afetarem a competitividade dos produtos importados mesmo que aparentemente pareçam neutras com relação à origem – neste caso tem-se uma discriminação de facto.

Com o intuito de identificar uma violação ao referido princípio pelas medidas propostas, pode-se estabelecer uma busca da discriminação de jure e da discriminação de facto. É bem verdade que a discriminação de facto requer uma avaliação de conseqüências causadas por uma medida já imposta. Como este estudo é meramente baseado em propostas abstratas, torna-se difícil estabelecer qualquer discriminação com base em fatos. Qualquer tipo de previsão de possíveis conseqüências de uma adoção da medida é prematura, mas será estabelecida para atender o propósito teórico deste texto.

Dito isso, é possível concluir que a primeira medida legislativa proposta não violaria o princípio do Tratamento Nacional do artigo III do GATT porque estabeleceria, por um lado, algumas restrições à comercialização de animais clonados para fins de produção de alimento e alimento produzido a partir de animais clonados no território da União Européia e, por outro lado, as mesmas restrições aos mesmos produtos importados para este território. Por outro lado, uma discriminação de facto pode ser antecipada, uma vez que, em conseqüência da adoção dessas medidas propostas, poderia haver uma restrição sobre os produtos derivados de animais convencionalmente reproduzidos nos casos em que os exportadores não conseguissem provar a origem daquele produto, dado que já existem inúmeros animais clonados nas fazendas, dos quais se perdeu o controle.

Com relação à segunda medida proposta, entretanto, pode-se ver uma violação prima facie ao princípio do Tratamento Nacional porque esta determina o estabelecimento da rastreabilidade somente para fazendeiros de fora da União Européia. Já que os fazendeiros da União Européia não precisariam estabelecer a rastreabilidade, conseguiriam um produto com menor custo. Assim, pode-se dizer que o estabelecimento de tal requisito seria muito custoso e, em certas situações, impossível de ser implementado, o que poderia aumentar o preço ou até eliminar a importação de sêmen e embriões, causando uma clara discriminação aos produtos importados.

III.c.2) Conformidade ao artigo XI do GATT

O Órgão de Apelação já disse que o artigo XI do GATT tem um escopo muito amplo e deve ser lido como uma proibição às restrições não-tarifárias. [16] O parágrafo primeiro do artigo traz o seguinte texto:

General Elimination of Quantitative Restrictions

1.No prohibitions or restrictions other than duties, taxes or other charges, whether made effective through quotas, import or export licenses or other measures, shall be instituted or maintained by any contracting party on the importation of any product of the territory of any other contracting party or on the exportation or sale for export of any product destined for the territory of any other contracting party.

Deve-se esclarecer que o texto distingue "proibições" de "restrições". Proibição refere-se ao banimento total de exportações e importações. Já "restrições" alcançam todas as medidas as quais deixam exportações e importações mais difíceis sem torná-las impossíveis. Ainda, é notório o fato de que o artigo XI tem incidência nas medidas visando a importação e não nas medidas internas que afetem a importação.

Dito isso, é também importante diferenciar a medida a ser adotada e o efeito que ela tem. No caso India – Quantitative restrictions [17], o Orgão de Apelação confirmou que proibições e restrições são estendidas à natureza de facto. Em tal situação, um Membro, se alegar que uma medida constitui uma discriminação de facto, tem de provar a existência do nexo causal entre a medida supostamente tendo um efeito restritivo e a diminuição do comércio.

Mas os casos Tuna Dolphin devem ser analisados. Nessas oportunidades, primeiramente, buscou-se uma violação do artigo III, a qual não se encontrou. A doutrina, citando o caso, diz que "the panel ruled that the import ban on tuna caught with dolphin-killing methods was not within the scope of Article III because ‘regulations governing the taking of dolphins incidental to the taking of tuna could not possibly affect tuna as a product’" [18] A mesma doutrina afirma que "the interpretation of like product under Article III:4 does not permit differentiation based on the was a product is made, produced or harvest." [19] Seguindo na análise do caso, os mesmos autores afirmam que "When Article III was found inapplicable because the U.S. embargo concerned fishinf techniques rather than the product itself, the embargo was judged inconsistent with Article XI." [20]

