Resumo: O trabalho aborda inicialmente o surgimento de um consenso em torno da democracia liberal em escala planetária e, ao mesmo tempo, a crise da participação política no sistema representativo. Posteriormente, avança na análise do conceito schumpeteirano de democracia, suas inspirações e conseqüências. Por fim, destaca o debate realizado por Villasante, Santos e Avritzer sobre a necessidade de reconhecimento da democracia como um processo aberto, fruto da experiência quotidiana, diariamente em construção pelos cidadãos e cidadãs.
Palavras Chaves: DEMOCRACIA; EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA; MÉTODO DEMOCRÁTICO; PARTICIPAÇÃO POLÍTICA; PROCESSO DEMOCRÁTICO.
1. Debatendo Democracia
Não é novo o debate em torno do melhor regime político para o governo de uma comunidade. Remonta aos tempos de Aristóteles e Platão na Grécia da Antiguidade. Recentemente, contudo, alguns autores, como Boaventura de Souza Santos (1996) e Chantal Mouffe (2003), tem destacado a formação de um progressivo consenso em torno da idéia de Democracia, especialmente em relação a um dos seus diversos modelos, que é o liberal.
A Democracia Liberal, inspirada nos ideais Iluministas, tem como pressupostos a existência de instituições representativas dos interesses coletivos, como o parlamento, direitos civis e políticos, liberdade de expressão, direito de ir e vir, liberdade de pensamento, livre associação, direito de petição, direito de propriedade, dentre outros.
Tais garantias, associadas ao princípio da soberania popular, que garante aos cidadãos os direitos de escolher e constituir o seu governo, na concepção liberal, são a base base constitutiva de uma sociedade livre, justa e democrática.
As duas maiores bases teóricas da formação do ideário liberal de democracia são John Locke e Jean Jacques Rousseau. O primeiro via no Parlamento um instrumento de expressão da vontade da sociedade civil, responsável pela formulação das leis e de controle do arbítrio. O parlamento cumpre um papel fundamental na limitação da ação estatal através do exercício do princípio da Legalidade. Locke também escreveu o "Tratado Sobre a Tolerância", apontando a tolerância como outro elemento central para a democracia, através do reconhecimento liberdade para manifestação das diferenças, inclusive religiosas.
O genebrês Jean Jacques Rousseau, por sua vez, introduz o princípio da legitimidade, que obrigado a subordinação dos governos a soberania popular. Para Rousseau, é o "povo incorporado" quem decide racionalmente a forma de constituição e o conteúdo do Contrato Social que deverá gerir o futuro da nação. Neste contrato estão as bases da organização da comunidade, inclusive os limites da ação do Estado.
O avanço da democracia liberal, destacado anteriormente, inspirou, na década de 90, o americano Fracis Fukuyama (1992) a declarar de forma peremptória que chegamos ao fim da história. Mas a história a que ele se refere não é propriamente a história humana, e sim ao fim do conflito entre ideologias políticas, pois naquela época notava num estudo de regimes políticos em escala global, que a grande maioria dos países, em todos os continentes, haviam assumido um modelo liberal de Democracia.
Para construir a sua teoria, Fukuyama inspirou-se na queda da "cortina de ferro" no início da década de noventa, e na resposta política dada pela maior parte dos países do Leste Europeu como a Hungria, a Polônia, a Ucrânia, e a própria Rússia que, quando superado o período comunista, adotou um regime político com eleições livres, parlamento, e garantia de direitos liberais, em especial a liberdade para ter, gozar, dispor e fruir da propriedade.
Entretanto, é preciso ressaltar que o trabalho de Fukuyama, além de polêmico, é dotado de alguns elementos questionáveis e inconsistentes, como a própria base empírica. Neste estudo o autor citou entre os países que aderiram ao sistema político democrático liberal nações com uma enorme tradição na sua Democracia, como a França e a Inglaterra, e países não tão democráticos, muito próximos do que poderíamos chamar, na época de elaboração do livro, de ditaduras militares, como é o caso de Cingapura.
