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O STF e a união estável homoafetiva.

Resposta aos críticos, primeiras impressões, agradecimentos e a consagração da homoafetividade no Direito das Famílias

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3. Agradecimentos e Conclusão.

Gostaria de finalizar com alguns agradecimentos.

Agradeço aos Ministros do Supremo Tribunal Federal pelos corajosos votos que, superando a letra fria da Constituição, realizaram a interpretação sistemático-teleológica que compatibilizou as normas constitucionais relativas à união estável com aquelas atinentes à isonomia, dignidade da pessoa humana, liberdade e segurança jurídica. Certamente não era a exegese mais fácil. Mais fácil era fazer como Lenio Streck, que se apegou à mera literalidade normativa para ver uma proibição/restrição que não existe [11]. Mais fácil era esse legalismo cego avalorativo de apego à mera literalidade da Constituição para reconhecer como juridicamente possível apenas aquilo que está escrito. Mas não foi esta a postura do STF, que em julgado corajoso, fez aquilo que o doutrinador britânico Neil MacCormick diz ser a função do juiz: o juiz deve buscar a justiça, mas uma justiça de acordo com a lei [12], o que aceitamos no sentido de que a concepção de justiça do intérprete não pode afrontar os enunciados normativos vigentes na legislação – e foi isso que fez nossa Suprema Corte neste caso. Fez justiça dentro daquilo que permitem as normas constitucionais em uma adequada interpretação sistemático-teleológica, o que é algo que sempre merece aplausos, pois quem milita nos fóruns e tribunais em geral sabe que muitos juízes se escondem na letra fria da lei quando se deparam com temas polêmicos, escondendo-se em silogismos cegos avalorativos da lógica "premissa maior-premissa menor-conclusão" que não se atenta para a teleologia, para os valores que inspiram as normas/os enunciados normativos em análise.

Ratifico, ainda, as seguintes palavras do jornalista Cláudio Brito [13], em homenagem aos Ministros Ayres Britto e Celso de Mello, bem como aos demais ministros do STF:

Carlos Ayres Britto, o relator, e Celso de Mello, um dos últimos a votar, arrasaram, deram show de erudição e discernimento

. Britto foi o condutor de todo o Plenário e trouxe os argumentos mais fortes em favor da tese que deu ao tema uma interpretação conforme a Constituição, ainda que, na Carta e no Código Civil, esteja, com todas as letras, apenas a união estável entre homem e mulher como equiparável à família. Ficou muito claro o rumo desenhado por Ayres Britto, quando enfrentou com os princípios fundamentais de nosso maior diploma legal a aparente dificuldade em vencer o texto constitucional.

Liberdade, direito à não discriminação, igualdade, dignidade e outros valores foram trazidos ao debate e o caminho a percorrer escancarou-se. Os demais reforçaram o esboço. Completou-se a obra com a clareza e o brilho a que estão acostumados os que acompanham o trabalho de Celso de Mello.

As relações homoafetivas são marcadas pelo amor, afeto e solidariedade’, disse o ministro mais antigo de nossa Corte Suprema. Os fundamentos explícitos ou implícitos na Constituição, que buscou para alinhavar o voto cristalino que produziu, mais que todos os outros, deram ao julgamento o conteúdo de compreensão da realidade que ainda pudesse faltar.

[...]

O afeto está reconhecido como a base de tudo. O afeto como sinônimo ou como expressão do amor.

E a solidariedade completa maravilhosamente o tripé em que se assentam relações que transcendem a sexualidade. Afeto é o carinho que temos por quem amamos, é uma disposição de alma, um sentimento.

Amizade e simpatia estão aí, no mesmo rol. Possibilidades de relação humana construtiva, digna, merecedora de acolhimento pelo Direito.

Ninguém pode ser privado de seus direitos ou sofrer qualquer restrição de ordem jurídica devido à sua orientação sexual. Todos têm direito de receber a mesma proteção das leis e do sistema jurídico. Não se pode admitir a reprise do acontecido com um soldado, veterano do Vietnã, que, depois de ser condecorado por atos de heroísmo, foi expulso do exército americano por viver em companhia de outro rapaz. Luís Barroso, advogado que defendeu na tribuna a juridicidade das relações homoafetivas, recordou a frase dramática daquele moço guerreiro: "Deram-me uma medalha por matar dois homens. Expulsaram-me do exército por amar outro homem".

Recolho de outro ministro, Marco Aurélio, síntese razoável do julgamento histórico: ‘O Brasil está vencendo a luta desumana contra o preconceito. O Estado existe para auxiliar os indivíduos na realização dos respectivos projetos de vida, não impedir. É obrigação constitucional do Estado reconhecer o direito familiar e a finalidade jurídica das uniões homoafetivas’.

(grifos nossos)

Agradeço, também, a dois juristas em especial: Maria Berenice Dias e Luís Roberto Barroso.

