Reza o art. 62, § 2º, da Carta da República de 1988, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional n.º 32/2001:
"Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
(...)
§ 2º - Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das casas do congresso nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da casa em que estiver tramitando".
Muito embora o dispositivo constitucional sob análise reze expressamente que ficam sobrestadas "todas as demais deliberações legislativas da Casa" até que se ultime a votação da medida provisória, a interpretação literal é apenas a primeira etapa do processo hermenêutico que se deve lançar sobre os dispositivos constitucionais, não podendo prejudicar suas demais fases [01].
De fato, as interpretações sistêmica e restritiva do texto constitucional têm prevalecido sobre a literalidade do seu art. 62, § 6º, em entendimento adotado na Sessão Plenária de 17/03/2009 pelo então Presidente da Câmara dos Deputados, para quem apenas os projetos de lei ordinária que tenham por objeto matéria passível de edição por medida provisória seriam por ela sobrestados.
Ainda segundo Michel Temer, a reiterada edição de medidas provisórias pelo Presidente da República estaria a violar, ainda, o Princípio da Separação dos Poderes, haja vista que a atividade desenvolvida pelo Congresso Nacional, própria e típica do Poder Legislativo, não poderia ser inibida por ato advindo de outro Poder da República, no caso, o Poder Executivo.
A matéria, em razão da controvérsia gerada entre políticos e juristas, foi levada ao Supremo Tribunal Federal por força de Mandado de Segurança preventivo (MS 27.931/DF) impetrado por líderes de partidos da oposição ao Governo Federal, que sustentam que a medida fere o devido processo legislativo, além de lesar o direito da minoria de utilizar-se do recurso da obstrução para impedir que a pauta de votações seja de arbítrio exclusivo da maioria parlamentar.
O relator do mandamus, Ministro Celso de Mello, após reconhecer a legitimidade dos parlamentares para a referida impetração, negou a liminar na Medida Cautelar requerida, a qual visava à determinação para que o Presidente da Câmara dos Deputados se abstivesse de colocar em deliberação qualquer espécie de proposição legislativa até que fossem votadas as medidas provisórias que eventualmente trancassem a pauta.
Entendeu o nobre Magistrado, acerca do entendimento firmado pelo então Presidente da Câmara dos Deputados, dentre outros fundamentos, que
A decisão em causa teria a virtude de devolver, à Câmara dos Deputados, o poder de agenda, que representa prerrogativa institucional das mais relevantes, capaz de permitir, a essa Casa do parlamento brasileiro, o poder de selecionar e de apreciar, de modo inteiramente autônomo, as matérias que considere revestidas de importância política, social, cultural, econômica e jurídica para a vida do País, o que ensejará – na visão e na perspectiva do Poder Legislativo (e não nas do Presidente da República) - a formulação e a concretização, pela instância parlamentar, de uma pauta temática própria, sem prejuízo da observância do bloqueio procedimental a que se refere o § 6º do art. 62 da Constituição, considerada, quanto a essa obstrução ritual, a interpretação que lhe deu o Senhor Presidente da Câmara dos Deputados. [02]
Após trâmite regular, o Ministro Relator apresentou seu voto em sessão plenária no sentido da denegação da segurança, bem como pela aplicação de interpretação conforme a Constituição ao art. 62, § 2º, da Carta Magna. Pediu vista a Ministra Carmem Lúcia, estando o mérito do writ, pois, pendente de julgamento pelos demais Ministros do Pretório Excelso.
Dessa forma, desde a adoção desse entendimento pelo então Presidente da Câmara dos Deputados, as demais matérias prontas para apreciação pelo Plenário da Câmara dos Deputados vêm sendo apreciadas pelos parlamentares, isto é, projetos de resoluções, propostas de emendas à Constituição Federal, projetos de leis complementares e de decretos legislativos, e, bem assim, os projetos de leis ordinárias cujo objeto não possa ser tratado por meio de medidas provisórias.