Aplicando-se este artigo às medidas legislativas propostas, deve-se entender que nenhuma proibição ou restrição nas importações por um Membro, tornada efetiva por qualquer medida, deve ser instituída ao comércio de animais clonados para fins de produção de alimento com destinação ao território da União Européia. Num primeiro momento, percebe-se que, se a medida estabelecer a suspensão da importação de animais clonados para fins de produção de alimento e alimento vindo de animal clonado, ter-se-á uma proibição ao comércio internacional tal qual estabelecida no artigo XI, em tanto que medida direcionada ao tratamento das importações. No mesmo sentido, a doutrina, novamente citando o exemplo do caso Tuna Dolphin diz que:

It is not permissible, however, to ban imported tuna because of the way it is harvest (without regard to dolphin mortality.) This ban is an impermissible import measure and not an internal regulation because the product as such is unaffected by a requirement relating to the way in which it is harvest or produced. [21]

Ora, pode-se concluir que, se for imposta uma medida que proíba as importações de animais e alimento proveniente de animal clonado, estar-se-á diante de uma medida que viola o Artigo XI, pois o animal e o alimento de origem animal restam os mesmos, baseando-se a proibição somente na maneira como o alimento é produzido.

Aplicada à segunda medida legislativa proposta, a idéia leva ao seguinte entendimento: o estabelecimento de uma rastreabilidade da importação de sêmen e embriões de animais clonados para fins de produção de alimentos para permitir fazendeiros e indústrias formarem um banco de dados na União Européia de crias de animais clonados não se trata, prima facie, de uma proibição ou restrição ao livre-comércio. O relatório não diz claramente que o sêmen e embrião de animal clonado será proibido. A Comissão estabelece tão somente uma proibição para o animal e o alimento do animal clonado. Ainda, diante da afirmação de que a rastreabilidade será exigida para o estabelecimento de um banco de dados de animais descendentes de animais clonados na União Européia, pode-se entender que a importação de sêmen e embrião de animal clonado não será proibida.

Acontece que as medidas propostas não estabelecem conseqüências para o caso de um exportador não conseguir determinar a rastreabilidade recomendada, mas é de se cogitar que a União Europeia o faça. Ora, se a rastreabilidade é de tal dificuldade de se colocar em prática de modo a inviabilizar a exportação, a medida proposta poderia impor uma restrição de facto ao comércio. Este mesmo Membro poderia impor uma proibição à importação de sêmen e embriões não rastreados provenientes de diversos países onde empresas de clonagem e indústrias já afirmaram não existir essa rastreabilidade. A partir do momento em que não se sabe mais qual é o animal clonado, não se consegue afirmar a origem daquele sêmem ou embrião.

O que se pode concluir é que, dado o espírito protecionista da medida, existe a preocupação de que a possível medida estabeleça uma proibição das importação dos produtos não rastreáveis quando ao método de reprodução, o que leva a se cogitar uma violação do artigo XI, a qual deve ser seriamente considerada.

III.c.3) Exceções do artigo XX

É bem verdade que o mesmo Acordo prevê muitas exceções que poderiam justificar a adoção das barreiras ao comércio supramencionadas. O próprio artigo XI oferece algumas, mas nenhuma poderia ser aplicada para justificar as preocupações sobre bem-estar animal. Além disso, o artigo XX do GATT expressamente menciona que "nothing in this agreement shall be constructed to prevent the adoption or enforcement by any contracting party of measures" "necessary to protect public morals", do parágrafo a, ou "necessary protect animal life or health", do parágrafo b. O texto diz:

Article XX   

General Exceptions

Subject to the requirement that such measures are not applied in a manner which would constitute a means of arbitrary or unjustifiable discrimination between countries where the same conditions prevail, or a disguised restriction on international trade, nothing in this Agreement shall be construed to prevent the adoption or enforcement by any contracting party of measures:

(a)necessary to protect public morals;

b)necessary to protect human, animal or plant life or health;

Fato é que as medidas legislativas propostas, se adotadas e ferirem os artigos do GATT, não poderão ser justificadas por que não serão conformes aos requerimentos de nenhum dos parágrafos e, tão pouco, do caput do artigo XX. O Órgão de Apelação no relatório do caso US – Gasoline explica o fundamento da idéia, a qual foi confirmada no caso Korea – Various Measures affecting beef [22]:

In order that the justifying protection of Article XX may be extended to it, the measure at issue must not only come under one or another of the particular exceptions – paragraphs (a) to (j) – listed under Article XX; it must also satisfy the requirements imposed by the opening clauses of Article XX. The analysis is, in other words, two-tiered: first, provisional justification by reason of characterization of the measure under XX (g) (in that case); second, further appraisal of the same measure under the introductory clauses of Article XX. [23]

Com base nesse processo bifásico vastamente adotado pelo Órgão de Apelação, possíveis justificativas para as medidas legislativas propostas serão analisadas perante o parágrafo a e b e, num segundo momento, perante os requerimentos do caput do artigo XX.