Primeiramente, a Maria Berenice Dias. Ela foi a primeira jurista renomada a defender doutrinária e jurisprudencialmente o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas, tanto em sua obra "União Homossexual. O Preconceito & a Justiça" (depois renomeada para "União Homoafetiva. O Preconceito & a Justiça"), na qual cunhou o termo homoafetividade para destacar o caráter afetivo-conjugal das uniões amorosas entre pessoas do mesmo sexo, de sorte a superar o preconceito segundo o qual uniões homossexuais seriam pautadas unicamente em desejos de luxúria sexual e nunca no amor/afeto genuíno, quanto em seus acórdãos na qualidade de Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Foi extremamente criticada por isso por pessoas reacionárias e preconceituosas, que diziam que uma desembargadora não teria que se "meter com isso", em frase cujo preconceito se destaca por si. Mas não se deixou abater. Fez história ao consagrar o termo homoafetividade no vocabulário jurídico (notório na doutrina e na jurisprudência) e, agora, nos dicionários (como o famoso Dicionário Aurélio, a partir de 2011), bem como por incentivar juristas do país inteiro a se debruçarem sobre o tema e defenderem o status jurídico-familiar da união homoafetiva (situação na qual me incluo, pois embora fosse defender o tema de uma forma ou de outra, a obra de Berenice é uma ode contra o preconceito e é uma fonte indispensável para quem se debruça sobre o tema dos direitos de casais homoafetivos – sendo que me é motivo de muito orgulho ter meu livro prefaciado por Berenice e por ela ter dito, no prefácio, que meu livro é "um verdadeiro coroamento de toda uma trajetória de avanços e conquistas", em referência às teses e julgados vanguardistas nele constantes, bem como pela menção de que, até aquele momento, "não havia surgido nenhum trabalho que abordasse o tema com todos os seus desdobramentos, de modo a evidenciar o surgimento de um novo ramo do Direito: Direito homoafetivo" e pela afirmação de que "A análise do tema sob o âmbito constitucional marca o diferencial desta obra. O estudo dos princípios fundamentais e a perfeita identificação dos meios de colmatar as lacunas deixadas pelo legislador dão um norte seguro a evidenciar que sequer são necessárias mudanças legais para inserir as uniões homoafetivas no âmbito de proteção do direito das famílias e direito sucessório" [14]. Berenice fez história ao ter seu neologismo homoafetividade acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, citado diversas vezes por quase todos os ministros (não me recordo se o Ministro Gilmar Mendes a ele fez referência verbal, mas se não tiver, salvo engano terá sido o único). Enfim, se chegamos aonde chegamos, devemos muito a Berenice, que inclusive se aposentou e saiu do conforto da estabilidade de desembargadora para advogar em prol da causa, com escritório especializado em Direito Homoafetivo, de sorte a ajudar a inundar o Judiciário com ações que visem o reconhecimento dos direitos dos casais homoafetivos e da comunidade LGBT em geral. Devemos muito a Berenice porque foi sua luta que plantou as sementes que possibilitaram chegarmos ao STF com uma chance real de vitória e termos uma decisão unânime do STF sobre o tema. Sem Berenice, a luta certamente teria sido muito mais árdua.

Agradeço, ainda, ao Eminente Professor Luís Roberto Barroso. Constitucionalista de primeira grandeza, assumiu a causa como sua ao elaborar seu fenomenal parecer "Diferentes mas Iguais. O Reconhecimento Jurídico das Uniões Homoafetivas no Brasil", no qual aplicou sua hermenêutica constitucional inclusiva e vanguardista ao tema para reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar e como união estável constitucionalmente protegida pela aplicação direta dos princípios constitucionais ou, alternativamente, por analogia, com base nos princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica. Foi o citado parecer que inspirou a petição inicial da ADPF n.º 132 e da ADIn n.º 4277 – sendo que me causou surpresa ele não constar do processo, o que me fez elaborar petição sintetizando seus argumentos e juntando-o, juntamente com parecer-representação análogo assinado por diversos Procuradores da República, entre os quais o ilustre Daniel Sarmento [15]. Ademais, o Professor Barroso participou do julgamento, realizando sustentação oral em nome do Governador do Rio de Janeiro, interrompendo seus estudos nos EUA para participar deste histórico julgamento. Com isso, não há como deixar de comparar a atuação do Professor Barroso com a atuação do Eminente Constitucionalista Lawrence Tribe, renomado constitucionalista estadunidense que emprestou seu prestígio à luta judicial em prol da inconstitucionalidade da criminalização da sexualidade homoafetiva (a chamada "sodomia homossexual") e da inconstitucionalidade da discriminação arbitrária, pautada em meros moralismos majoritários, a LGBTs em geral. Tribe, que é heterossexual, realizou sustentação oral perante a Suprema Corte dos EUA no caso Bowers vs. Hardwick e apresentou memorial de amicus curiae em outros dois julgados sobre direitos de LGBTs – Romer vs. Evans e Lawrence vs. Texas (no primeiro, com derrota; nos outros dois, com vitória [16]). Enfim, a comparação se dá porque nos EUA Tribe é um jurista heterossexual reconhecido como um renomado constitucionalista e defensor dos direitos humanos que emprestou seu prestígio em prol da luta contra uma injustiça [17] – e é assim que vejo a atuação do Professor Luís Roberto Barroso neste caso. Ele não tinha obrigação nenhuma de defender a união homoafetiva em sustentação oral perante o STF, mesmo com seu parecer favorável, mas o fez. Evidentemente o mesmo deve ser dito quanto a Maria Berenice Dias e a Oscar Vilhena Vieira, este último também um renomado professor de direitos humanos, que também realizaram sustentações orais no processo. Todos são heterossexuais que abraçaram a causa da homoafetividade na luta contra a injustiça homofóbico-heterossexista oriunda da negativa do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas. É claro que é importante que os próprios membros da minoria estigmatizada se defendam diretamente (o que, aliás, sempre me impeliu a participar deste julgamento). Mas a existência de pessoas que lutam com louvor por causas que não são suas é motivo de celebração, pois nos traz esperança de que o mundo tem salvação.

