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Da inexistência de óbices à presença de normas processuais nas Constituições contemporâneas

15/05/2011 às 10:16
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A questão do primado da Constituição, como norma fundamental do Estado a garantir os direitos e liberdades dos indivíduos, foi desenvolvida ao longo do século XIX, com a consolidação dos regimes liberais nos Estados Unidos e na Europa pós-revolucionários.

De um lado, o constitucionalismo foi utilizado para contrapor os poderes constituídos no Estado ao contratualismo e à soberania popular, ideias-chave da Revolução Francesa. De outro, utilizou-se a Constituição contra os poderes do monarca, limitando-os. Dessa forma, a Constituição do Estado evitaria os extremos do poder do monarca (reduzido à categoria de órgão do Estado, portanto, órgão regido constitucionalmente) e da soberania popular (o povo passa a ser visto como um dos elementos do Estado).

Embora liberais, as Constituições não serão, ainda, democráticas. E, mais importante, a Constituição não é do rei ou do povo, a Constituição é do Estado, assim como o direito é direito positivo, posto pelo Estado. O conceito clássico de Constituição da segunda metade do século XIX é o de Georg Jellinek [01], que entende a Constituição como os princípios jurídicos que definem os órgãos supremos do Estado, sua criação, suas relações mútuas, determinam o âmbito de sua atuação e a situação de cada um deles em relação ao poder do Estado. A Constituição é estatal, pois só é possível com o Estado. O Estado é pressuposto pela Constituição, cuja função é regular os órgãos estatais, seu funcionamento e esfera de atuação, o que irá, conseqüentemente, delimitar a esfera da liberdade individual dos cidadãos. A Constituição é também um instrumento de governo, pois legitima procedimentalmente o poder, limitando-o.

Nesse sentido é cada vez mais presente a feitura de constituições analíticas, de conteúdo extenso a albergar matérias outras que não apenas as referentes à organização básica do Estado, como é exemplo a nossa Constituição Federal de 1988. Esse tipo de lei fundamental engloba normas não somente materialmente constitucionais, mas também preceitos normativos formalmente constitucionais e meramente programáticos, os quais estabelecem fins, diretrizes e programas para a atuação futura dos órgãos estatais, acarretando um aumento deliberado nos textos das constituições modernas.

Em que pese esse supracitado aumento, advindo da adoção de uma teoria formal de constituição, em que é levado em conta o processo de elaboração da norma, considerando todas as normas que estejam numa constituição escrita, incluídas através de um processo especial constitucional, pouco importando seu conteúdo, a teoria da constituição material não é óbice para a inclusão de normas processuais em uma constituição.

Quanto à divisão em normas materialmente constitucionais e as normas formalmente constitucionais, confira-se [02], para maior aclaramento, ipsis litteris:

Quanto ao conteúdo, dizem-se materiais as constituições cujo texto contém apenas normas materialmente constitucionais, sendo formais aquelas cartas políticas onde, a par dessas normas, também existem preceitos cuja matéria não é constitucional. Tal distinção, bem se vê, esconde uma pré-compreensão – carregada de ideologia – sobre qual deve ser o núcleo duro das constituições, a chamada matéria constitucional. A propósito, adverte Jorge Miranda que a Constituição formal é, desde logo, a Constituição material, porque lógica e historicamente serve de manifestação da Constituição material subjacente e, também, porque nenhuma forma vale por si, mas apenas enquanto referida a certa substância.

E numa divisão mais estanque, veja o que ensina Uadi Lammêgo Bulos [03], in verbis:

Por Direito Constitucional material entende-se o conjunto de normas jurídicas que traçam a estrutura, as atribuições e as competências dos órgãos de Estado.

Para entender a funcionalidade do Direito Constitucional material, diríamos que ele se reporta ao conteúdo das disposições constitucionais, traçando-lhes a substância, a estrutura profunda, a competência, os direitos dos cidadãos, os fins essenciais da organização política.

(...)

A definição do Direito Constitucional formal é a seguinte: conjunto de normas e princípios inseridos num documento solene, que só pode ser elaborado e modificado mediante a observância de um procedimento técnico e cerimonioso, instituído especificamente para esse fim.

Não obstante a concepção da teoria material da constituição em considerar somente como pertencentes a uma carta magna aqueles comandos normativos substancialmente constitucionais, há que destacar a existência, sim, de normas processuais materialmente constitucionais. A teoria material da constituição observa que norma constitucional deixa de ser um corpo vazio para se transformar num repositório de valores com forte conteúdo jurídico-ético-humanitário.

A Constituição não pode ser mera "folha de papel", como pregava Lassale [04]. Deve ser, pelo contrário, um instrumento poderoso de limitação do poder e de proteção aos direitos fundamentais. Por mais que o constituinte tenha exagerado ao conceder direitos de difícil concretização (saúde, educação, moradia etc), não se pode querer retirar da Constituição a sua força normativa. Pelo contrário, ao jurista interessa lutar cada vez mais pela efetividade da Constituição a fim de que as palavras do constituinte não se transformem em mera demagogia constitucional.