Estas contradições encontradas na obras de Fukuyama podem ser justificadas por uma visão formalista que este tem da democracia, baseada especialmente na definição político-constitucional dos países.
Na verdade, o debate em torno do conceito de democracia é bastante amplo, e envolve elementos como o grau de liberdade, igualdade e participação dos cidadãos nos negócios públicos. Para muitos a própria existência de um sistema realmente democrático é questionável.
A expressão democracia vem do grego, e significa o governo de muitos, de todos, ou dos pobres. Neste último caso, o conceito vem da clássica definição das formas de governo por Aristóteles, quando este debate a melhor escolha para governar um povo(BOBBIO, 1997).
Todavia, é comum vermos o uso equivocado do termo democracia ateniense, para situações onde o povo definia em praça pública as questões comuns. Contudo, numa busca histórica mais apurada, será observado que este povo ateniense, sob o ponto de vista histórico, era um grupo restrito, formado por patrícios, excluindo mulheres, crianças, escravos, estrangeiros e os pobres. Logo, havia, seguindo a própria acepção aristotélica, como os pobres estavam excluídos, ao contrário de uma democracia, a Atenas antiga gozava de uma aristocracia, na medida em o jogo político estava restrito a uma elite privilegiada.
O avanço das idéias liberais também não significou de imediato a construção de uma democracia política nos moldes contemporâneos. Embora as bandeiras das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX carregassem a defesa da liberdade, da igualdade e da fraternidade, mesmo nos Estados Unidos da América, que inspiraram a obra "A Democracia na América" de Alexis Tocqueville, um dos mais importantes relatos sobre os avanços encontrados em governos liberais no período, havia uma grande massa de trabalhadores escravos naquele país, especialmente nas colônias do sul. Sendo assim, mesmo a democracia a inspiradora e emergente democracia americana apresentava graves problemas na sua organização política, mantendo uma grande parcela da população sem liberdade para exercer os seus direitos.
Na realidade, os negros americanos começaram ver os seus direitos civis realmente reconhecimento nos inícios dos anos setenta do século XX, depois da ação dos movimentos que lutavam por igualdade, comandado por ligeranças como Martin Luther King. Mesmo no século XXI a ação da "ku-klus-kan" nos Estados do Sul do referido país, demonstra que os Estados Unidos, apesar de ter eleito seu primeiro presidente Negro, ainda tem que avançar muito para atingir os ideais de democráticos preconizados pelo fundadores, na Convenção de Virgínia no século XVIII.
Tamanha é a importância da liberdade para o conceito ideal de Democracia, que na vertente teórica do Republicanismo, de acordo com Leonardo Avritzer (1999), ambos os conceitos se confundem, constituindo a liberdade a base do auto-governo, conforme será abordado mais adiante.
Outra característica importante da democracia é o grau de igualdade entre os cidadãos. À medida em que o avanço das idéias socialistas, comunistas e sociais-democratas passaram a "contaminar" o ambiente dos liberais, este direito passou a ser conteúdo fundamental das democracias, estabelecendo-se, contudo, a discussão entre igualdade formal e igualdade substancial ou econômica.
Para aqueles que defendem a igualdade substancial, somente haveria plena democracia quando esta garantisse boas condições de vida material aos seus cidadãos. Se por um lado, no conceito liberal clássico de democracia a igualdade era mais jurídica (formal) do que real, para os socialistas e sociais-democratas um país verdadeiramente democrático é aquele no qual, parodiando Jean Jacques Rousseau, "ninguém seja tão pobre que precise vender a sua liberdade, nem tão rico que possa comprar a liberdade de outrém" (SANTOS, 2006), ou melhor, que as pessoas gozem de igualdade econômica.
O filósofo suiço, por sinal, em face desta compreensão da democracia, embora classicamente colocado entre os teóricos liberais, para muitos é um dos precursores do pensamento socialista.