III.c.3.a) necessary to protect public morals

As medidas legislativas propostas são justificadas e têm o objetivo de proteger o bem-estar animal e cuidar da preocupação da população de que a clonagem animal para a produção de alimentos é moralmente errada. No entanto, o significado do termo "public morals" deve incluir as justificativas defendidas pela Comissão Européia para que o parágrafo a do artigo XX possa ser aplicado.

A interpretação do termo "public morals" pode ser trazida do caso US–Gambling [24] "given the textual similarity and similar purposes that Art. XIV lit. a GATS and Art. XX lit. a are designed to serve." [25] O termo foi interpretado pelo Painel como "standards of right and wrong conduct maintained by or on behalf of a community or nation." [26]Assim, o ponto de referência para a aplicação do parágrafo a não é um padrão de conduta universal ou da OMC, mas padrões nacionais definidos de acordo com sistemas e escalas de valores sociais, culturais, éticos e religiosos do Membro que invoca a exceção.[27]

Com o intuito de avaliar se a clonagem animal para a produção de alimentos é percebida como moralmente errada no território da União Européia, a pesquisa de opinião pública requisitada pela Direção Geral em Saúde e Consumidor e coordenada pela Direção Geral em Comunicação deve ser analisada, levando-se em conta que a conclusão obtida – de que clonagem animal é moralmente errada para 61% dos entrevistados – foi muito importante para que a Comissão pudesse justificar a proposta.

Acontece que não se pode aceitar a conclusão dessa pesquisa. Clonagem animal como sendo moralmente errada não se enquadra no significado da expressão "protection of public morals" porque não representa a realidade do padrão de certo ou errado para a coletividade na União Européia. Duas boas razões levam a isso.

Em primeiro lugar, a pesquisa de campo foi realizada em julho de 2008, pelo menos dois anos antes da elaboração da proposta legislativa. A opinião pública pode ter facilmente mudado desde então. Para comprovar esta possibilidade de mudança de opinião, o EFSA assumiu em setembro de 2010 [28] que:

Being a genetic copy of its cell donor, the clone has similar potential productive performances. It should be stressed that besides quantitative/qualitative traits of animal products, today’s selection strategies take into account other relevant parameters, including resistance to the common pathologies (e.g. mastitis, other infections and parasitic diseases), fertility, mentality and others related to the general robustness of the animal. Breeding out such complex traits using the traditional selection schemes is time consuming and might turn out to be complicated and the success is not certain. Cloning could contribute to address these issues in a more rapid manner.

No mesmo sentido, desde 2008, diversos estudos comprovaram que alimento produzido a partir de animal clonado não apresenta problemas com relação à segurança alimentar. Entretanto, a publicação deste lado positivo dos estudos sobre segurança alimentar é ainda pequena e a moral pública continua influenciada por esta questão. A verdade é que quanto mais informação sobre os benefícios e segurança do uso da técnica, mais ela será moralmente certa aceita pelo senso comum.

O segundo argumento consiste em demonstrar uma clara contradição no próprio Relatório Analítico da opinião pública. Três outras razões podem ser indicadas para isso. A primeira apóia-se no fato de que as respostas para as questões (se as pessoas concordam com o fato de que clonagem animal é moralmente errada) não foram conclusivas. O relatório diz que o uso da técnica é moralmente errado para 61% dos entrevistados, mas é importante ter em mente que, em países importantes como a Espanha e o Reino Unido, esta taxa era somente de 47%. A segunda considera os benefícios que poderiam justificar a clonagem animal para a produção de alimentos. Naturalmente, 53% dos entrevistados consideraram que solucionar o problema da fome no mundo seria uma justificativa convincente. Entretanto, somente 38% disseram que nada a justificaria. Ora, se a técnica pode ser justificada para acabar com o problema da fome no mundo, o que, com certeza, é um objetivo plausível e aceito pela grande maioria, é porque não é considerada como moralmente errada para a produção de alimentos. A terceira razão apóia-se no fato de que as pessoas entrevistadas foram induzidas a pensar em clonagem animal como algo moralmente errado pelo próprio questionário. As perguntas expressamente afirmaram o lado negativo do uso da técnica em suas frases. Temas como modificação genética, o qual não tem nada a ver em essência com a pura clonagem animal e é ainda mais discutido e eticamente problemático, foram perguntados nas questões introdutórias influenciando tendenciosamente o entrevistado desde o começo da pesquisa.