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Por conseguinte, para que as palavras constitucionais sejam postas em prática, mister a edição de normas capazes de lhes dar uma efetividade concreta, escopo esse clássico das normas processuais. Daí advém uma grande controvérsia sobre o que seria Direito Processual Constitucional e Direito Constitucional Processual.

Em essência, a lei processual regulamenta a garantia constitucional de Justiça contida na Constituição. O processo visa à efetividade e à realização dos ideais constitucionais do Estado Democrático de Direito. O processo é, ele próprio, um direito fundamental, podendo ser esquematizado em:

- Princípios constitucionais: acesso à justiça, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, juiz natural, motivação das decisões judiciais.

- Jurisdição constitucional lato sensu: ações constitucionais (habeas corpus, habeas data, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública); controle judicial difuso dos atos normativos (tribunais e recurso extraordinário); controle concentrado (ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de constitucionalidade, argüição de descumprimento de preceito fundamental).

O processo não mais deve ser visto como a soma da relação jurídica e do procedimento, mas como procedimento em contraditório, valorizando-se a participação das partes e do juiz, a caracterizá-lo como "instrumento da vida democrática".

Antes de adentrar-se no mérito do que seria Direito Processual Constitucional e Direito Constitucional Processual, impende destacar que, por serem expressões carregadas de um sentido epistemológico, qualquer significado que se dê às mesmas encontrará concordâncias ou resistências por parte da doutrina mais abalizada.

No entanto, uma definição bastante aceita é aquela que entende ser o Direito Processual Constitucional o conjunto de preceitos destinados a regular o exercício da jurisdição constitucional, ou seja, a aplicação jurisdicional das normas da Constituição, conceito que não se confunde com o Direito Constitucional Processual, o qual trata das normas do processo contidas na Constituição.

Direito Constitucional Processual seria formado, destarte, a partir dos princípios basilares do devido processo e do acesso à justiça, e se desenvolveria através dos princípios constitucionais, a exemplo daqueles que se referem ao juiz, ao Ministério Público e às partes. Também seria exemplo os princípios alusivos à proibição das provas ilícitas, ao contraditório, à ampla defesa, à fundamentação das decisões, à publicidade, entre outros.

Por sua vez o Direito Processual Constitucional se constituiria a partir de normas processuais de organização da Justiça Constitucional e de instrumentos processuais previstos nas Constituições, ligados à idéia de controle de constitucionalidade, Garantia da Constituição e Garantia dos direitos fundamentais, solução de conflitos entre os órgãos de cúpula do Estado, resolução de conflitos federativos e regionais, julgamento de agentes políticos, recurso constitucional, mandado de segurança, habeas data, habeas corpus, etc.

Desta feita, as normas processuais nas constituições contemporâneas podem ser fruto da tentativa de concreção de dois valores ideológicos, subjacentes à idéia de processo constitucional: o valor efetividade, que emerge da influência dos direitos fundamentais com sua conseqüente necessidade de realização e o valor segurança jurídica, tomado na sua dimensão não racionalista absoluta, de certeza anterior aos fatos, mas sim como garantia contra o arbítrio estatal, e uma palavra: previsibilidade.

Por conseguinte, o direito constitucional é fruto da consagração jurídico-positiva de uma determinada ideologia, socialmente aceita e variável no tempo. Em cada período, incorpora–se os valores sociais, razão porque não se pode definir absolutamente o conteúdo materialmente constitucional. Assim, conceitua-se Ideologia constitucional como a opção de modelo político, econômico e social para reger os destinos da sociedade.

O Direito Constitucional é a positivação de uma ideologia socialmente aceita e variável no tempo, sendo de se concluir também pelo caráter dinâmico do Direito Constitucional, abrangendo diversas tendências sociais nos diversos momentos históricos. É a chamada mutabilidade constitucional, que torna necessária a presença de normas processuais na Constituição Federal para fazer valer os preceitos constitucionais materiais. Sem essas normas procedimentais, de nada adiantaria toda a elaboração constitucional.

À guisa de conclusão, pode-se asseverar com veemência a existência de normas processuais na Constituição Federal de 1988, normas essas materialmente constitucionais, dada a relevância jurídica de tais previsões, advindas de uma "ideologia Constitucional" a permear o momento histórico atual.


Notas

  1. JELLINEK, Georg. Reforma y mutación de La Constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
  2. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 62.
  3. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional, 5ª ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 64/2010. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60-61.
  4. LASSALE, Fernando. A essência da constituição. Tradução de Walter Stöner. Ri ode Janeiro: Liber Juris, 1988.
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Sobre o autor
René da Fonseca e Silva Neto

Procurador Federal. Coordenador Nacional de Matéria Administrativa da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Chico Mendes - ICMBio. Ex-Coordenador Nacional do Consultivo da PFE/ICMBio. Bacharel em Direito pela UFPE. Especialista em Direito Ambiental. Coautor do livro Manual do Parecer Jurídico, teoria e prática, da Editora JusPodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, René Fonseca. Da inexistência de óbices à presença de normas processuais nas Constituições contemporâneas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2874, 15 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19107. Acesso em: 27 abr. 2024.

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