Em face da importância do direito a igualdade, em oposição à democracia liberal, vários países do antigo regime comunista do leste europeu passaram a chamar-se "democracias populares", muito embora na maior parte destes países os direitos à liberdade e participação políticas estivessem completamente ausentes.
Por fim o outro elemento que envolve o conceito de democracia é a participação dos cidadãos nos negócios públicos. Mesmo após a Europa do século XIX ter sido invadida pelo furacão das idéias iluministas, e muitos governos aristocráticos terem sido derrubados por democracias liberais, a possibilidade de participação política ficou restrita a um pequeno grupo "masculinizado" e rico, capaz de participar em sistemas eleitorais censitários: a burguesia.
As mulheres somente ganharam o direito de voto, efetivamente, no século XX e, antes delas, os trabalhadores. Depois de muitas greves, os últimos conseguiram o direito de voto apenas no final do século XIX ou início do século XX, de acordo com o país. O direito de voto à classe trabalhadoras foi um dos muitos pontos listados na agenda de lutas da classe operária no famoso Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels de 1848, mesmo que este foste apenas uma etapa para que os proletários pudessem construir uma futura sociedade comunista.
Ainda com relação à participação, se na Grécia Antiga estava restrita a uma pequena elite, nas sociedades de massa contemporâneas a participação foi ampliada, mas ficou limitada ao direito de votar e ser votado, mediante o cumprimento de certos requisitos formais, como idade por exemplo. Trata-se de uma democracia meramente representativa onde é dado aos cidadãos o direito constituir o governo, muitas vezes indiretamente [01].
No atual sistema político, as principais deliberações foram levadas para um órgão intermediário, o parlamento. A deliberação coletiva ficou restrita a casos eventuais como referendos, plebiscitos, ou simplesmente em iniciativas de projetos de Lei para serem votados no Parlamento (iniciativa popular). O exercício do direito de participação, portanto, ao contrário de ser exercido diretamente, como ocorria com a elite ateniense, passou a ser exercido de forma indireta, com a limitação da esfera de atuação da grande massa da população.
A perspectiva da democracia como uma forma de auto-governo, ou como uma expressão manifesta da soberania popular, na qual está incluída o republicanismo, entende que o modelo de democracia formal, meramente concorrencial, não seria uma verdadeira democracia. Para o republicanismo, por exemplo, a política constitui-se numa forma de vida da comunidade, sendo o exercício pleno da política algo essencial para a existência de democracia (AVRITZER, 1999).
Esta posição fechada, segundo Avritzer (1999), estabeleceu uma contradição entre a soberania e a institucionalidade democrática, especialmente após o advento da complexificação das sociedades, no período entre-guerras, enfraquecendo o republicanismo frente às críticas das vertentes elitistas. Conforme o professor da Universidade Federal de Minas Gerais,
a concepção republicana de democracia carrega consigo duas contradições que serão exploradas no início do século XX: a contradição entre participação e aumento da complexidade administrativa e a contradição entre participação pública e representação. Na medida em que o republicanismo não aceita a idéia de que o processo de crescente complexificação da sociedade implica repensar o problema da participação, ele acaba tornando-se vulnerável à crítica de que sua concepção de democracia é mais adequada ao mundo antigo. (AVRITZER, 1999, p. 21)
Todavia, Philip Pettit (1999), diferentemente de Avritzer, afirma que
Es, pues, importante observar que, [...] los escritores identificados con la tradición intelectual republicana, consideran que hay que definir la liberdad como una situación que evita los males ligados a la inteferencia, no como acceso a los instrumentos del control democrático, participativos e representativos. El control democrático es ciertamente importante em nesta tradición, pero su importancia le viene, no de sua conexión definicional com la liberdad, si non del hecho de que sea um medio de promover la liberdad. (PETTIT, 1999, p. 50)
A democracia hoje, pelo menos no seu aspecto ordinário de democracia partidária concorrencial, apresenta-se como um "mercado de idéias políticas", onde "os partidos passam a concorrer pelos votos dos eleitores, assim como mercadores em busca de clientes". (MIRANDA, 2005). Tal modelo, caracterizado como schumpeteriano, em homenagem ao economista austríaco Joseph Schumpeter, tem sido objeto constante de críticas, notamente pelos autores que veem na democracia um sistema que exige maior participação.
