O advento da Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, proporcionou ao processo penal significativa alteração à sistemática de quesitação do Tribunal do Júri: trouxe à baila antiga discussão entre os operadores de direito sobre a formulação e ordenação dos quesitos ao corpo de sentença. Adotou sistema híbrido da quesitação, abrangendo a regra do direito francês com modificações do direito inglês. "É que os jurados hoje são indagados primeiramente sobre a existência dos fatos e a sua respectiva autoria e, ao final, há uma questão genérica, que quer saber se os jurados consideram ou não que o réu deve ser absolvido" [01].
Anteriormente, a lei dispunha que os quesitos seriam formulados sobre: a) fato principal e libelo acusatório bem como seu aditamento; b) ausência de conexão essencial ou separabilidade do fato e circunstância não presente no libelo; c) circunstâncias que isentem o réu de pena, exclua o crime ou o desclassifique, desde que alegados pela defesa; d) causas de aumento ou diminuição de pena (majorantes ou minorantes); e) circunstâncias agravantes ou atenuantes.
Essa sistemática tinha como base legal o revogado artigo 484 do Código de Processo Penal, amplamente criticado e considerado ultrapassado para a realidade jurídica atual, baseada na objetividade e celeridade.
Rodrigo Faucz PEREIRA E SILVA afirmou que era comum o reconhecimento de posterior nulidade, principalmente quando as perguntas eram realizadas, ao corpo de sentença, de forma negativa. Sustentou que "A formulação de quesitos sempre foi causa de grande discussão entre os estudiosos do Tribunal do Júri. (...) Nos processos de competência do Júri, grande parte dos julgamentos anulados tem como causa, justamente, a formulação incorreta e/ou incompleta de quesitos e as respostas contraditórias" [02].
Sobre a quesitação negativa e a nulidade, antiga é a jurisprudência reiterada sobre o assunto: "Habeas corpus. Júri. Quesitação defeituosa. Indagação em forma negativa. Nulidade. Anula-se o júri onde formuladas indagações na forma negativa, visto que semelhante prática produz complexidade e favorece o erro na manifestação dos jurados" [03].
Diante desses e vários outros problemas na antiga redação de quesitação [04], a Lei nº 11.689/2008 veio a simplificar a sistemática da formulação dos quesitos ao conselho de sentença, com a finalidade de facilitar o julgamento e reduzir a chance de ocorrer nulidades [05], neste momento processual. Essa simplificação erradicou o excesso de formalismo: evitou nulidades e racionalizou a forma de elaborar os quesitos [06]. Em outras palavras, deixou de ser um grave problema, facilitando ao jurado a sua compreensão sobre o que estava lhe sendo perguntado [07].
Uma das principais alterações refere-se à existência de quesito único sobre as teses defensivas. Será perguntado ao jurado se absolve o réu [08]. Essa providência de simplificação do quesito das teses defensivas não prejudicou a ampla defesa ou o contraditório. Ao contrário, "O defensor continuará a expor suas variadas teses, muitas delas alternativas, outras subsidiárias, mas todas voltadas à absolvição do réu. Porém, essa exposição destina-se ao conselho de sentença, unicamente" [09].
Outras importantes alterações vieram com a alteração legislativa. Podemos citar, a título exemplificativo, a quesitação sobre materialidade do fato, autor ou participação, absolvição ou condenação, desclassificação e tentativa, etc.
Pois bem. Ordenando-se a nova quesitação, temos como primeiro quesito a materialidade do fato (em sentido lato) [10]. Pergunta-se: o crime existiu? Nesta parte, o conselho de sentença reconhece ou não a existência do crime doloso contra a vida. Para o primeiro quesito, que aparentemente é simples e lógico, críticas não faltaram. Eugênio Pacelli de OLIVEIRA ressalvou que "a nosso aviso, deveria ser aqui o esclarecimento da forma consumada ou tentada do resultado" [11]. Norberto AVENA, por sua vez, asseverou que há duas correntes sobre a materialidade (se somente é respondido um único quesito – lato sensu, ou se hão de se responder dois quesitos – stricto sensu e letalidade), afirmando que "há de pronunciar-se a jurisprudência dos tribunais pátrios" [12].
O segundo quesito refere-se à autoria e/ou participação no delito [13]. Será perguntado aos jurados se o réu praticou ou participou para a realização do fato criminoso, nos moldes estabelecidos na denúncia e na sentença de pronúncia.
Após as respostas desses dois primeiros quesitos, a lei estabeleceu dois apartes: o primeiro, após o segundo quesito, desde que sustentada a tese de tentativa ou desclassificação do delito, deverá ser realizado quesito nesse sentido. Perguntar-se-á ao conselho de sentença: o crime foi tentado? No caso de o réu ter sido pronunciado pela forma tentada, o quesito é imprescindível.
A segunda observação é sobre a desclassificação para outra que não seja de competência do júri. Pode ser formulado após o segundo ou terceiro quesito. Nesse quesito, se sustentada a desclassificação, seja pelo acusador quanto pela defesa, será perguntado aos jurados se há desclassificação do crime para outro de competência do juiz singular.
Já o terceiro quesito, tido como a inovação da Lei nº 11.689/08, como já dito alhures, trata a respeito da (unificação das teses defensivas a respeito da) absolvição do acusado. Ao conselho de sentença será perguntado: o jurado absolve o acusado?
Contudo, havendo outras teses defensivas, objetivando a absolvição, deve ser elaborado quesito próprio, como nos casos de excludentes de antijuridicidade ou de culpabilidade?
