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Arbitragem: constitucionalidade da Lei de Arbitragem brasileira.

Algumas considerações

09/06/2011 às 15:21
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Com a introdução, na Lei nº 9.307/96, da execução compulsória da cláusula arbitral, da dispensa da homologação por juiz togado da decisão do árbitro e a irrecorribilidade da sentença arbitral, antes inexistentes no ordenamento jurídico brasileiro, foi reacendida a antiga discussão quanto à constitucionalidade da arbitragem.

Os opositores à Lei de Arbitragem alegam que essa fere princípios constitucionais como o da inafastabilidade do controle judicial (CF art. 5º, LV), da garantia do devido processo legal (CF art. 5º, LVI), da ampla defesa e da dupla instância de julgamento (CF art. 5º, LV), do juiz natural (CF art. 5º, LIII), além de ferir o princípio que impossibilita a criação de juízo ou tribunal de exceção (CF art. 5º, XXXVII). A constitucionalidade da nova Lei de Arbitragem, contudo, há que ser depreendida da correta leitura da referida Lei, bem como da Constituição da República.

Esclareça-se, inicialmente, que o Juízo arbitral, mesmo da forma como era antes tratado nos Códigos Civil e de processo Civil, já configurava uma justiça ou uma jurisdição privada, não sendo pelo advento da Lei nº 9.307/96 que a arbitragem passaria a desrespeitar o princípio do controle judicial dos atos ameaçadores ou lesionadores de direito contido no art. 5º, inc. XXXV.

Além disso, é de se dimensionar que o nosso sistema jurídico admite outras formas de composição de conflitos fora da jurisdição estatal como, por exemplo, a transação, figura jurídica próxima do juízo arbitral como meio legal posto à disposição dos contendores para a solução de suas pendências - e ninguém pretende defender que a transação desrespeita o princípio antes mencionado. Com a instauração do juízo arbitral, pela celebração da convenção de arbitragem, acertada anteriormente pela cláusula arbitral ou, posteriormente, pelo compromisso arbitral, o que fazem as partes é transferir a jurisdição para um destinatário privado.

O ato de escolha de um árbitro, dessa feita, não significa renúncia ao direito de ação, mas sim um livre ajuste da forma pela qual as partes se comprometem a solucionar uma lide. As partes, da mesma forma que convencionam para gerar, entre si, obrigações, convencionam, outrossim, para eleger a forma de solução das controvérsias oriundas das obrigações avençadas. Por essa razão é que se entende que a instituição do juízo arbitral, mesmo com as novidades acima elencadas, não constitui ofensa a qualquer princípio constitucional. Pela arbitragem, não se nega o acesso do cidadão ao Judiciário, mas sim apenas se permite que ele, titular de um direito material, decida sobre a forma de solucionar a questão em torno desse direito disponível: se por meio da jurisdição estatal ou se através de uma jurisdição privada.

Da leitura da Lei, observa-se que sempre quando houver lesão ou ameaça de direito patrimonial e a parte afetada não aceitar a arbitragem, restará aberta a possibilidade de se requerer a tutela estatal, ou seja, de acionar o Poder Judiciário, a quem cabe decidir a respeito da instituição da arbitragem na hipótese de resistência de uma das partes signatárias da cláusula compromissória. Ao judiciário caberá, também, (a) decidir questões que versem sobre direitos indisponíveis; (b) declarar a nulidade da sentença arbitral; (c) homologar a sentença arbitral estrangeira; (d) assegurar a execução coativa da decisão arbitral; (e) e efetivar eventual medida cautelar deferida pelo árbitro. Dessa forma, não há como se alegar que a Lei de Arbitragem exclui da apreciação estatal eventuais lesões ou ameaças de direito.

Não merece prosperar, outrossim, a argumentação de que a arbitragem ofende os princípios da ampla defesa e da dupla instância de julgamento, ambos assegurados pelos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição da República.

