4 – Interpretação e Objetividade
Duas Objeções
Nesse ensaio, Dworkin passa a tecer comentários sobre "De que maneira o direito se assemelha à literatura", desvencilhando-se da ingênua teoria metafísica da interpretação. Para Dworkin, o ensaio feito anteriormente surgiu da tentativa de melhorar a equivocada teoria do "simplesmente ali" para o sentido dos julgamentos interpretativos.
Nesse sentido, a avaliação de Dworkin sobre o sentido dos julgamentos interpretativos pode provocar duas objeções muito diferentes:
1ª - A interpretação não é diferente da criação. A única diferença é que, na interpretação, o texto exerce alguma restrição sobre o resultado. Portanto, o próprio texto seria produto de julgamentos interpretativos;
2ª - Uma interpretação não pode ser realmente verdadeira nem falsa, boa nem má, eis que se pode fazer com que a correção de uma interpretação dependa de qual leitura de um poema, romance ou doutrina jurídica torne-os melhores, estética ou politicamente, e não pode haver nenhum resultado objetivo em um julgamento desse tipo, mas apenas reações "subjetivas" diferentes.
Dworkin, então, passa a analisar qual das objeções seria mais congruente.
Dependência Teórica
Para Dworkin, a primeira objeção é mais notável se se entender que contesta, não a possibilidade geral do conhecimento de teoria, mas a sua possibilidade no caso literário. Por exemplo: "se não tivéssemos opiniões especiais e distintas sobre o que considerar como observação, não poderíamos refutar teorias estabelecidas com observações novas." [08]
Dworkin tenta demonstrar como cada intérprete encontra, na interação entre dois conjuntos de posturas e convicções, não apenas restrições e padrões para a interpretação, mas as circunstâncias essenciais dessa atividade, os fundamentos de sua capacidade de conferir sentido distinto aos juízos interpretativos. No fim, conclui Dworkin, não podemos dar melhor resposta à primeira objeção que apontar nossas próprias práticas de interpretação.
A Objetividade
Em princípio, Dworkin alega que não há porque encontrar argumento geral no sentido que os julgamentos interpretativos morais, políticos, jurídicos ou estéticos sejam objetivos. Exemplo, o caso da escravidão: "penso que a escravidão é injusta nas circunstâncias do mundo moderno. Digo ‘penso’ que tenho argumentos não porque estou preocupado com a posição filosófica dos argumentos que tenho, mas porque sei que outros adotaram uma visão contrária, que posso não ser capaz de convencê-los, e que eles poderiam, na verdade, ser capazes de me convencer se eu lhes desse uma oportunidade decente de fazê-lo. Mas agora suponha que alguém, depois de ouvir meus argumentos, me pergunte se tenho algum argumento diferente a favor da opinião de que a escravidão é objetivamente ou realmente injusta." [09]
Naturalmente que o termo "objetividade" poderia assumir outras acepções, mas toda teoria contemporânea sobre o assunto seria um embuste. Não há como decidir se nossos julgamentos são realmente verdadeiros.
Dworkin conclui que, quando as pessoas fazem julgamentos interpretativos, morais ou jurídicos, estão desempenhando certo jogo de faz-de-conta, perguntando a si mesmas que interpretação seria melhor se alguma realmente pudesse ser melhor, ou que seria moralmente certo se alguma coisa pudesse realmente ser moralmente certa, e assim por diante.
Se julgamentos morais, estéticos ou interpretativos têm o sentido e a força que têm só porque figuram em um empreendimento humano coletivo, então tais julgamentos não podem ter um sentido "real" e um valor de verdade "real" que transcenda esse empreendimento e, de alguma maneira, apodere-se do mundo real.
Por fim, até mesmo a questão de saber se existe objetividade na interpretação é, por si só, uma questão interpretativa, razão pela qual a objetividade é um embuste.
O Ceticismo
Em princípio, Dworkin começa o seu ensaio negando o ceticismo, sob o argumento de que, se o cético precisa produzir argumentos morais para contestar a moralidade, deve admitir o sentido e a validade de argumentos cujo sentido e validade quer negar. Na verdade, para Dworkin, os céticos querem negar a complexidade das práticas morais e interpretativas.
Para o cético, segundo Dworkin, os julgamentos interpretativos seriam muito desnaturados e desconexos para serem controlados por outros julgamentos da maneira que a tarefa da interpretação supõe. Um intérprete poderia aceitar alguma teoria sobre a finalidade ou o valor da arte, segundo a qual certas questões interpretativas (ou mesmo todas elas) simplesmente não têm nenhuma resposta porque nenhuma resposta poderia fazer qualquer diferença para o valor de uma obra de arte. Exemplo: O fato de Hamlet e Ofélia serem amantes, ou não, não influenciará na interpretação da peça. Se alguém pensa que a finalidade da interpretação é assegurar uma grande média de concordância interpessoal, notará que a interpretação, como praticada hoje, não oferece nenhuma perspectiva desse tipo, e extrairá conclusões globais e céticas adequadas.
Para Dworkin, o único ceticismo aceito seria o que ele denomina de ceticismo externo, embora ele não defina quais os outros tipos de ceticismos. O cético externo supõe que pode controlar todos os julgamentos interpretativos confrontando-os com alguma realidade externa cujo conteúdo não deve ser determinado por argumentos que se tornaram conhecidos pela prática, mas que dever ser apreendido de alguma outra maneira.
Portanto, conclui Dworkin: "O único ceticismo excluído por minhas observações anteriores é o ceticismo trazido para um empreendimento do exterior, o ceticismo que não emprega argumentos do tipo que o empreendimento requer, o ceticismo é simplesmente adicionado à conclusão de nossas várias convicções interpretativas e políticas, deixando-as todas, de alguma maneira, intactas e no lugar." [10]
5 – Conclusão
O radicalismo igualitarista de Dworkin o conduz a teses exageradas que têm sido objeto de numerosas críticas. Por exemplo, sustenta que "não existe um direito à liberdade". E não existe tal direito à liberdade, no sentido forte do direito, porque o Estado não pode limitar a liberdade dos cidadãos baseando-se em políticas de bem estar geral. Se os direitos se definem como triunfos frente aos interesses gerais, então o direito à liberdade não é um autêntico direito que compita com o direito à igualdade. Evidentemente, esta tese provocou numerosas críticas dos liberais conservadores que privilegiaram o direito à liberdade sobre o direito à igualdade. Precisamente Dworkin sustenta, frente à teoria dominante, que esses direitos não estão em tensão porque o verdadeiro liberal respeita o princípio da igualdade como o primeiro e superior direito e como o autêntico direito.
Portanto, conforme asseverado alhures, a interpretação do direito tem por base, na perspectiva de Dworkin, o princípio da igual liberdade, em que o juízo e as partes deverão curvar-se às peculiaridades sociais de cada caso, de forma que o bom senso se sobressaia da palidez normativa. Direito é interpretação, é subjetividade, é percepção, logo há certa parcela de variação a depender de quem o aplique. E para melhor se aproveitar dessa subjetividade, cabe aos operários do direito aplicar a equidade, que é a justiça do caso particular e suas peculiaridades, de modo que o bom senso prevaleça na sentença, já que o direito é feito pelo homem e para o homem. Com isso a prestação jurisdicional será mais sensível e humanizada, e a paz social será melhor difundida.
6 – Referências Bibliográficas
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2001;
_________________. Levando os direitos a sério. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2002;
_________________. O império do direito. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2003.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
PERELMAN, Chaïm, Ética e Direito.São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Notas
- . Sacrílego: que cometeu sacrilégio.
- . DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2001, p. 175.