Dito isso, é possível concluir que o uso da técnica de clonagem animal para produção de alimentos não representa, em realidade, um padrão moralmente errado no território da União Européia.

Ainda mais importante é o teste de necessidade requisitado pelo parágrafo a do artigo XX (também pelo parágrafo b). O Órgão de Apelação no caso Korea – Various measures affecting beef adotou um procedimento bifurcado para resolver o problema. "First, the situation should impose a measure that is "indispensable", i.e. where the measure is the only one available. Secondly, even if there were other measures available, it involves "in every case a process of weighing and balancing a series of factors". [29]

Para começar, deve-se entender que o significado de "necessary" no texto refere-se à idéia de que a medida deveria ser indispensável aos objetivos perseguidos. Um tradicional dicionário jurídico explica que:

[t]his word must be considered in the connection in which it is used, as it is a word susceptible of various meanings. It may import absolute physical necessity or inevitability, or it may import that which is only convenient, useful, appropriate, suitable, proper, or conducive to the end sought. It is an adjective expressing degrees, and may express mere convenience or that which is indispensable or an absolute physical necessity.  [30]

Voltando à interpretação do último relatório mencionado do OA, pode-se dizer que o termo "necessity" quer dizer "não indispensável". Esta expressão significa na verdade a possibilidade de aplicação de uma medida alternativa menos restritiva ao comércio e que atinja os mesmos objetivos, tornando a hipótese "dispensável". Neste ponto, pode ser emprestada do artigo 5.6 do Acordo SPS uma explicação do conceito de medidas alternativas. A nota de rodapé explicativa diz que somente as medidas as quais são "significantly less trade restrictive to trade" e "technically and economically feasible" serão consideradas razoavelmente possíveis.

Ora, outra medida razoavelmente possível e menos restritiva ao comércio do que a suspensão da importação de animais clonados para fins de produção de alimento e da comercialização de alimento produzido a partir de animais clonados já existe e pode alcançar o mesmo objetivo de proteção do bem-estar animal e preservação da moral pública. O Regulamento do Conselho de número 834/2007 de 28 de junho de 2007 sobre produção orgânica e etiquetagem de produtos orgânicos garante, para alimentos assim etiquetados, que sua produção é realizada a partir de animais reproduzidos convencionalmente e livre do uso de qualquer método não-tradicional, como a clonagem ou transferência de embriões. Ora, essa medida mostra-se suficiente e menos restritiva para alcançar o objetivo de proteção da moral pública. Isso porque com tal etiquetagem, consumidores na União Européia, se realmente preocupados com o uso de clonagem animal como sendo moralmente errado, poderiam comprar alimento somente produzidos a partir de animais reproduzidos convencionalmente. Esta medida já existente e é evidentemente menos restritiva do que a proposta.

No que tange ao estabelecimento da rastreabilidade de sêmen e embriões importados de animais para a produção de alimento para a União Européia, não se pode ver nenhuma medida alternativa que alcance os mesmos objetivos e seja menos restritiva. Entretanto, no caso Korea – Various Measures affecting Beef, foi estabelecido que uma medida, mesmo que exista outra menos restritiva, deve ser analisada por um balancing process o qual leva em conta, aplicado ao caso, (a) a importância do padrão de conduta envolvida, (b) a extensão à qual a medida contribui para a proteção da moral pública e (c) o impacto comercial da medida.