Não se pode olvidar, todavia, as conseqüências que podem decorrer da interpretação dada ao referido dispositivo constitucional. Verificado o fim do prazo de 45 para que se ultime a votação da medida provisória, e não sendo ela, de fato, apreciada pelo Plenário da Casa por força de estratégia política própria do jogo democrático desenvolvido pelos parlamentares, corre-se o risco de vê-la perder sua eficácia decorridos 120 dias da sua edição (art. 62, § 3º, CF/88). É que, após a Emenda Constitucional n.º 32, de 2001, muito embora haja a previsão da perda da eficácia com posterior edição de decreto legislativo pelo Congresso Nacional para disciplinar as relações jurídicas decorrentes da edição da Medida Provisória, a verdade é que o procedimento criado pelo § 6º, ora em análise, impedia que tal hipótese ocorresse.
Com a palavra o Professor José Afonso da Silva [03]:
Em certo sentido há uma incoerência entre o disposto nos §§ 3º e 6º do art. 62, introduzidos pela EC-32/2001, porque o primeiro admite a perda de eficácia de MPs que não forem apreciadas no prazo de 120 dias (60 dias mais prorrogação por igual período), enquanto o segundo preordena mecanismos que impõem ao Congresso Nacional sua apreciação, quando declara que se a media provisória não for apreciada em até 45 dias, contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. Por esse regime, todas as medidas provisórias terão que ser votadas, sendo, por isso, aprovadas ou rejeitadas, sem margem para perda de eficácia por não apreciação como prevê o §3º. Apesar disso, o §10 do art. 62 (EC-32/2001) insiste em falar em MPs que tenham perdido eficácia por decurso de prazo, vedando reedições nesse caso e no de sua rejeição dentro da mesma sessão legislativa.
Conclui-se, portanto, que o novo entendimento decorrente da interpretação sistêmica e restritiva da Constituição Federal de 1988, adotado pelo então Presidente da Câmara dos Deputados, e que até o presente momento não foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal, se por um lado devolve a organização da agenda de votação a quem de direito, isto é, ao próprio Congresso Nacional, permitindo a votação de matérias outras após o vencimento do prazo constitucional das medidas provisórias, poderá dar ensejo às situações a seguir elencadas:
a) criará uma delicada situação de vazio legislativo ao Parlamento caso não sejam apreciadas as medidas provisórias, pois será necessária a edição de sucessivos decretos legislativos para disciplinar as relações jurídicas decorrentes do grande número de MPs editadas pelo Presidente da República (§ 3º), criando uma obrigação tácita aos parlamentares para que as analisem dentro do prazo e, por conseqüência, reduzindo a possibilidade de ampla discussão das matérias entre maioria e minoria parlamentares; e
b) insegurança jurídica para a sociedade, vez que ao se editar uma medida provisória não é possível antever se efetivamente virá a será apreciada pelos parlamentares, e nessa hipótese, com a perda da sua eficácia, ora as relações jurídicas dela decorrentes ficarão a cargo de disciplinamento pelo Congresso Nacional por meio de decreto legislativo, ora, na ausência deste, terão conservadas as relações jurídicas decorrentes dos atos praticados durante sua vigência (art. 62, §11), o que pode ser prejudicial ao interesse público a depender do objeto da medida.
Há que se encontrar, portanto, um entendimento político e jurídico para que o Congresso Nacional não tenha suas atividades inibidas pelo excesso de medidas provisórias editadas pelo Chefe do Poder Executivo, e tampouco que as medidas provisórias, sabidamente já nascidas com força de lei, tendo em vista a possibilidade de deliberação sobre outras matérias, se tornem navios sem rumo em razão da ausência de análise pelo Parlamento, com o risco de seus efeitos se perpetuarem no tempo.
Referências de Pesquisa
- ALMEIDA NETO, Manoel Carlos de. O Renascimento do Poder Legislativo: a nova interpretação do art. 62, § 6º, da Constituição Federal. Disponível em HTTP://www.lfg.com.br.
- SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, 33ª Edição, revista e atualizada: Malheiros, 2010, p. 534.
- Informativo n.º 540/STF (23 a 27 de março de 2009). www.stf.jus.br
Notas
- ALMEIDA NETO, Manoel Carlos de. O Renascimento do Poder Legislativo: a nova interpretação do art. 62, § 6º, da Constituição Federal. Disponível em HTTP://www.lfg.com.br.
- Informativo n.º 540/STF (23 a 27 de março de 2009). www.stf.jus.br
- SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, 33ª Edição, revista e atualizada: Malheiros, 2010, p. 534.