Entre esses críticos encontra-se Jürgen Habermas (1983), para quem a crença na liberdade política e nas possibilidades de intervenção do cidadão, no sistema democrático do pós-guerra, ficou objetivada ao limites eleitorais, em eleições pré-formadas, quando não manipuladas.
Thomas Villasante (1999), por exemplo, afirma que em muitos países a democracia eleitoral encobre o monopartidarismo ou o bipartidarismo. Já Leonardo Avritzer (1999, p. 18), destaca que "para o elitismo democrático, a manutenção da democracia está diretamente vinculada à restrição da soberania à transferência da racionalidade das elites para o sistema político como um todo".
Por um lado, autores como Fridrich Müller (2000), Boaventura de Souza Santos (1996), Eric Hobsbawn (1998), dentre outros, notam um progressivo desencantamento da população com os resultados de uma democracia cada vez mais distante.
Nesse ponto, é interessante observar a contradição entre a assertiva de Santos, Hobsbawm e Müller, e os primeiros parágrafos deste texto, tendo em vista que, ao mesmo tempo em que é notado um real e progressivo avanço da democracia em escala planetária, é possível perceber, também, um esvaziamento dos processos eleitorais, especialmente naqueles países onde o regime vigora a mais tempo, e onde a democracia estaria mais consolidada (SANTOS, 1996).
Como bem destaca Boaventura de Souza Santos,
sondagens recentes feitos na América Latina revelam que em alguns países a maioria da população preferiria uma ditadura desde que lhe garantisse algum bem-estar social. Acrescente-se que as revelações, cada vez mais freqüentes, de corrupção levam à conclusão que os governantes legitimamente eleitos usam o seu mandato para enriquecer à custa do povo e dos contribuintes. Por sua vez, o desrespeito dos partidos, uma vez eleitos, pelos seus programas eleitorais parece nunca ter sido tão grande. De modo que os cidadãos se sentem cada vez menos representados pelos seus representantes e acham que as decisões mais importantes dos seus governos escapam à sua participação democrática. (SANTOS, 2006)
Alguns fatores podem ser perfilhados como explicação para o esvaziamento da participação eleitoral:
1) A ausência real de participação política da população que se sente alijada das escolhas políticas dos seus representantes, e como uma forma de protesto abandona as eleições;
2) A estruturação do sistema eleitoral, que limitada ao mercado de propostas acaba alienando o eleitor, fazendo com que este passe a ver a política como algo que não faz parte da sua vida diária;
3) A aproximação ideológica dos partidos, na medida em que a luta política passa a ser reduzida a uma esfera de consensos ideológicos, como na proposta da Terceira Via. Nesta situação, o eleitor passa a não ver mais diferença entre os partidos, e a ausência de alternativas induz à apatia política;
4) A burocratização dos partidos de massa, que ao mesmo tempo em que crescem em tamanho acabam reduzindo as decisões a uma pequena elite dirigente, afastando-se das bases;
5) a emergência de novas formas de participação política, que substituem o modelo tradicional eleitoral centralizado na disputa do poder do estado, por sistemas organizativos não centralizados e fragmentários, impulsionados pelo chamado terceiro setor (sociedade civil). Neste último caso é relevante o trabalho de ongs, movimentos sociais e outros grupos de pressão;
6) a real impossibilidade do Estado de dar conta de todas as demandas em face do avanço da globalização, e das reformas liberalizantes (neoliberais) ocorridas após a queda do "Muro de Berlim". A dimensão dos problemas muda de escala, logo o Estado moderno como foi concebido no século XVIII, uma comunidade humana que exerce o monopólio da coerção legítima sobre determinado território, para utilizar o conceito de Weber, estaria superado como instrumento de resolução dos conflitos sociais.
