Não é segredo algum que o Pregão se consolidou como a modalidade licitatória preferencial da Administração Pública em todas as esferas governamentais para a contratação de bens e serviços comuns no país.
Inegavelmente, com o advento do Pregão os processos e os procedimentos licitatórios tornaram-se mais céleres, desburocratizados e, principalmente, bem mais econômicos, fatores estes que se traduziram na maior eficiência na gestão e no dispêndio dos recursos públicos.
De fato, tal modalidade licitatória confere ao ente licitante uma plêiade de vantagens sobre as demais modalidades licitatórias usualmente utilizadas. Dentre elas, podem ser citadas, de modo resumido: o prazo significativamente menor entre a divulgação do edital e abertura do certame, regras bem mais flexíveis quanto à limitação de valores para contratação, inversão das fases (com a abertura inicial dos envelopes contendo as propostas comerciais), obtenção de preços extremamente vantajosos com a instauração da fase de lances entre os participantes, fase recursal única e um rito procedimental extremamente simplificado, onde apenas a aferição do menor preço ofertado constitui-se como o critério para julgamento dos participantes.
Todo esse arcabouço de vantagens fez, obviamente, com que o Pregão se tornasse a primeira opção do gestor público para as aquisições e contratações de bens e serviços comuns, ou seja, objetos de natureza simples, que possuem descrição técnica usual, perfeitamente conhecida, dominada e oferecida amplamente pelo mercado.
Todavia, o uso de tal modalidade, de intenções e resultados tão benéficos, vem sendo perigosamente banalizado e distorcido para dar azo a licitações claramente ilegais, nas quais objetos de extrema complexidade e que demandariam acurado exame técnico se transformaram, como que em um passe de mágica, em bens comuns apenas para obterem enquadramento à referida modalidade e, com isso, escaparem de uma série de ritos legais obrigatórios.
Como já dito, o Pregão tem como sua característica principal, desde a edição da primeira norma legal a seu respeito, a sua destinação exclusivamente às aquisições de bens e serviços comuns.
O próprio artigo 1º da lei que instituiu a modalidade de licitação denominada Pregão no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e municípios (Lei nº 10.520/02), dispôs expressamente sobre a limitação quanto à aplicação de tal modalidade licitatória:
"Art. 1º Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta Lei.
Parágrafo único. Consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado." (grifos nossos)
Sendo assim, compreende-se que licitação na modalidade Pregão destina-se à contratação de bens e serviços comuns, estes definidos como de padrão e tendo característica de desempenho e qualidade que possam ser estabelecidos de forma objetiva, ou seja, sem alternativas técnicas de desempenho dependentes de tecnologia sofisticada.
Contudo, apesar do comando legal expresso e limitador quanto à utilização do Pregão, tem-se tornado cada vez mais usual a utilização indevida de tal modalidade, por muitas entidades públicas, para se licitar bens e serviços complexos, cuja análise e julgamento dependeriam necessariamente de exame técnico específico para a admissão de propostas.
Na maior parte dos casos a complexidade do objeto licitado através de Pregões é sequer disfarçada nos instrumentos convocatórios, vez que estes dedicam grande parte de seus conteúdos na descrição e especificação de requisitos técnicos nada usuais e, muito menos, comuns ou de simples avaliação.
Para surpresa de muitos licitantes, em diversas oportunidades tem-se cada vez mais deparado com editais de Pregões contendo complexos requisitos técnicos na descrição do objeto pretendido pela Administração. Todavia, ainda assim, o único fator de julgamento a ser avaliado nesses casos pelo Pregoeiro tem sido o "menor preço" obtido através da fase de lances (e tal critério de julgamento não podia mesmo ser diferente no caso do Pregão).
No entanto, o resultado de tal procedimento chega a ser surreal, pois, encerrada a fase de lances e verificados o menor preço e a regularidade na habilitação do autor da menor oferta, o objeto de relevante complexidade técnica é adjudicado ao vencedor e a licitação homologada. Simples assim, sem qualquer análise técnica e parecer fundamentado acerca do cumprimento ou não dos requisitos e das especificações constantes do edital.
