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Análise jurídica dos efeitos decorrentes da implementação do Acordo da Basiléia II

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19/06/2011 às 07:59
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V.Os contratos de financiamento e o acordo da Basiléia II

Expostas em breves linhas características dos contratos de financiamento, há que se cumprir a proposta do presente trabalho: efetuar uma análise jurídica dos contratos de financiamento, considerando a implementação das regras do novo acordo da Basiléia.

Para tanto, dois pontos principais do acordo serão abordados: (i) o mecanismo privado de classificação dos riscos e o agravamento nas condições de desconfiança, intensificando a volatilidade do capital e os possíveis movimentos de fuga de capital em momentos de crises de confiança; e (ii) as dificuldades que surgirão de acesso ao mercado internacional de crédito.

V.1.O mecanismo privado de classificação de riscos e a limitação da liberdade individual

Como visto, nos termos da Basiléia II, o controle da classificação dos riscos deve ser efetuado, essencialmente, pelas próprias instituições ou por agências de rating externas. Inicialmente, como somente os grandes bancos terão condições de implementar a classificação interna, dever-se-á fazer o uso das classificações externas. Assim, a idéia é a de que, a longo prazo, a avaliação dos riscos das instituições financeiras seja apenas privada; enquanto não consolidada a estrutura necessária em todos os bancos, agências externas de rating deverão avaliar os riscos, sendo que seus critérios devem ser aprovados pela autoridade monetária.

Daí vê-se o claro propósito neoliberal dos princípios da Basiléia, que advogam a existência de um Estado regulador mínimo, e até inexistente com a concretização de suas metas, no que tange à avaliação dos riscos das instituições bancárias.

Para o presente estudo é importante observar que a classificação do risco a que está sujeita uma instituição financeira ou um país (risco soberano) tem influência direta na fixação das taxas de juros. A lógica é simples: bons devedores (= baixo risco de inadimplência) pagam baixos juros e os devedores em que não se tem muita confiança pagam juros altos, já que devem oferecer alguma vantagem para que os investidores arrisquem (grandes ganhos, em geral, decorrem de grandes riscos).

Assim, as próprias instituições bancárias e agências de rating de qualquer nacionalidade avaliarão o grau de endividamento das instituições financeiras e dos países e, daí, será fixado o capital mínimo necessário para assegurar a sua saúde financeira (no caso dos bancos) e será fixada e a taxa de juros para o empréstimo.

É de clareza solar que a avaliação privada dos riscos das instituições financeiras subtrai parte da soberania estatal, pois alija o Estado desse importante processo que contribui para a fixação dos juros dos financiamentos. Como conseqüência disso, pode-se chegar ao ponto em que uma alteração da avaliação das agências de rating ocasione uma súbita e substancial elevação nos juros de um contrato (cláusula monetária), mas o Estado não tenha poderes para determinar o conteúdo do segmento de interesse público dessa cláusula se a agência responsável pela nova avaliação for estrangeira.

A classificação privada dos riscos também apresenta, em si, um grande risco sobre a relevância econômica dos contratos, pois, como já apontado, muitas vezes a atuação das agências têm o condão de criar as "profecias auto-executáveis" e propagar crises de desconfiança. Ao agravar a crise, as agências acarretam a fuga de capitais dos países periféricos, causando grandes e súbitas mudanças nas taxas de câmbio e de juros, o que afeta diretamente toda a rede de contratos de um país. Frise-se que esse movimento de propagação de crise, na maioria das vezes, não leva em consideração a economia real de um país, o substrato social em que se firmam as relações econômicas — há apenas um "boato" com grande capacidade de causar prejuízos.

Novamente tomando o entendimento de Keynes sobre o funcionamento da economia, vê-se a extrema importância da taxa de juros na fixação do volume de emprego em uma dada economia. Isso porque os produtores (de bens ou serviços) fazem novos investimentos e determinam o volume da produção de bens tendo em vista a eficiência marginal do capital, comparado à taxa de juros. Assim, se a perspectiva dos empresários é a de que as taxas subirão (ou se esse é o sinal dado pelas agências de rating, numa perspectiva atual da concepção keynesiana), pode até haver um aumento da produção no presente, mas a expectativa futura, que é a que determina o volume da produção e a quantidade de mão-de-obra empregada, será desfavorável. Novamente, fica evidente o prejuízo decorrente da perda do poder estatal para modelar os interesses econômicos em busca da concretização dos princípios constitucionais, como o da busca do pleno emprego.

