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A auditoria governamental como instrumento de promoção da transparência

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O presente artigo pretende analisar as possibilidades e os ganhos na utilização da auditoria governamental como uma ferramenta de avaliação e melhoria gerencial dos processos de transparência da gestão pública.

A abordagem desse tema pode se dar de duas maneiras: a primeira, relacionando a divulgação dos resultados obtidos nos trabalhos de auditoria para o público, como um processo de transparência administrativa, na busca de melhorar a accountability dos órgãos públicos. O segundo, que será a linha temática adotada, procura utilizar a avaliação de processos por meio de uma auditoria como um auxiliar na aferição da transparência e de produção de recomendações gerenciais, que possibilitem o aprimoramento desse processo na gestão.

Assim, a questão principal desse trabalho é: de que forma a auditoria pode auxiliar na promoção da transparência da gestão pública. As análises para se responder a essa questão central serão oriundas da revisão bibliográfica sobre o tema, de forma a encontrar nos autores e na legislação, indicações que possibilitem ilustrar o tema e que sirvam de base, dado o escopo limitado, para outros estudos, com interações no campo de pesquisa, de forma a efetuar os aprofundamentos necessários.


1.O que é transparência?

O presente tópico busca analisar as definições de transparência na literatura e evidenciar o seu caráter processual e gradativo, o que permite a sua relação com a utilização da auditoria como mecanismo de avaliação.

A transparência é um tema que se tornou vulgarizado no Brasil por dois fatores históricos, complementares e concomitantes. Os cidadãos demandam, em um contexto democrático, acesso à informação, conhecimento da atuação do Estado e do destino eficiente de seus tributos. Da mesma forma, o fim do regime de exceção do governo militar inaugurou uma nova etapa de aprendizado democrático para a sociedade brasileira, - com o fortalecimento das instâncias de participação popular e das atuações sistemáticas e pontuais dos cidadãos e da imprensa, no acompanhamento da coisa pública.

Nessa mesma conjuntura, o avanço tecnológico permitiu que as distâncias se encurtassem e que fosse possível, apenas com o manuseio de teclado, acessar de nossa residência informações diversas sobre pessoas e organizações de todo o mundo, inclusive sobre a atuação do Estado na prestação de serviços públicos.

Essa conjunção de fatores, que catalizou a nossa sociedade da década de 1990 até os dias atuais (2011), materializou-se em normas, procedimentos e movimentos de grupos organizados, dentro e fora dos governos, na construção de uma gestão transparente, em um processo considerado sem volta.

Nesse sentido, pode-se definir transparência da gestão como a atuação do órgão público no sentido de tornar sua conduta cotidiana - e os dados dela decorrentes- acessível ao público em geral. Essa definição suplanta o conceito de publicidade previsto na Constituição Federal de 1988, pois a publicidade é uma questão passiva, de publicação de determinadas informações como requisito de eficácia. A transparência vai mais além, pois detém-se na garantia do acesso às informações de forma global, não somente àquelas que se deseja apresentar.

A transparência não é um fim em si mesmo, e sim um instrumento auxiliar da população para o acompanhamento da gestão pública (HAGE, 2010). Ela permite que a gestão seja cotejada e avaliada cotidianamente e possui um caráter preventivo, inibindo situações de desvio e malversação de recursos. A falta de transparência na gestão é um forte indicativo de práticas comprometedoras (TREVISAN et alli, 2003). Sem transparência, o controle social caminha às escuras e o próprio governante pode deixar de captar situações indesejáveis na máquina estatal por ele comandada.

O que caracteriza a transparência é o seu aspecto proativo, ou seja, de não existir, via de regra, a necessidade de o cidadão buscar informações via requerimento. Essa postura proativa traz benefícios aos governos, pois melhora o fluxo das informações gerenciais com os cidadãos, contribuindo para a eficiência da ação governamental (DARBISHIRE, 2009), fortalecendo a governança e a materialização dos direitos sociais à população.

Esse novo cenário demanda muitos estudos, pois o quadro que temos é o de que:

(...) de fato, com as tecnologias, a sociedade capitalista tornou-se muito mais dinâmica, complexa e, de algum modo, as ações humanas agora estão cercadas de instrumentos reais que possibilitam transparência e controle fiscal e social. Dessa maneira, a presença do Poder Público em quase todas as nossas ações diárias levou a um estreitamento da distância entre o cidadão e o Estado, em parte pela transparência, pelos mecanismos de controle e, em outra parte, pelas ações e reações dos sujeitos, ao reinvidicarem como seus os direitos sociais (SILVA, 2010, p. 14).