Em muitas oportunidades, os agentes públicos responsáveis alegam em sua defesa que o objeto em questão será devidamente analisado e periciado por equipe técnica quando de sua entrega pelo fornecedor ou, em alguns casos, antes da formalização da contratação, argumento este completamente equivocado, já que não se pode desprezar que a modalidade licitatória escolhida pela Administração foi o Pregão, que se destina exclusivamente a bens e serviços comuns que, como já visto, dispensa a emissão de análises aprofundadas ou de pareceres técnicos acerca da admissibilidade do objeto ofertado, até porque o mesmo é usualmente conhecido e de ampla oferta no mercado.
Como se não bastasse, a defesa da utilização do Pregão para objetos complexos é ainda mais prejudicada pelo exíguo prazo entre a publicação do edital e a abertura do certame (08 dias úteis). Ora, não há evidentemente nessa modalidade licitatória tempo hábil para que o interessado possa receber o edital e se preparar adequadamente para uma licitação que contém dezenas de páginas contendo a descrição pormenorizada de bens e serviços complexos. Caso um particular tome conhecimento do edital no dia sua publicação, terá entre três a cinco dias para proceder à análise completa do edital, interpor eventuais impugnações ou esclarecimentos e ainda se preparar para o certame.
Por todas essas razões, não é lícito proceder a uma licitação pelo rito sumário do Pregão, onde a essência é a análise de preços, sem que o Administrador possa ter a certeza, do ponto de vista técnico, do que pretende contratar, e como poderá conferir isso ainda no decorrer do certame licitatório. A existência de uma análise de manual técnico após o preço já ser conhecido é absurda e inexiste na legislação do Pregão. Tal requisito apenas demonstra a complexidade do objeto e a necessidade de se realizar licitação do tipo técnica e preço, a qual é regulada por outras modalidades licitatórias.
Isso sem falar que a realização, em momento posterior à finalização da licitação, de uma fase de análise técnica do objeto quanto ao cumprimento das especificações contidas em edital, afronta completamente os ditames legais vigentes para a modalidade licitatória do Pregão.
Em primeiro lugar, a "fase de avaliação técnica do objeto" sequer está prevista na legislação alusiva ao Pregão, seja antes ou depois de finalizado o procedimento licitatório. Para esses casos, seria necessária a adoção do critério de julgamento denominado "técnica e preço", previsto no Parágrafo Primeiro do artigo 45 da Lei nº 8.666/93.
Em segundo, se há em algum momento a necessidade de realização de uma fase para avaliação técnica do cumprimento do objeto ofertado pelo proponente vencedor às condições elencadas pelo edital, além do Pregão não ser a modalidade licitatória adequada, conforme já demonstrado, tal fase técnica deveria ser pública e acessível aos demais participantes, respeitando-se, ainda, a fase recursal, em cumprimento aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Contudo, não é isso que se tem visto no campo prático.
Diante de um cenário tão absurdo, obviamente que os editais de Pregão que contemplavam objetos demasiadamente não usuais e critérios de julgamento reduzidos apenas ao fator preço foram alvos de uma enxurrada de impugnações administrativas e judiciais, as quais questionavam justamente o escandaloso menosprezo à avaliação técnica obrigatória para admissibilidade de ofertas e a flagrante incompatibilidade da modalidade licitatória utilizada.
De um modo geral, percebeu-se na época que o entendimento jurisprudencial exarado nessas oportunidades caminhou em direção à fixação de algumas premissas básicas para a realização dos Pregões em função do objeto pretendido pela Administração Pública.
O Tribunal de Contas da União, em Acórdão aqui colacionado como exemplo, já chegou a algumas bastante oportunas. Por ocasião da prolação do Acórdão 2.471/2008 - Plenário, da relatoria do Ministro Benjamin Zymler, a questão foi aparentemente pacificada pelo Tribunal de Contas da União, que adotou posicionamento pela obrigatoriedade da utilização da modalidade pregão para contratação de bens e serviços de informática considerados comuns, salvo se forem de natureza predominantemente intelectual, vez que, para estes, o art. 46 da Lei 8.666/93 exige licitação do tipo "melhor técnica" ou "técnica e preço" (incompatível com o pregão).