Nesse caso, de nada adianta um cidadão escolher esse ou aquele governo se a sua influência na fixação da taxa de juros é ínfima e sua capacidade de intervir (ainda que indiretamente) na economia também o é. É aí que reside a limitação da liberdade individual ocasionada pela adoção das regras da Basiléia: retira-se do cidadão a sua capacidade de, por meio do processo democrático, alterar a ordem social, na medida em que o governante por ele escolhido nada poderá fazer diante da existência de um sistema privado de fortíssima influência na fixação da taxa de juros; resta enfraquecido o poder de inverter hierarquia do cidadão, ao mesmo tempo em que é fortalecido o poder dos entes privados.

A adoção das regras da Basiléia II, de fato, integram o País com mais eficácia no mercado financeiro internacional, pois, na visão de seus idealizadores, estar-se-ia adotando regras que são as próprias regras do mercado, afastando a condição de o regulador estar sempre "correndo atrás" das novidades criadas pelo mercado para burlar as regras impostas [18].

Como bem aponta Bercovici, "a questão é saber se a integração dar-se-á a partir dos objetivos nacionais ou não." [19] Esse Autor não analisa a integração específica do mercado financeiro, mas da economia como um todo e aponta como solução para reverter os efeitos perversos da globalização (não que todos o sejam perversos) e controlar os desequilíbrios por ela gerados a necessidade de fortalecimento do Estado, quando, então, será possível a conquista e ampliação da cidadania.

Bercovici ressalta a necessidade de o Estado brasileiro adotar um plano para a superação do subdesenvolvimento, o que inclui a melhoria dos índices econômicos e sociais, o que, por certo, gera a melhor distribuição, na sociedade brasileira do poder de inverter hierarquias; acrescenta o jurista que o Estado brasileiro, na verdade, é fraco diante dos interesses privados, que, nas palavras de Castro, concentram o poder de inverter as hierarquias, mas não as invertem, pois não é de seu interesse econômico. Vê-se a grande dificuldade de adotar um plano econômico (imbuído do valor ampliação da cidadania) com o enfraquecimento do Estado na interferência na fixação das taxas de juros.

V.2.O mecanismo privado de classificação de riscos e a limitação da liberdade no plano internacional

No plano internacional, encontra-se uma grande dificuldade de inserção do conteúdo de segmento público nas cláusulas contratuais, pois, diferentemente dos contratos firmados no âmbito interno, não há órgãos soberanos cuja atuação seja vinculada aos valores dos povos contratantes (não há uma constituição internacional).

Na prática, o que se verifica a grande influência exercida, nos "planos de contrato de longo alcance, subjacentes às economias nacionais" pelos organismos multilaterais [20], que determinam não somente o conteúdo de cláusulas valorativa e monetária dessas avenças, como também condicionam o conteúdo dessas cláusulas a adequações nas estruturas institucionais dos países periféricos para garantir a continuidade do financiamento. Como ensina Castro, "a organização das políticas de "crédito multilateral" e seus prolongamentos no plano doméstico dos países tomadores de empréstimo, como nos casos dos programas de ajuste estrutural (do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial), podem ter efeitos cruciais sobre a alteração da relevância econômica dos contratos em geral para países e/ ou grupos sociais diferentes e sobre a limitação da autonomia na formação de preferências relativas a produção de utilidades nas diversas economias tomadoras de empréstimos".

É nesse sentido que o acordo da Basiléia II interfere de maneira negativa nas economias dos países periféricos como o Brasil: são criadas maiores garantias para os investidores estrangeiros, mas às custas da criação de barreiras para que esses países tenham acesso ao crédito internacional ou da obtenção de crédito a juros exorbitantes. A limitação do acesso ao crédito acarreta graves conseqüências para o cumprimento das obrigações estatais previstas na Constituição.