No que tange à alegada ofensa ao princípio da ampla defesa, é importante ressaltar que o procedimento arbitral organiza sua atividade instrutória tendo como requisitos mínimos, conforme disciplinado pelo § 2º do art. 21 da nova Lei de arbitragem, os princípios do contraditório e da igualdade de tratamento a ser dispensado às partes. Ou seja, os princípios sobre os quais se alicerça o Poder Judiciário na prestação jurisdicional são os mesmos que deverão nortear a conduta do juiz arbitral, ao menos no que diz respeito à proteção do direito à ampla defesa. Não há que se pensar, dessa feita, que a arbitragem ofende o princípio da ampla defesa.

Da mesma forma, o princípio da dupla instância de julgamento não restará prejudicado em razão do juízo arbitral, já que o art. 33 da lei nº 9.307/96 permite à parte interessada pleitear ao Poder Judiciário a decretação de nulidade da sentença arbitral. Esclareça-se, nesse ponto, que a arbitragem é uma opção, uma faculdade das partes de se decidirem pela utilização de um meio de solução de controvérsias baseado na confiança. Dessa feita, ir contra a decisão do árbitro, o qual solucionou a controvérsia baseado em regras convencionadas pelas partes, seria ir contra os princípios básicos do próprio instituto - daí se justifica a não existência de recurso ou homologação ao laudo, sempre lembrando que esse poderá ser decretado nulo pelo Poder Judiciário.

Arbitragem não atenta, outrossim, contra o princípio do juiz natural e contra o princípio que impede a criação de juízo ou tribunal de exceção. Isso porque o princípio do juiz natural se refere apenas e tão somente à jurisdição estatal, a qual, lembre-se, é uma das expressões de soberania do Estado. A jurisdição, poder estatal, é, em si, abstrata - o poder é uno e indivisível -, mas tem sua extensão delimitada pela atribuição de competência, aos órgãos jurisdicionais, para julgar demandas de determinada natureza ou que versem sobre litígio ocorrido em determinado local.

O exercício de jurisdição, assim, realiza-se por meio de órgãos jurisdicionais aos quais é atribuída competência para julgar demandas de determinada natureza ou que versem sobre litígio ocorrido em determinado local. Tais órgãos, para que possam prestar o serviço jurisdicional, são compostos por pessoas que são investidas do poder jurisdicional. Assim, quando determinada demanda é submetida ao Poder Judiciário e seu julgamento é atribuído a um determinado juiz em razão de sua competência, a ele se atribui a denominação de juiz natural e não se permite, em princípio, que seja afastado da condução e julgamento do processo. O princípio do juiz natural refere-se, destarte, à jurisdição estatal, não sendo correto aplicá-lo ao juízo arbitral.

E por essa mesma razão é que não se pode alegar que, pela instauração do juízo arbitral, estar-se-ia criando algo como um tribunal de exceção. A arbitragem, como visto, é uma opção convencional e subsidiária de jurisdição, sendo certo que a Constituição da República permite a existência de meios alternativos de soluções de controvérsias. O que ela não permite é que o poder jurisdicional seja atribuído a tribunais criados em caráter temporário, excepcional, que justamente têm essa característica por não desfrutarem de legitimidade constitucional suficiente para a sua sustentação, uma vez que instituídos sem observância aos princípios de igualdade, da legalidade, da imparcialidade do juiz, do direito de defesa, do contraditório, e, de todos os demais relacionados ao devido processo legal.

A arbitragem, ante o exposto, não pode ser considerada ofensiva aos princípios constitucionais da inafastabilidade do controle judicial, da garantia do devido processo legal, da ampla defesa e da dupla instância de julgamento, do juiz natural e da impossibilidade de criação de juízo ou tribunal de exceção. A arbitragem é constitucional, sendo que tal entendimento já foi, inclusive, consolidado no Supremo Tribunal Federal. A constitucionalidade da Lei de Arbitragem foi alvo de discussões desde a sua entrada em vigor, em 23/09/96. Entretanto, com o julgamento proferido em 13/12/2001, pelo Plenário do supremo Tribunal Federal no recurso interposto em processo de homologação de Sentença Arbitral Estrangeira, caso paradigmático sobre a matéria, que tramitava desde 1995 (Agr. Regimental de no. 5206-8/246), a polêmica chegou ao fim.