De acordo com o TCU, bens e serviços comuns, segundo o art. 1º, § 1º, da Lei 10.520/02, são aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade podem ser objetivamente definidos por meio de especificações usuais no mercado. Isto é, são aqueles que podem ser especificados a partir de características (de desempenho e qualidade) que estejam comumente disponibilizadas no mercado pelos fornecedores.
Lamentavelmente, a partir de tal entendimento, diversas entidades públicas se sentiram seguras para distorcer em seu favor o uso do Pregão com o objetivo de licitar bens e serviços tecnicamente complexos e não comuns. Para tais entidades, desde que se consiga descrever no edital o objeto pretendido de forma objetiva e por meio de especificações técnicas, isso já será suficiente para enquadrá-lo como bem comum passível de ser licitado pela modalidade Pregão.
Partindo dessa percepção simplista e desprovida de lastro jurídico, qualquer objeto poderá então ser licitado pela modalidade Pregão, bastando apenas que o ente licitante consiga descrever no instrumento convocatório as especificações do objeto, por mais complexo que ele seja. Infelizmente, essa é a realidade mais encontrada para quem milita no ramo das licitações públicas.
De acordo com tal entendimento equivocado e danoso à Legalidade que deve permear os processos licitatórios, todos os bens e serviços existentes passaram a ser enquadrados como comuns, usuais e de amplo conhecimento e domínio no mercado. Por consequência, o menor preço se transformou no único critério de julgamento oficial a ser avaliado para fins de declaração do vencedor nestas licitações complexas.
Decerto que ainda existia para a defesa de tal tese absurda a necessidade de não deixar os entes licitantes tão fragilizados nas licitações de objetos tecnicamente complexos. Ora, como licitar objetos de alta complexidade e incomuns apenas julgando os valores das ofertas apresentadas?
Em vista disso, centenas de editais trazem agora, sem qualquer camuflagem, a previsão expressa de uma análise técnica classificatória a ser realizada no objeto ofertado pelo licitante detentor da menor oferta de preço, inserindo-se até mesmo a data e os critérios de demonstração e julgamento quanto ao cumprimento das especificações técnicas constantes do termo de referência integrante ao instrumento convocatório.
Isso mesmo, uma fase técnica para o Pregão!
Evidentemente e como já visto, o menor preço como critério de julgamento do Pregão funciona aparentemente como o critério oficial, já que há previsão implícita e na maior parte das vezes explícita de uma fase de avaliação técnica eliminatória de licitantes.
Vale lembrar que inexiste em qualquer lei, medida provisória ou decreto, uma regra específica ou um rito, um procedimento, ou qualquer outra menção sobre a avaliação técnica classificatória de bens e serviços pela modalidade licitatória do pregão.
Com efeito, sabendo-se que ao Administrador é dado fazer apenas e tão somente o que a lei estabelece, nada mais, nada menos, sob pena de violação ao princípio da legalidade, não haveria como se admitir tal invencionice.
O pior nesse caso, é que tal famigerada fase de avaliação técnica classificatória no âmbito dos Pregões, não obstante ser ilegal e não encontrar qualquer previsão normativa, tem sido defendida por muitos entes públicos como algo perfeitamente normal e, mais grave, ainda não tem sido devidamente rechaçada pelo Poder Judiciário ou pelos Tribunais de Contas.
Um caso emblemático e que pode ser citado como exemplo para ilustrar ao assunto aqui tratado diz respeito às licitações realizadas por diversas entidades para aquisição e/ ou locação de licenças de uso de sistemas informatizados de gestão pública.
Nesse caso específico, os sistemas informatizados dirigidos à gestão de entidades públicas possuem notória complexidade técnica, impossível de ser menosprezada no julgamento de propostas em uma licitação. Como se não bastasse, predomina em tal ramo de atividade o caráter individualizado de cada sistema desenvolvido, ou seja, os sistemas informatizados voltados à gestão pública não são padronizados e possuem, cada qual, alternativas distintas de desempenho tecnológico e de qualidade. Em suma, características que já à primeira vista se mostrariam completamente incompatíveis e inconcebíveis para a adoção de um Pregão como modalidade licitatória.
Contudo, ainda assim, mesmo com todas essas especificidades, encontramos reiteradamente editais de Pregão imbuídos da contratação de tais produtos e serviços incomuns (licenciamento/locação).