Dessa maneira, torna-se imprescindível o surgimento de mecanismos de inclusão das cláusulas de autonomia responsável nos contratos de financiamento internacionais, a fim de que se possa garantir o poder de os países (principalmente os periféricos) inverterem a hierarquia econômica internacional. Bercovici aponta a necessidade de superação da divisão internacional do trabalho (internacional) para a superação das condições de subdesenvolvimento.

Ademais, a sujeição de um país a uma ordem financeira internacional que afeta desfavoravelmente a relevância econômica do contrato afeta diretamente a vida do cidadão comum de cada país, a possibilidade de o Estado concretizar seus planos constitucionais e deveres de prestações sociais, tais como saúde e educação. É, portanto, evidente que a distribuição do poder de inversão de hierarquias no plano internacional interfere diretamente no poder dos cidadãos de cada país e, assim, no seu poder de concretizar seus direitos.

Assim como há necessidade de a política econômica interna levar em consideração o substrato social sobre o qual se forma a rede de contratos, também há a necessidade de que a política internacional recupere a sua coordenação fundada em valores. Uma das possíveis formas da inclusão de valores nos contratos de financiamento internacionais (cláusula da autonomia responsável) seria por meio dos organismos supranacionais de proteção dos direitos humanos, na medida em que a obtenção do crédito pelos países tem interferência direta na possibilidade de o Estado e os cidadãos concretizarem o direito fundamental à liberdade por meio da inversão de hierarquias. Haveria, portanto, ao invés de segmentos de interesse público, nos contratos internacionais, haveria segmentos de interesse humanitário nas cláusulas valorativa e monetária. Ademais, as negociações nos organismos multilaterais de crédito deveriam se dar de maneira mais aberta para que a comunidade internacional pudesse observar em que bases estão sendo negociados os financiamentos aos países que deles mais necessitam. Deve-se, portanto, seguir na direção contrária a até então adotada pelo Comitê da Basiléia.

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VI.Conclusão

Como visto, a implementação das novas regras da Basiléia, no Brasil, se confirmadas as análises econômicas apresentadas, representarão grave limitação às liberdades individuais, na medida em que irá enfraquecer o Estado no exercício da política monetária e a possibilidade de inclusão dos segmentos de interesse público nos contratos de financiamento. Ademais, há graves ofensas aos princípios da ordem econômica constitucional, como a soberania nacional, a justiça social e a busca do pleno emprego, além de outros que não puderam ser analisados neste trabalho, tais como a livre concorrência, o favorecimento das pequenas e médias empresas e a função social da propriedade. Isso sem contar a inobservância do devido procedimento para a internalização do acordo no ordenamento pátrio.

No plano internacional, a Basiléia II dificulta o acesso ao crédito internacional e, assim, a livre formação das preferências não só dos países como de seus cidadãos. No quadro atual de regimes internacionais fundados basicamente nos interesses do mercado, torna-se imprescindível a criação de mecanismos supranacionais de inserção de segmentos humanitários nas cláusulas monetária e valorativa dos contratos de financiamento (nos de comércio também) e, assim, haverá nesses acordos a cláusula da autonomia responsável, cujo conteúdo deve se fundar nos direitos fundamentais.


Referências Bibligráficas

BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento – uma leitura a partir da Constituição de 1988 São Paulo: Malheiros, 2005

CASTRO, Marcos Faro de. A função social como objeto da análise jurídica da economia, 2006, ainda não publicado

CASTRO, Marcus Faro de. Cultura, Economia e Cidadania: algumas reflexões preliminares. in Anuário Antropológico, Rio de Janeiro: Edições Temo Brasileiro Ltda., 2003.

CASTRO, Marcus Faro de. Política e relações internacionais: fundamentos clássicos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005

EICHENGREEN, Barry. Globalizing Capital – A history of the international monetary system. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1996.

