"Aí está, senhores, como se prefigura o que ocorreria, no país donde trouxemos a nossa Constituição, nos Estados Unidos, se um Presidente, ensandecendo no seu cargo, se descocasse ao extremo de fazer leis. Uma gargalhada ultra-homérica abalaria o continente, e o mentecapto seria obrigado a internar-se num hospício de alienados. Que é, pois, o que nos resta, aqui, de um tal sistema, copiado traço a traço por nós, daquela República, se os nossos Presidentes carimbam as suas loucuras com o nome de leis, e o Congresso Nacional, em vez de lhes mandar lavrar os passaportes para um hospício de orates, se associa ao despropósito do trasvairado, concordando no delírio, que devia reprimir?" (Ruy Barbosa, Ruínas de um Governo, Rio, 1931, pp.92-96)
É verdade que a atribuição do poder legiferante ao Chefe do Poder Executivo consta hoje do texto constitucional (art. 62), embora apenas em caso de relevância e urgência, o que tornaria a medida provisória o instrumento formalizador de uma competência atribuída excepcionalmente ao Presidente da República, haja vista que na realidade, legislar ainda é competência do Congresso Nacional - além, é claro, da competência inspectiva, ou fiscalizadora. Não é isso, porém, o que tem ocorrido o Presidente da República tem utilizado esse instrumento indiscriminadamente, com o beneplácito do órgão legislativo, até mesmo para vulnerar princípios constitucionais imutáveis, as chamadas cláusulas pétreas, consagradas nos quatro incisos do §4º. do art. 60 da Constituição Federal, de maneira que essa atuação já se vem caracterizando como a de uma constituinte contínua, porque o Presidente e o Congresso não têm sido constrangidos à obediência de qualquer limite jurídico, a quando de sua atuação como órgãos legiferantes, exatamente pela inefetividade das limitações constitucionalmente impostas.
Com efeito, de nada valerão uma Constituição perfeita e leis altamente democráticas, se não pudermos exigir do Estado a prestação jurisdicional, o reconhecimento, a garantia e a efetivação de nossos direitos.
A Constituição, entre nós, já de há muito perdeu sua tradicional posição na hierarquia jurídica e em relação à ordem política, em decorrência da qual suas normas se imporiam a todos, governantes e governados, e deveriam ser obedecidas pelo Congresso Nacional, pelo Presidente da República e pelo Poder Judiciário, que independente e cercado de todas as garantias constitucionais, poderia assegurar a prevalência do Estado de Direito, ao invés do arbítrio e da prepotência.
Diversos tem sido os provimentos normativos recentes que atingem as cláusulas pétreas, os direitos adquiridos e o equilíbrio entre os Poderes, v.g., as Emendas Constitucionais nos. 19 e 20 e as Medidas Provisórias nos. 1798 e 1815, sendo que esta última chegou ao absurdo de tornar sem efeito norma da Emenda Constitucional no. 19.
E o Judiciário, com o enorme acúmulo de processos resultantes desses atentados contra a letra e o espírito da Constituição, com as ameaças que vem sofrendo, como a da criação de um controle externo, naturalmente com veladas intenções, ou do efeito vinculante, idem, ou ainda a raivosa proposta de extinção pura e simples de toda uma justiça e a absurda criação da CPI do Judiciário, se apresenta cada vez mais enfraquecido e incapaz de desempenhar sua mais relevante missão constitucional, exatamente a de intérprete e guardião da Constituição, pelo controle da regularidade das leis e dos atos normativos do Poder Público em face do Estatuto Supremo.
A divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece. Esse enunciado, mais doutrinário do que propriamente normativo, constante do art. 9º. de nossa Constituição do Império, buscava suas razões na Teoria da Separação dos Poderes, definitivamente sistematizada por Montesquieu, no Espírito das Leis.
Assim, a divisão separação ou distinção- e a harmonia dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no Império, tivemos ainda o Poder Moderador- assegurariam o respeito aos direitos dos cidadãos, bem como a efetivação das garantias constitucionais, exatamente porque cada um desses Poderes teria, ainda segundo Montesquieu, a par de sua faculdade de estatuir, desempenhando cada qual sua missão específica, também a faculdade de impedir, ou seja, limitar a ação dos outros poderes, o que hoje se denomina sistema de freios e contrapesos.
Muitos autores contestam essa Teoria, afirmando que não existem no Estado três poderes e sim apenas o seu poder de dominação, que se manifesta sob múltiplas formas, passando seu exercício por diversas fases: iniciativa, deliberação, decisão, execução, porém tendo sempre em vista um objetivo, o de assegurar a supremacia da vontade dominante, sempre una e indivisível.
A verdade, porém, é que essa teoria surgiu e se tornou mais do que uma teoria, uma evidência, tão bem aceita na doutrina e nos meios políticos, exatamente porque representou antes de tudo uma arma contra a Monarquia absoluta, haja vista que para Montesquieu, a concentração dos poderes nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão seria a própria definição da Tirania.
A exemplo de nossa primeira Constituição, todas as demais, 91, 34, 46, 67 e 88, consagraram também o princípio da separação dos Poderes do Estado, excetuada apenas a Carta de 37, na qual o Presidente da República era a autoridade suprema do Estado (art. 73). Também sob o Regime de 64, os Atos Institucionais conferiam plenos poderes ao Presidente da República, anulando da mesma forma a separação dos Poderes constante do texto constitucional.
Hoje, estamos vivendo uma espécie de hiato constitucional. Ao contrário de 64, quando o Ato Institucional expressamente declarou a abrupta interrupção da normalidade constitucional, temos o Presidente da República, que por duas vezes prestou o compromisso do art. 78 da Constituição Federal, de manter, defender e cumprir a Constituição e observar as leis, exorbitando de suas atribuições, através da impressionante quantidade de medidas provisórias editadas, algumas delas flagrantemente inconstitucionais, sucessivamente reeditadas, com a conivência do Congresso Nacional, enquanto que este, pela criação de uma CPI, com o apoio do Presidente da República e do próprio Presidente do Supremo Tribunal Federal, pretende "descocar-se ao extremo de examinar as razões de uma decisão judicial".
Nos Estados Unidos, o País donde trouxemos a nossa Constituição, essa pretensão causaria também uma gargalhada, como no texto de Ruy, mas para os defensores do Estado de Direito essa intromissão indevida é apenas motivo para lamentar.