Buscando encontrar soluções, Boaventura de Souza Santos (2006), num artigo chamado "O Futuro da Democracia" destaca a existência de três desafios que estão colocados para a democracia:
a) o primeiro consiste no enfrentamento da desigualdade social;
b) o segundo é o reconhecimento das diversidades culturais nos países, fator que normalmente acaba gerando conflitos em face de imposições monoculturais;
c) e o terceiro é o enfrentamento dos problemas econômicos e militares impostos pelos países dominantes no cenário internacional aos países periféricos, o que acaba determinando a continuidade das desigualdades sociais nos últimos.
Contudo, para atingir aos objetivos traçados por Santos é necessário superar o modelo schumpeteriano de democracia, não apenas no campo teórico, como prático.
O vigor da teoria de Schumpeter, que será analisado no próximo capítulo, fez com que esta se impusesse como ideologia principal dos sistemas democráticos dos países industrializados, no que foram seguidos pela periferia.
Contudo, a crise do Estado de Bem-estar Europeu e as exigências dos novos movimentos sociais com sua busca por maior participação no final da década de sessenta abriram espaço para o questionamento do arcabouço teórico construído pelo economista austríaco.
2. Schumpeter e o Método Democrático
Segundo Mário Grynspan (1999), o elitismo foi uma das várias teorias políticas surgidas no século XIX que
se afirmou como uma crítica às idéias democráticas e socialistas que se difundiam naquele mesmo momento. Em que pese às especificidades dos autores reconhecidos como seus principais formuladores — os italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto —, seu argumento central, apresentado como descoberta científica, era o de que em qualquer sociedade, em qualquer grupo, em qualquer época ou lugar, havia sempre uma minoria, uma elite que, por seus dons, e sua competência e seus recursos, se destacava e detinha o poder, dirigindo a maioria. Esta era uma lei sociológica inexorável, que nem mesmo o mecanismo do sufrágio universal era capaz de romper. Pelo contrário, o que a adoção do sufrágio universal e a crença nos princípios sobre os quais se apoiava — os da igualdade entre os homens e da soberania popular — produziam era a legitimação do mando da minoria, cujos desígnios passavam a ser aceitos como expressão da vontade autônoma das amplas maiorias. (GRYNSPAN, 1999, p. 11-12)
Pois curiosamente, esta será uma das bases de formação da teoria democrática de Joseph Schumpeter, teoria esta que inspirou a maior parte dos sistemas democráticos da segunda metade do século XX.
Nestas teorias, liberdade e concorrência são elementos essenciais à conformação da democracia, mais do que o grau participação política. O que difere a democracia dos demais sistemas políticos, na verdade, é ser comandada por uma elite que não é fechada, mas aberta a um processo de concorrência ao livre voto dos eleitores (GRYNSPAN, 1999, p. 12).
Para Gaetano Mosca, em todas as sociedades, a autoridade exercida em nome do povo, é administrada por uma minoria, uma "elite dirigente", que ele chama de governantes, que são os que participam de forma efetiva do governo, enquanto os subordinados a esta autoridade são chamados de governados (GRYNSPAN, 1999, p. 81).
Já para Pareto qualquer sociedade, mesmo as mais igualitárias, ditas democráticas seriam capazes de produzir uma classe espoliadora (GRYNSPAN, 1999, p. 163). É de Pareto a teoria da "circulação das elites", que pode ser percebida muito claramente na obra de Schumpeter, onde a democracia aparece como "um método de revezamento de elites no poder" (AVRITZER, 1999, p. 27).
Segundo a teoria de Vilfredo Pareto, todas as sociedades seriam formadas por duas grandes classes, a dos leões e a das raposas. Os leões se utilizariam da força e as raposas da inteligência, sendo que as últimas governariam a sociedade. Em certo momento, descontentes com a administração realizada pelas raposas, os leões tomariam o poder pela força, assumindo a condição de governantes. Com o tempo os próprios leões assumiriam uma posição mais cômoda ao se acostumarem com o poder, tornando-se raposas e ficando sujeitos a ação de outros leões que lhos substituiriam posteriormente (GRYNSPAN, 1999).