Entretanto, assim como a globalização carrega em si uma visão mítica de homogeneização, a transparência da gestão e a possibilidade de participação pelo universo digital atrelam a si também esse papel de panaceia solucionadora de todas as questões e contradições inerentes à participação popular nas políticas sociais. Isso se dá pelo fato de vivermos em um momento de mistificação da tecnologia, pois:

O universalismo é um valor, a globalização e a mundialização são realidade. Internet, rede mundial e global não são, contrariamente ao discurso dominante, a encarnação da referência universalista da comunicação. È simplesmente uma rede técnica que se inscreve numa economia global indiferente às fronteiras. Assim como a CNN não é a "primeira rede de informação mundial", mas simplesmente uma rede americana de notícias, cujo ponto de vista sobre a informação mundial é, acima de tudo, um ponto de vista americano (WOLTON, 2004. p. 69).

Essa disponibilização de dados, bem como os mecanismos de denúncia, também seguem essa lógica de poder, convidando-nos muito a observar e pouco a agir. "Observar não é agir. Se não, não haveria diferença entre jornalistas e homens políticos (WOLTON, 2004, p.78)". A dimensão digital da participação não pode desprezar a sua dimensão política, verificando no plano concreto a realidade apresentada no plano virtual.

A tecnologia fetichizada, que suporta os mecanismos de transparência dos órgãos públicos empresta a eles o caráter de absolutismo, de acesso irrestrito a tudo e a todos, ignorando o aspecto político envolvido nessa questão. Podemos, dessa forma, dizer que a transparência tem um caráter processual, de construção, que envolve, dentro da teoria clássica da comunicação [01], um emissor, um receptor, o meio e a mensagem. A transparência é um processo comunicativo.

Cabe registrar que esse receptor nem sempre é identificado, sendo por vezes idealizado, na construção do público que se espera daquela informação. Parafraseando a língua portuguesa, a transparência pode ser uma oração de sujeito oculto ou indeterminado. Mas, esse sujeito destinatário das informações, via de regra existe, em um momento presente ou futuro.

Em termos legais, a alteração na Lei de Responsabilidade Fiscal pela Lei Capiberibe, a Lei Complementar nº 131/2009, propiciou o respaldo à transparência na Administração Pública, corrigindo essa lacuna na Carta Magna de 1988, quando tratou, na Seção I do Capítulo IX, da "Transparência da gestão fiscal":

Art. 48.São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.

Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante:

I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos;

II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público;

III – adoção de sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade estabelecido pelo Poder Executivo da União e ao disposto no art. 48-A.

Art. 48-A. Para os fins a que se refere o inciso II do parágrafo único do art. 48, os entes da Federação disponibilizarão a qualquer pessoa física ou jurídica o acesso a informações referentes a:

I – quanto à despesa: todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, no momento de sua realização, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado;

II – quanto à receita: o lançamento e o recebimento de toda a receita das unidades gestoras, inclusive referente a recursos extraordinários.

De modo a definir claramente como deve se dar essa transparência, no âmbito governamental, dando concretude a essa questão, ainda que a lei citada careça de parâmetros escalonados, tratando ainda a questão da transparência de forma absoluta.

A transparência, em muitos fóruns de discussão, termina por ser tratada como uma questão imaterial, abstrata. A proposição desse trabalho aponta uma transparência concreta, processual, escalonada e medida; que se apresenta em atitudes determinadas da gestão.

Outro normativo importante para a transparência foi o projeto de lei sobre acesso a informação (PLC nº 41/2010). O Governo Federal, na gestão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, enviou ao congresso essa proposição de legislação e são dignos de destaque os seguintes trechos desse projeto de Lei que falam diretamente sobre o conceito de transparência:

Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei se destinam a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:

(...)

IV – fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;

Art. 5º É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão

Art. 6º Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a:

I - gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação;

Art. 41. O Poder Executivo federal designará órgão da administração pública federal responsável:

I – pela promoção de campanha de abrangência nacional de fomento à cultura da transparência na administração pública e conscientização do direito fundamental de acesso à informação;

II – pelo treinamento de agentes públicos no que se refere ao desenvolvimento de práticas relacionadas à transparência na administração pública.

A questão da transparência mais uma vez toma força nos normativos legais, ligada ao aspecto processual, envolvendo, inclusive o fomento a uma cultura de transparência e o fornecimento de dados em uma linguagem acessível, sem barreiras técnicas. A transparência, assim, rompe com os liames da questão orçamentária-financeira e passa a incorporar a gestão pública de forma global, envolvendo processos administrativos, a gestão de pessoal e, de documentos a eficácia e a eficiência no atingimento das metas pelos órgãos públicos.

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O processo de transparência é uma relação comunicativa entre cidadãos e governos, em que pela clássica teoria da Agência (SLOMSKI, 2009), em uma visão contratualista de Estado, os governos (Agente), por pressão da população (principal), desenvolvem mecanismos de transparência, de modo a mitigar a assimetria informacional entre eles, no processo de delegação de poderes dos cidadãos ao Estado. Explica melhor essa teoria o autor no trecho:

Assim como nas empresas privadas, não é possível monitorar todas as ações dos servidores públicos, pois o agente (gestor eleito-prefeito, no município) possui muito mais informações sobre a entidade que dirige do que o principal (cidadão). Gera-se, assim, assimetria informacional externa, dado que o cidadão não sabe, com certeza, se o agente está maximizando o retorno de seu capital na produção de bens e serviços como ele desejaria. Por outro lado, existe também a assimetria interna, haja vista que os servidores públicos, na qualidade de agentes, possuem mais informações sobre suas áreas de atuação do que o gestor eleito, na condição de principal. Dessa maneira, o prefeito (Agente de 1º estágio) não tem informações suficientes para saber com exatidão se todos os componentes da cadeia agente-prinicipal, nos mais diversos estágios, estão seguindo as suas diretrizes, a fim de alcançar a maximização do que ele deseja para prestar contas ao cidadão (principal). (SLOMSKI, 2009, p. 33).