Tratava-se de ação movida por empresa estrangeira pela qual se objetivava a homologação de sentença arbitral oriunda da Espanha para que produzisse efeitos no Brasil. Durante o julgamento do recurso, o Exmo. Ministro Relator Sepúlveda Pertence reconheceu, de ofício, a constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei de Arbitragem, dentre eles, o que dispõe sobre a validade do compromisso arbitral, porém levantou dúvidas a respeito da constitucionalidade de outros, especificamente no que se refere ao parágrafo único do artigo 6º e ao artigo 7º.

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Entendeu o Ministro que, havendo recusa de uma das partes a submeter um litígio ao procedimento arbitral ou insuficiência da manifestação da vontade da vontade das partes na cláusula compromissória, a permissão dada ao juiz estatal para firmar compulsoriamente o compromisso, substituindo a vontade da parte resistente afrontaria a garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, assegurado pelo artigo 5º, XXXV, da CF/88. Apenas os Exmos. Ministros Sydney Sanches, Neri da Silveira e Moreira Alves acompanharam o entendimento do Ministro relator.

O Ministério Público Federal, contrariamente a esse entendimento, opinou favoravelmente à constitucionalidade da Lei e ao provimento do agravo regimental. A respeito do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, consta do parecer do Procurador Geraldo Brindeiro, que tal princípio "não determina que os interessados devem sempre levar ao judiciário suas demandas. Se se admite como lícita a transação relativamente a direitos substanciais objeto da lide, não se pode considerar violência à Constituição abdicar do direito constitucional de ação através de cláusula compromissória. E, em se tratando de direitos patrimoniais disponíveis, não somente é lícito e constitucional, mas é também recomendável aos interessados - diante do acúmulo de processos e do formalismo excessivo que tem gerado a lentidão das demandas judiciais - abdicarem do direito e do poder de ação e buscarem a composição do conflito por meio de sentença arbitral cujos efeitos sejam idênticos àqueles das decisões prolatadas pelo Poder Judiciário".

O Exmo. Ministro Carlos Velloso, em seu volto, ressaltou que as partes têm a faculdade de renunciar ao direito de recorrer à Justiça e que o "o inciso XXXV representa um direito à ação e não um dever". Com efeito, como já foi dito anteriormente, a arbitragem é uma opção oferecida às partes de buscarem uma forma alternativa de solução de controvérsias, entrementes, o Poder Judiciário permanece em vigilância, funcionando como guardião da observância do devido processo legal e como agente das atividades coercitivas, executórias e anulatórias das decisões arbitrais, sempre que necessário.

O Exmo. Ministro Marco Aurélio Mello, da mesma forma, pronunciou-se favoravelmente à constitucionalidade dos artigos, enfatizando que "o legislador foi cuidadoso, não barrou o acesso ao judiciário quando os conflitos envolvem direitos indisponíveis. Os dois artigos não impedem isso, ao contrário, consagram a liberdade e o princípio da vontade do cidadão garantidos na Constituição". A Ministra Ellen Gracie, em relação aos artigos cuja inconstitucionalidade foi arguida, afirmou, adotando a posição que se tornou majoritária no Supremo Tribunal Federal, que não via "renúncia à tutela judicial neles, mas uma mudança no foco e na ocasião em que se dará o apelo ao judiciário. O cidadão pode invocar o Judiciário para solucionar os conflitos, mas não está proibido de acessar outros meios". Após o julgamento do recurso, encerraram-se definitivamente as discussões a respeito da constitucionalidade da Lei de Arbitragem.

Ao menos no plano jurídico-normativo, como verificado, os obstáculos que se apresentavam à inserção da prática arbitral no Brasil foram afastados. Mas, como é cediço, a viabilização prática da arbitragem não depende apenas do plano normativo; depende, sobretudo, da correta interpretação que se fará dos dispositivos legais e sua consequente aplicação. Dependerá, ainda, da superação de empecilhos de ordem prática como, por exemplo, o alto custo que hoje uma arbitragem representa.

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Sobre a autora
Fernanda Estevão Picorelli

Pós-graduada em Direito Civil - UNESA. Pós-graduada em Poder Judiciário (MBA) - FGV Analista Judiciário - Justiça Federal de Primeira Instância -Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PICORELLI, Fernanda Estevão. Arbitragem: constitucionalidade da Lei de Arbitragem brasileira.: Algumas considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2899, 9 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19295. Acesso em: 18 abr. 2024.

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