Com relação ao primeiro elemento (a), o padrão de conduta tem uma importância muito baixa porque o uso da clonagem animal não pode nem ser considerado como moralmente errado ou, pelo menos, a avaliação da moralidade da conduta é controversa tendo em vista a interpretação acima do estudo "European attitudes towards animal cloning"

O segundo elemento (b) exige a avaliação do nível de proteção da moral pública que a medida proposta proporcionaria. Quanto maior a contribuição, mais facilmente a medida poderia ser considerada necessária. Pode ser dito prima facie que a suspensão da importação de animais clonados para fins de produção de alimento e alimento produzido a partir de animal clonado não irá proteger a moral pública europeia por duas boas razões. Primeiramente, a suspensão na União Europeia protegeria a moral pública europeia, mas esta não seria protegida pela suspensão da importação porque o uso da técnica se daria fora daquele território. Tal suspensão seria, assim, uma imposição extraterritorial dos padrões de conduta moral. Em segundo lugar, e o mais importante, a suspensão não protegeria a moral pública porque o uso da técnica de clonagem animal permaneceria possível ainda para outros propósitos que não a produção de alimento como, por exemplo, em caríssimos cavalos de corrida ou touros de briga, os quais estão supostos às mesmas preocupações sobre bem-estar animal. Além disso, a maioria dos cidadãos europeus concorda que o uso da técnica é justificável para propósitos relacionados à produção de alimentos.

Quanto ao estabelecimento da rastreabilidade de sêmen e embriões importados, pode-se afirmar que esta medida não protegeria a moral pública pelos mesmos dois motivos acima explicados.

Finalmente, o terceiro elemento (c) do balancing process requer uma avaliação do impacto comercial da medida. Neste caso, a suspensão da importação de alimento produzido a partir de animal clonado não representaria uma restrição significante. Hoje em dia, a técnica de clonagem animal é ainda muito cara e fazendeiros dificilmente a utilizam para a reprodução de gado de corte. Mas para a produção de leite já há indícios de sua utilização. Ainda, o maior impacto no comércio de alimentos pode ocorrer no futuro quando e se a técnica passar a ser mais barata. A importação de animais clonados para fins de produção de alimento seria também afetada porque existe um importante mercado de animais reprodutores reputados pelas excelentes características da espécie.

Neste ponto, o estabelecimento da rastreabilidade das importações pode ainda ter um grande impacto no comércio de sêmen e embriões por dois motivos: primeiro, o estabelecimento da rastreabilidade seria muito caro e poderia ter uma conseqüência no aumento do preço do alimento de origem animal; e, em segundo lugar, o exportador que não conseguisse estabelecê-la poderia ser impedido de exportar para a União Europeia. A Comissão explica no relatório que pelo menos 1.200.000 doses de sêmen bovino foram importados dos Estados Unidos e Canadá somente em 2009.

Depois de realizado o balancing process recomendado pelo OA, pode-se concluir que as medidas legislativas propostas não são necessárias à proteção da moral pública do parágrafo a do artigo XX.

III.c.3.b) necessary to protect animal life or health

A Comissão Europeia claramente diz no relatório que as medidas legislativas propostas têm o principal objetivo de tratar das preocupações relacionadas ao bem-estar animal. Neste sentido, pode-se aplicar o artigo XX, parágrafo b, como uma exceção à proibição geral da restrição ao comércio internacional.

É verdade que o Organismo de Solução de Controvérsias da OMC já interpretou diversas vezes o artigo XX do GATT. Mesmo antes de 1995, no que concerne à proteção de animais, no caso US – Tuna, por exemplo, o Painel e as partes concordaram que a proteção da saúde e da vida dos golfinhos era uma política que poderia cair sob os auspícios do artigo XX, b [31], mas para isso o parágrafo somente seria aplicável se a medida visasse à proteção da vida e da saúde animal.

Para que se possa aplicar este parágrafo ao caso em tela, a expressão bem-estar animal deve significar o mesmo, ou pelo menos, estar incluída em uma das expressões "life" ou "health". Ora, a expressão "animal health" claramente inclui o significado de bem-estar animal. Para começar, o dicionário Shorter Oxford English interpreta "health" como "condition of body in respect of its vigour; welfare". Além disso, a justificativa dada pela Comissão Europeia no relatório explicitamente mostra preocupações com relação à saúde animal. Assim sendo, não existe razão para não aplicar o parágrafo b às medidas legislativas propostas.

Acontece que, mesmo se bem-estar animal pode estar incluído no significado de saúde animal, não significa que as medidas propostas possam ser justificadas pelo parágrafo b. No mesmo sentido, para alcançar a conclusão sobre a necessidade de aplicação das medidas, uma análise da possibilidade de uma medida alternativa menos restritiva ao comércio deve ser feita, conclusão à qual se remete ao item III.c.3.a.