Como não podia deixar de ser, tais instrumentos convocatórios dedicam dezenas de páginas e extensas especificações técnicas de alta complexidade para aceitação do objeto. Todavia, o edital contraditoriamente determina expressamente como critério de julgamento, evidentemente para obedecer à legislação alusiva ao Pregão, o "menor preço".
Porém, como já dito, nestes mesmos editais é simplesmente inventada uma fase técnica de classificação da empresa vencedora, logo após o encerramento da sessão de lances. Assim, cada uma das centenas de funcionalidades técnicas dos sistemas informatizados para a gestão pública será objeto de avaliação por equipe técnica em data na maioria das vezes discriminada no próprio edital, existindo até mesmo a duração da demonstração do produto pelo licitante declarado vencedor/detentor da menor oferta.
É digno de nota, ressaltar que tais demonstrações, assim como para outros objetos de outros ramos de atividade, demandam semanas de análise técnica para aprovação. Diante disso, pergunta-se: se tal objeto licitado por Pregão se trata de algo comum, padronizado, usual, de domínio do mercado, por que realizar análise técnica com julgamento classificatório de funcionalidades, utilizando-se de equipe de especialistas dedicada a tal avaliação durante semanas? Como caracterizar tal tipo de objeto como produtos de prateleira, comuns ao mercado, se tais sistemas de informática são dirigidos exclusivamente à gestão do setor público e não possuem um padrão específico em função das distintas alternativas de qualidade e desempenho tecnológico ofertadas no mercado?
Como já dito, se há necessidade de análise e julgamento técnico do objeto licitado, a Administração deveria então adotar o critério de julgamento "técnica e preço", o qual não coaduna com os pregões, que, pela natureza comum de seus objetos, são julgados com base apenas no critério de "menor preço".
Tal tipo de procedimento equivocado, além de ilegal, abre margem a favorecimentos e direcionamentos tão rechaçados pela lei, doutrina e jurisprudência. Para se ter uma ideia, alguns editais de pregão chegam ao cúmulo de determinar que as centenas de funcionalidades dos sistemas informatizados serão ou não avaliadas a critério do Pregoeiro ou ainda por amostragem, aleatoriamente ou pior, com base em roteiro a ser distribuído apenas no momento da demonstração técnica.
Nesses casos os Princípios da Legalidade, da Igualdade e do Julgamento Objetivo são inteiramente afrontados, já que o licitante sequer sabe o que será efetivamente avaliado na ilegal fase técnica classificatória do pregão ou se tal análise será feita apenas para alguns e não para outros. Quem definirá quais as funcionalidades são mais relevantes? Com base em que regramento legal?
Um licitante poderá atender, por exemplo, 20 (vinte) funcionalidades requeridas na apresentação técnica e não cumprir outras 200 (duzentas), cuja demonstração não foi solicitada pelo ente licitante. Em suma, não atende ao objeto proposto pela Administração, mas ainda assim será contratada!
Como se não bastasse, cumpre observar, ao final, que tais análises técnicas classificatórias em Pregões vêm sendo realizadas depois da manifestação de intenção recursal pelos licitantes, ou seja, inventa-se uma fase de classificação técnica dos participantes no Pregão e ainda a inserem em momento no qual não é mais possível a manifestação pelos demais concorrentes acerca de eventuais descumprimentos ao edital (cerceamento à ampla defesa e ao contraditório, princípios consagrados na Constituição da República).
Assim, por todas as razões aqui apresentadas, conclui-se que a utilização do Pregão como modalidade licitatória vem sofrendo, lamentavelmente, uma grave e porque não dizer lesiva distorção em sua real e intencionada finalidade. A desburocratização e a economia proporcionada pelos Pregões não devem ser justificativas para que toda e qualquer contratação desejada pelos entes públicos possa ser enquadrada em tal modalidade.
Não há como se transformar subjetivamente da noite para o dia, com base em mera interpretação casuística e sem respaldo legal, bens e serviços notoriamente complexos em bens e serviços comuns, usuais no mercado. Menos espaço ainda existe para se burlar as normas legais e criar fases técnicas classificatórias no âmbito das licitações realizadas sob a modalidade Pregão.