Agradeço também ao Dr. Fernando Quaresma de Azevedo, amigo e aliado a quem muito agradeço pela confiança ensejadora de minha participação neste julgamento histórico representando a Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo (AIESSP), por ele presidida. Aliás, Fernando foi o advogado que elaborou e assinou a ADIN n.º 3300, juntamente com Felipe Camargo de Araujo ecom Carolina Terrão Bolla (então estagiários), na qual o Ministro Celso de Mello, apesar de extinguir a ação por questões formais, consagrou o debate por afirmar que concordava com o mérito da pretensão de reconhecimento da união estável homoafetiva, por analogia. Nesse sentido, também o Ministro Celso de Mello merece um especial agradecimento, pois ele não era obrigado a tecer tal manifestação de mérito, por ter entendido que a ação deveria ser extinta. Contudo, seu espírito humanista e contrário a injustiças certamente o impeliu a tecer tais considerações de mérito, que muito ajudaram na evolução da compreensão doutrinário-jurisprudencial destes últimos anos sobre o tema (sua decisão na ADIN 3300 foi proferida em 2004).

Como disse no início, a cidadania venceu importante batalha contra o totalitarismo daqueles que não aceitam que uma pessoa seja feliz de acordo com seu próprio modo de ser. Outras batalhas em defesa das minorias sexuais certamente virão, mas essa vitória é paradigmática e histórica. É com muito orgulho que posso dizer que participei deste histórico julgamento, mediante sustentação oral representando a Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo (AIESSP).


BIBLIOGRAFIA (BÁSICA)

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O artigo foi recentemente atualizado, constando link para seu inteiro teor no seguinte endereço eletrônico: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI132374,61044-Diferentes++mas+iguais+o+reconhecimento+juridico+das+relacoes (acesso em 09/05/11).

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DIAS, Maria Berenice (org.). DIVERSIDADE SEXUAL E DIREITO HOMOAFETIVO, 1ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. A CONSTITUCIONALIDADE DO CASAMENTO HOMOSSEXUAL, 1ª Edição, São Paulo: Editora LTr, 2008.

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MEDEIROS, Jorge Luiz Ribeiro de. Interpretar a Constituição não é ativismo judicial (ou ‘ADPF 132 e ADPF 178 buscam uma interpretação adequada de direitos já existentes na Constituição’), in http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=554 (acesso em 12/10/2009).

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RIOS, Roger Raupp. A HOMOSSEXUALIDADE NO DIREITO, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001.

RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: A Homossexualidade no Direito Brasileiro e Norte-Americano. 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. A Luta Judicial das Minorias Sexuais pela Cidadania Material, Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (Área de Concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos), do Centro de Pós-Graduação, da Instituição Toledo de Ensino, para a obtenção do título de Mestre em Direito, sob orientação da Profª. Eliana Franco Neme (dissertação esta aprovada com nota máxima).

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. MANUAL DA HOMOAFETIVIDADE. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 1ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2008.

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Laicidade Estatal tomada a sério. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/11463. Acesso em: 07 jul. 2008 (artigo também publicado pelo site www.clubjus.com.br, no seguinte link: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19500).

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Tomemos a sério o princípio do Estado laico. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1830, 5 jul. 2008. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/11457. Acesso em: 07 jul. 2008 (artigo também publicado pelo site www.clubjus.com.br, em 02/07/2008, no seguinte link: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.19499).

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. União Estável Homoafetiva e a Constitucionalidade de seu Reconhecimento Judicial. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, Fev-Mar 2010, Ano XI, n.º 14, pp. 66-88.

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VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF e a união estável homoafetiva.: Resposta aos críticos, primeiras impressões, agradecimentos e a consagração da homoafetividade no Direito das Famílias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2870, 11 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19086. Acesso em: 25 abr. 2024.

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