Já na avaliação do balancing process, no que tange ao seu primeiro elemento (a), deve-se novamente dizer que o padrão de conduta tem uma pequena importância porque o uso da técnica de clonagem animal ainda não está confirmado como causador de danos ao bem-estar ou saúde animal. O que existe por enquanto é alguma evidência de que a técnica causa problemas de saúde em alguns tipos de animais. Além disso, a Comissão baseou seu relatório somente na opinião científica do Comitê Científico em "Food Safety, Animal Health and Welfare and Environmental Impact of Animals derived from Cloning by Somatic Cell Nucleus Transfer (SCNT) and their Offspring and Products Obtained from those Animals" do EFSA, do qual algumas dúvidas podem ser levantadas.

Seria conveniente ter em mente o estudo [32] muito similar do FDA americano. A Comissão Europeia admitiu que os Estados Unidos são o país mais avançado na técnica de clonagem animal. Assim, as conclusões de uma de suas agências seriam muito apropriadas a título de comparação. O propósito deste trabalho não é estabelecer nenhum tipo de prova científica, mas somente demonstrar que existe a possibilidade de que a Opinião Científica do EFSA possa ser confrontada. Primeiramente, embora o estudo americano tenha concluído que poderia existir um pequeno aumento do risco de incidência de complicações relacionadas à gestação tardia de animais clonados, o problema também ocorre em outros tipos de técnicas de reprodução não proibidas e, ainda, não ocorre em suínos ou ovinos. Mais duas conclusões importantes: não existe aumento do risco de efeitos adversos na capacidade reprodutiva em bovinos e suínos clonados e também não existem dados suficientes para confirmar efeitos adversos de envelhecimento precoce porque a técnica da clonagem vem sendo realizada há pouco tempo.

Além de tudo, o próprio EFSA afirmou que a clonagem animal pode aumentar o nível de bem-estar animal. É a passagem:

Whilst the cloning of the fastest growing and high yielding animals may lead to higher proportion of animals suffering from such health and welfare problems, the cloning of conventionally bred animals, which are resistant to certain diseases or which can easily adapt to difficult environmental conditions, may have some possible benefits from a welfare point of view.

Neste sentido, fica claro que, se aumentada a proporção dos animais mais resistentes, o bem-estar em média conseqüentemente será maior.

O segundo elemento (b) determina a avaliação da proteção do bem-estar animal que a medida poderia proporcionar. Mais uma vez pode ser dito que a suspensão da importação de animais clonados para fins de produção de alimentos, alimentos produzidos a partir de animais clonados e o estabelecimento de uma rastreabilidade de sêmen e embriões importados não busca o objetivo de proteger o bem-estar animal com base na mesma boa razão supramencionada. A suspensão não alcançaria este resultado buscado porque o uso da técnica ainda permaneceria possível para todos os outros propósitos que não produção de alimentos. Os mesmos exemplos do uso da técnica para reprodução de valiosos cavalos de corrida ainda podem ser citados.

Finalmente, no que tange ao terceiro elemento (c) do balancing process, o mesmo impacto ao comércio internacional deve ser mencionado, remetendo-se ao que fora dito no item III.c.3.a.

Mais uma vez, depois de realizado o balancing process recomendado pelo OA, pode-se concluir que as medidas legislativas propostas não são necessárias à proteção do bem-estar animal do parágrafo b do artigo XX.

III.c.3.c) O caput do artigo XX

Seguindo o procedimento bifásico de aplicação do artigo XX, chega-se à segunda parte: os requisitos do caput. O OA no caso US – Shrimp explica que:

[If] the measure is not held provisionally justified under Article XX(g), it cannot be ultimately justified under the chapeau of Article XX. On the other hand, it does not follow from the fact that a measure falls within the terms of Article XX(g) that that measure also will necessarily comply with the requirements of the chapeau" [33]

Ainda, por mais que as medidas propostas não estejam conformes a nenhum dos parágrafos discutidos, não seria necessário ir além, pois o OA deixa claro que a medida deve enquadrar-se cumulativamente tanto no parágrafo quanto no caput.