Para Schumpeter (1984), num sistema democrático, o papel principal do povo é o de produzir o governo e de também desapossá-lo do poder, ou melhor, produzir e desapossar um corpo intermediário, parlamento, que por sua vez produzirá o governo. Ainda segundo ele, "o método democrático é aquele acordo institucional para se chegar a decisões políticas em que os indivíduos adquirem o poder de decisão através de uma luta competitiva pelos votos da população" (Schumpeter, 1984, p. 336).
Sendo assim, o governo democrático é definido pelo "modus procedendi", motivo pelo qual, diferentemente de Tocqueville que se inspirou no modelo republicano das treze colônias americanas, Schumpeter vai utilizar a monarquia inglesa como parâmetro.
Este autor destaca mais algumas características que compõem a sua teoria democrática que, segundo ele, se opõe ao modelo clássico liberal utilitarista. Para Schumpeter, diferentemente da visão liberal, sua proposta estaria baseada na experiência empírica de como a democracias realmente funcionam, desprezando desde o início a existência de uma vontade popular. Conforme destaca Chantal Mouffe (2003), Schumpeter opta por uma análise de descritiva da democracia, em oposição ao modelo liberal normativo.
A primeira característica da teoria schumpeteriana de democracia é o papel central exercido pela liderança na sua conformação. A liderança deve ser aceita pelo parlamento, ou pelos eleitores numa fase preliminar, e esta é responsável pela condução das ações políticas e pela própria formação da vontade dos envolvidos, que acolheriam ou não as propostas apresentadas pela liderança. É através desta liderança que se afirmam os desejos grupais, como melhores salários e melhores condições de trabalho, dentre outras.
Um segundo elemento importante na teoria shumpeteriana é a competição. Esta segundo Joseph Schumpeter é a livre competição pelo voto livre, cuja melhor forma de execução é a adoção do método eleitoral, o qual ele vê como o único disponível para sociedades de qualquer tamanho. Schumpeter afirma que não existe nenhuma sociedade totalmente livre, e que na democracia o que a difere dos demais regimes é o grau de liberdade.
Vimos que o método democrático não garante, necessariamente uma liberdade maior que outro método em circunstâncias similares. Pode muito bem ocorrer o contrário [grifos nossos]. Mesmo assim, porém, persiste uma relação entre dois. Se ao menos, em princípio, todos forem livre para competir pela liderança política apresentando-se ao eleitorado, isso, na maioria dos casos (embora não em todos), significará considerável grau de liberdade de discussão para todos. Em particular significará considerável grau de liberdade de imprensa. Essa relação entre democracia e liberdade não é absolutamente precisa, é pode ser falsificada. Mas do ponto de vista do intelectual é, apesar de tudo, muito importante. Ao mesmo tempo, é só isso que há nessa relação. (SCHUMPETER, 1984, p. 339)
Por fim, Schumpeter destaca a preferência pelo voto majoritário ante ao voto proporcional, já que, para ele, num sistema de voto proporcional, havendo instabilidade política, a minoria no parlamento pode aproveitar-se do momento para desestruturar o governo e tomar o poder. Assim, ele demonstra outras de preocupações, que é a estabilidade do regime.
Uma característica evidente na teoria de Schumpeter é que o afastamento de uma participação popular mais ampla não aparece como um problema, mas como um fator de estabilização da democracia. Como bem destaca Chantal Mouffe, na teoria schumpeteriana de democracia,
La participación popular en la toma de decisiones debería más bien desincentivarse, pues sólo podria tener consecuencias disfuncionales para la marcha del sistema. La estabilidad y el orden era más probable que resultaran del compromiso entre los intereses que de un consenso ilusorio sobre el bien comun. Como consequencia de ello, la política democrática quedó separada de sua dimensión normativa e empezó a considerarse desde un ponto de vista puramente instrumental. (Mouffe, 2003, p. 97)
Schumpeter era extremamente cético em relação à participação das massas. Inspirado na psicologia das massas de Gustave Le Bon, ele acreditava que os indivíduos são facilmente manipuláveis, cedendo a impulsos racionais e extra-racionais, e agindo de forma infantil ao tomar decisões (SANTOS e AVRITZER, 2005).