FREITAS, Maria Cristina Penido de e PRATES, Daniela Magalhães. Sistema Financeiro e Desenvolvimento: as restrições das novas regras do Acordo da Basiléia para os países periféricos, disponível em < http://www.ie.ufrj.br/prebisch/pdfs/11.pdf >, acesso em 25.6.2006

KEYNES, John Maynard. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Trad.: Mário R. da Cruz, ver. Cláudio Roberto Contador. São Paulo: Atlas, 1982

MENDONÇA, Ana Rosa Ribeiro de. O Acordo da Basiléia de 2004: uma revisão em direção às práticas de mercado. Economia Política Internacional – Análise Estratégica, n° 2, jul/set 2006, Instituto de Economia UNICAMP

Princípios essenciais para uma supervisão bancária eficaz. Disponível em <http://www.bcb.gov.br/ftp/defis/basileia.pdf>, acesso em 30.7.2006


Notas

  1. Princípios essenciais para uma supervisão bancária eficaz. Disponível em <http://www.bcb.gov.br/ftp/defis/basileia.pdf>, acesso em 30.7.2006
  2. MENDONÇA, Ana Rosa Ribeiro de. O Acordo da Basiléia de 2004: uma revisão em direção às práticas de mercado. Economia Política Internacional – Análise Estratégica, n° 2, jul/set 2006, Instituto de Economia UNICAMP
  3. CASTRO, Marcos Faro de. A função social como objeto da análise jurídica da economia, 2006, ainda não publicado
  4. CASTRO, Marcus Faro de. Cultura, Economia e Cidadania: algumas reflexões preliminares. in Anuário Antropológico, Rio de Janeiro: Edições Temo Brasileiro Ltda., 2003.
  5. EICHENGREEN, Barry. Globalizing Capital – A history of the international monetary system. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1996. p. 136
  6. FREITAS, Maria Cristina Penido de e PRATES, Daniela Magalhães. Sistema Financeiro e Desenvolvimento: as restrições das novas regras do Acordo da Basiléia para os países periféricos, disponível em < http://www.ie.ufrj.br/prebisch/pdfs/11.pdf >, acesso em 25.6.2006
  7. Idem
  8. CASTRO, Marcus Faro de. Política e relações internacionais: fundamentos clássicos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005. p. 158
  9. FREITAS, Maria Cristina Penido de e PRATES, Daniela Magalhães. Sistema Financeiro e Desenvolvimento: as restrições das novas regras do Acordo da Basiléia para os países periféricos, disponível em <http://www.ie.ufrj.br/prebisch/pdfs/11.pdf >, acesso em 25.6.2006
  10. CASTRO, Marcos Faro de. A função social como objeto da análise jurídica da economia. Ainda não publicado
  11. Idem
  12. Idem
  13. CASTRO, Marcos Faro de. Direitos Sociais, Econômicos e Culturais: uma abordagem neoclássica. Revista Jurídica da Presidência da República, vol. 7, n. 74, agosto/setembro 2005, disponível em http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_74/index.htm, acesso em 25.6.2006
  14. Idem, p. 6
  15. KEYNES, John Maynard. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Trad.: Mário R. da Cruz, ver. Cláudio Roberto Contador. São Paulo: Atlas, 1982, p. 136.
  16. A relevância econômica é um conceito apresentado em Castro, 2006, que pode ser explicado por meio de um exemplo ocorrido no Brasil. Logo após a implementação do plano real, durante determinado período, a autoridade monetária mantida (por meio dos instrumentos de intervenção indireta) a paridade do real com o dólar, período em que muitos consumidores firmaram contratos de financiamento de automóveis atrelados ao dólar. Ocorre que, com a crise da Ásia de 1999, houve uma intensa valorização do dólar frente ao real, o que alterou a relevância econômica dos contratos para os consumidores, que se viram, naquele momento, compelidos a adimplir uma obrigação relativa à cláusula monetária desproporcional à cláusula valorativa, em decorrência de mudanças na taxa de câmbio.
  17. AgRg no REsp 807735 / RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 30.6.2006
  18. MENDONÇA, Ana Rosa Ribeiro de. O Acordo da Basiléia de 2004: uma revisão em direção às práticas de mercado. Economia Política Internacional – Análise Estratégica, n° 2, jul/set 2006, Instituto de Economia UNICAMP
  19. BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento – uma leitura a partir da Constituição de 1988 São Paulo: Malheiros, 2005. p. 66
  20. CASTRO, Marcos Faro de. A função social como objeto da análise jurídica da economia. Ainda não publicado
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Sobre a autora
Micheline Mendonça Neiva

Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília e Procuradora Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEIVA, Micheline Mendonça. Análise jurídica dos efeitos decorrentes da implementação do Acordo da Basiléia II. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2909, 19 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19343. Acesso em: 24 abr. 2024.

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