Nessa modelagem está embutida a ideia de que governo patrocina as avaliações de transparência de seus subordinados, como instrumento de controle e de governança, o que inclui a transparência como elemento de fortalecimento do controle primário da gestão (BRAGA, 2010). A transparência tem várias dimensões: política, social, gerencial e comunicativa.

Esse jogo de busca pela informação e, de garantia de atuação do agente em pról do principal, necessita de uma estrutura de transparência concreta, sedimentada, para mitigar as lacunas informacionais, como demanda do jogo democrático em uma sociedade de alto grau de tecnologização.

A questão da transparência reclama estudos mais detalhados. Reportagem do Jornal Valor Econômico de 12 de abril de 2011 (BASILE; LYRA, 2011) indica que o Brasil vai liderar uma estratégia internacional de transparência, envolvendo metas a serem cumpridas pelos países signatários. Essas metas, em um total de dezesseis, são definidas a partir de quatro critérios: transparência e democratização financeira; abertura das informações patrimoniais de agentes políticos; acesso a informações pelo público e participação dos cidadãos no acompanhamento e controle das contas do governo. Elas constituem quesitos, eixos de avaliação do grau de transparência daqueles países, definindo de forma objetiva o que é ser um governo aberto ou não.

Da mesma forma, estudos de Cappelli, Leite e Araújo (2010) apresentam que o avanço da transparência no campo normativo demanda modelos que permitam a verificação desse grau de transparência, indicando características que devem estar presentes em uma organização para que esta seja considerada transparente, em um determinado nível.

Esses princípios organizam-se, segundo os autores (2010), na forma de estágios, em um modelo misto de progressão em linha, mas em que a o estágio avança como um todo, definidos como "degraus de transparência", uma taxonomia desses princípios. Esses degraus são:

• DEGRAU 1 – Acessibilidade

A transparência é realizada através da capacidade de acesso. Esta capacidade é identificada através da aferição de práticas que efetivam características de portabilidade, disponibilidade e publicidade na organização.

• DEGRAU 2 – Usabilidade

A transparência é realizada através das facilidades de uso. Esta capacidade é identificada através da aferição de práticas que efetivam características de uniformidade, simplicidade, operabilidade, intuitividade, desempenho, adaptabilidade e amigabilidade na organização.

• DEGRAU 3 – Informativo

A transparência é realizada através da qualidade da informação. Esta capacidade é identificada através da aferição de práticas que efetivam características de clareza, completeza, corretude, atualidade, comparabilidade, consistência, integridade e acurácia na organização.

• DEGRAU 4 – Entendimento

A transparência é realizada através do entendimento. Esta capacidade é identificada através da aferição de práticas que efetivam características de concisão, compositividade, divisibilidade, detalhamento e dependência na organização.

• DEGRAU 5 - Auditabilidade

A transparência é realizada através da auditabilidade. Esta capacidade é identificada através da aferição de práticas que efetivam características de validade, controlabilidade, verificabilidade, rastreabilidade e explicação na organização ( CAPPELLI; LEITE; ARAÚJO, 2010, p. 101-102).

Esses degraus apresentam um modelo objetivo de quesitos para avaliação do nível de transparência, a exemplo do padrão que existe para os critérios internacionais (BASILE; LYRA, 2011) reportados anteriormente.

O simples fato de tornar os dados disponíveis não faz de uma organização transparente. Esse processo envolve quesitos, que se relacionam as várias dimensões do ato comunicativo. Existem questões que envolvem o preparo e a qualificação do receptor, a forma de disponibilização dos dados pelo emissor, entre outras. Cabe avançar para classificações das organizações e para a promoção da transparência em critérios objetivos.

Essas questões fundamentais para a materialização da transparência convivem com o mundo concreto da gestão e demandam instrumentos de avaliação sistemática, que permitam ao governante aferir o andamento da transparência como valor na sua gestão e que possibilitem a emissão de recomendações gerenciais para a correção de rumo, no sentido do órgão avançar nos estágios de transparência.

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Sobre o autor
Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Analista de Finanças e Controle (CGU-PR). Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em Ciências Navais com Habilitação em Administração (Escola Naval).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Marcus Vinicius Azevedo. A auditoria governamental como instrumento de promoção da transparência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2900, 10 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19318. Acesso em: 24 abr. 2024.

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