Leonardo Avritzer (1999, p. 27), ressalta que o surpreendente na teoria de Schumpeter não são seus argumentos, mas a possibilidade de tornar tais argumentos compatíveis com a prática democrática, através da redução da soberania à uma competição entre elites, promovendo o afastanmento das massas.
Luís Felipe Miguel (2002) caracteriza o modelo democrático do pós-guerra, inspirado no pensamento de Schumpeter e de seus seguidores, de "democracia domesticada". Segundo este autor, o objetivo principal desta teoria consistia em neutralizar a ação daqueles que reivindicam um sistema mais participativo e igualitário, especialmente as classes populares. Para Miguel, ao adotar os pressupostos teóricos do elitismo, a teoria schumpeteriana esvaziou a democracia da sua dimensão mais significativa.
O principal ideal da democracia, a autonomia popular, entendida no sentido preciso da palavra, a produção das próprias regras, foi descartado como quimérico. No lugar da idéia de poder do povo, colocou-se o dogma elitista de que o governo é uma atividade de minorias. A descrença na igualdade que, tradicionalmente, era vista como um quase-sinônimo da democracia, levou, como corolário natural, ao fim do preceito do rodízio entre governantes e governados.(MIGUEL, 2002, p. 505)
Jurgen Habermas, por sua vez, destaca que nesta construção teórica
o povo, no plano jurídico, continua sendo soberano e, no plano político, para suas decisões, tem à sua disposição no Parlamento uma instituição provida constitucionalmente de todos os poderes desejáveis, visto sob um prisma democrático. Por isso coloca-se a questão de se a participação dos cidadãos na vida política pode ter ainda hoje uma verdadeira função, por mais que já não a tenha no presente momento.(HABERMAS, 1983, p. 386)
Contudo Habermas afirma que a teoria de Schumpeter
esquece-se quase por completo a idéia da soberania popular. Não se leva em consideração que a democracia trabalha a favor da autodeterminação da humanidade e que, nesse sentido, participação política e autodeterminação coincidem. O importante, portanto, é saber se a participação política promove ou não o desenvolvimento de tendências democráticas. Deve-se considerar que a participação política, além de ser um produto, é também um elemento propulsionante do difícil e incerto caminho da humanidade em direção à sua própria emancipação. Com isto, evita-se o perigo de tratá-la como um fator que, ao lado de outros, garante o equilíbrio do sistema, e de reduzir a democracia a simples regras de um jogo." (HABERMAS, 1983, p. 376)
Com o advento dos movimentos sociais da década de sessenta, especialmente ambientalistas, feministas, pacifistas e por direitos civis, que exigiam, entre outras coisas, maior participação política, a democracia ganha novos contornos e o modelo schumpeteriano assentado na estrutura governamental do Estado começa a perder espaço.
A sociedade e os movimentos sociais passam a organizar-se de forma transnacional, e os limites de representação, que continuaram presos ao estado nação, perdem credibilidade. Surge uma maior exigência por transparência nas decisões, na medida em que a pura e simples decisão governamental, de lançar uma bomba ou declarar guerra, são passíveis de questionamentos. As próprias políticas públicas do estado deixam de ser trabalhadas apenas na esfera administrativa, e são discutidas naquilo que Habermas (1997) chama de esfera pública, um espaço público de ação política, mas não estatal, onde os diversos atores da sociedade, num jogo de debates e influências, interferem na escolha das melhores alternativas.
Para Avritzer (1999), o conceito de esfera pública permite uma renovação da teoria política no século XX, admitindo a possibilidade de uma relação crítico-argumentativa com a política, ao invés de uma relação de participação direta como é defendido pelo republicanismo.