Entretanto, ad argumentandum tantum, a conformidade das medidas propostas será analisada segundo os requerimentos do caput do artigo XX. Para isso, mais uma vez recorre-se às explicações do OA no caso US – Shrimp:

The precise language of the chapeau requires that a measure not be applied in a manner which would constitute a means of "arbitrary or unjustifiable discrimination between countries where the same conditions prevail" or a "disguised restriction on international trade." There are three standards contained in the chapeau: first,arbitrary discrimination between countries where the same conditions prevail; second,unjustifiable discrimination between countries where the same conditions prevail; and third,a disguised restriction on international trade.

No que toca ao primeiro requerimento do artigo XX, pode ser dito que as medidas propostas não podem constituir uma discriminação arbitrária ou injustificada entre países onde as mesmas condições prevalecem. Dessa forma, não se pode ver nenhuma discriminação entre Membros em relação à suspensão da importação de animais clonados para fins de produção de alimentos e alimentos produzidos a partir de animais clonados pelas mesmas razões apresentadas no item III.c.1.

Não obstante, as medidas legislativas propostas certamente encaixam-se no significado da expressão restrição disfarçada ao comércio internacional. No caso EC – Asbestos, o OA claramente examinou de que modo uma medida, a qual formalmente encontra os requisitos dos parágrafos a a j do artigo XX, é desenhada com o objetivo protecionista e restritivo ao comércio.[34] Observando a complexidade da tarefa, o mesmo OA assumiu que "it may well be difficult for a Panel or an Appellate Body to ascertain whether such aim or motive exists, but it may obtain pointers by considering the design, architecture and structure of the measure in question." [35]

Pela última vez deve ser lembrado que não se tem uma medida concreta, da qual é possível uma avaliação do desenho, arquitetura e estrutura com o intuito de se concluir se ela trata-se de uma restrição disfarçada ao comércio internacional. Apesar de tudo, dois importantes fatos podem ser especulados. No caso da primeira medida proposta, poderia haver uma proibição total da importação de todos os animais para fins de produção de alimento e, ainda pior, de todos os alimentos produzidos a partir de animais clonados se os exportadores não puderem provar a forma de reprodução utilizada. Já que a medida determinaria a suspensão de importação de alimentos vindos de animais clonados, certamente, é natural esperar que a medida também estabeleça uma obrigação de provar quais animais ou alimentos não sejam resultado do uso da técnica de clonagem. A maior preocupação que se tem é relacionada aos produtos de países que já assumiram ser impossível dizer quais animais de seu rebanho são clonados. A Comissão Europeia sabe disso e, talvez, esteja preparando essas medidas com objetivos disfarçados quais sejam a restrição ao comércio e a proteção dos fazendeiros locais. A mesma preocupação poderia explicar uma intenção disfarçada de restringir a importação de sêmen e embriões caso a rastreabilidade não possa ser estabelecida. Um segundo fato liga-se ao objetivo das medidas que é a proteção do bem-estar animal. Contrariamente, a Comissão Europeia somente quer a suspensão da importação relacionada a animais para fins de produção de alimentos. Ora, se realmente estivesse preocupada com o bem-estar animal, ela teria proposto medidas abrangendo todos os animais reproduzidos pela técnica de clonagem.

Mesmo tratando-se somente de especulações, pode-se perceber que as medidas são propostas com o real propósito de criar uma restrição disfarçada ao comércio, o que obviamente exclui a aplicação do artigo XX como uma exceção às obrigações do GATT.

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Sobre o autor
Bruno Guandalini

Advogado. Doutorando em Direito na Université de Nice - Sophia Antipolis. LLM em International Business and Economic Law (Certificate in international arbitration and dispute resolution) pela Georgetown University, nos Estados Unidos. Mestre em Direito das Relações Econômicas Internacionais, Pós-graduado em Direito Internacional Privado e Pós-graduado em Direito Empresarial, todos pela Université de Paris II (Panthéon-Assas), na França. Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Aperfeiçoou-se em Common Law tendo realizado os cursos de Introduction to Corporate Law and Governance e de Commercial Law pela London School of Economics and Political Science - LSE em Londres, no Reino Unido.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUANDALINI, Bruno. Tendência legislativa europeia, clonagem animal para produção de alimentos e a conformidade ao Direito do Comércio Internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2859, 30 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19011. Acesso em: 23 dez. 2024.

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