A resposta é negativa [14]. Todas as teses defensivas objetivando a absolvição do réu serão respondidas em apenas um quesito (exceto a inimputabilidade): o jurado absolve o réu? A princípio, parece-nos que há cerceamento de defesa. No entanto, ao aprofundar o estudo, fica claro que esta unificação dos quesitos de defesa em um único possibilita que o réu seja absolvido ainda que não haja harmonia sobre qualquer das teses defensivas. Por exemplo, a defesa do réu pode sustentar excludentes de antijuridicidades diversas (estado de necessidade, legítima defesa, etc.), bem como culpabilidade (erro de proibição, inexigibilidade de conduta diversa, etc.), sendo que os jurados podem absolver por qualquer dessas excludentes, mesmo que não unânime (o jurado A absolveu pela legitima defesa, o B, pela inexigibilidade de conduta diversa, e assim por diante).
Mas e no caso de absolvição imprópria? Isto é, naqueles casos em que é necessária a imposição de medida de segurança?
Thiago André Pierobom de ÁVILA leciona:
(...) Se houver sustentação da tese de inimputabilidade, caso os jurados absolvam o réu, o juiz deverá formular quesitos adicionais para esclarecer o fundamento da absolvição. Isso porque se a absolvição for decorrente de atipicidade ou excludente da ilicitude, a votação deve parar. Todavia, se superados estes quesitos, os jurados afirmarem negativamente ao quesito "ao tempo do fato, o réu possuía capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento?" (CP, art. 26) haverá a imposição da medida e segurança. O jurado deve esclarecer este ponto, pois, na prática, a absolvição imprópria acarreta restrição de direitos fundamentais do acusado, podendo ensejar a internação compulsória em estabelecimento psiquiátrico. Tanto que, quando se disciplinou a absolvição sumária (art. 415, parágrafo único), estabeleceu-se que esta apenas poderia ser proferida no caso de inimputabilidade se não houvesse outra tese defensiva mais favorável, que ensejasse a absolvição própria. Ou seja, se há possibilidade de tese de legítima defesa, por exemplo, e prova cabal da inimputabilidade, o acusado não deve ser sumariamente absolvido (com aplicação da medida de segurança), mas deve ser pronunciado e submetido a julgamento plenário para ser eventualmente absolvido pela licitude de sua ação. Apenas caso não haja absolvição própria é que se aplicará a absolvição imprópria. E para saber qual dos fundamentos os jurados estão acolhendo, nesta situação específica de existência de tese de inimputabilidade, é necessário o esclarecimento do motivo da absolvição [15].
O quarto quesito versa sobre a existência de causas de diminuição alegadas pela defesa. Nessa parte, não poderá o quesito ser genérico. "Por mais que se queira buscar a simplificação dos quesitos, tratando-se de causas de diminuição ou de aumento de pena e de qualificadoras não é possível formular um quesito "genérico" sobre elas. Significa dizer que devem ser quesitadas as causas de diminuição de pena efetivamente alegadas pela defesa, como destacado no próprio inciso IV do art. 483" [16].
Por fim o quinto quesito trata apenas a respeito das qualificadoras e/ou causas de aumento de pena, desde que reconhecidas na pronúncia ou no acórdão que julgou admissível a acusação. De igual modo, o quesito não poderá ser genérico.
Urge ressaltar que a legislação que alterou a quesitação inovou ao excluir o quesito sobre as atenuantes e agravantes. Não mais se fará quesitos ao conselho de sentença em relação às agravantes e atenuantes. Nesses casos, por se tratar de matéria unicamente de direito [17], o magistrado, ao prolatar a sentença, atentará sobre as circunstâncias legais que incidiram no caso, alegadas no debate. Por conseguinte, ficou prejudicado em parte o enunciado da súmula 162 do STF [18].
Todavia, essa modificação foi criticada por Guilherme de Souza NUCCI:
A pretensão nos parece inconstitucional. Devem os jurados deliberar sobre todas as circunstâncias fáticas que envolva o crime doloso contra a vida. Não se pode, portanto, lesando a soberania do Tribunal do Júri, bem como a sua competência constitucional, eliminar tais questões. Compõe o cenário fático de um homicídio as circunstâncias legais e judiciais. As legais possuem descrição específica no Código Penal. São constituídas das qualificadoras e privilégios, causas de aumento e de diminuição de pena, agravantes e atenuantes. Estão elas no mesmo contexto. Precisam, portanto, ser avaliadas pelo Conselho de Sentença [19].
Como se vê, a verdade é que as alterações na quesitação do Tribunal do Júri foram essenciais à simplificação do procedimento especial, atenuando-se "a via-crucis para atingir o veredicto" [20]. Contudo, não foram suficientes para sanar todas as dúvidas, conforme se tem observado pelas críticas supracitadas. Não restam dúvidas quanto aos benefícios hipotéticos advindos com a Lei nº 11.689/08, porém, necessitam de uma melhor interpretação doutrinária e jurisprudencial a respeito de sua aplicação no caso concreto.
Portanto, embora tardias, as mudanças, regra geral, simplificaram a formulação dos quesitos, com a finalidade de evitar nulidades, que eram comuns no sistema revogado. São mais claros e específicos, mas, suas interpretações não são unânimes da doutrina. Resta-nos esperar os resultados práticos e reiterados dessas mudanças a fim de termos a verdadeira conclusão sobre a sistemática introduzida pela Lei nº 11.689/08.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2009.
ÁVILA, Thiago André Pierobom de. O novo procedimento dos crimes dolosos contra a vida (Lei nº 11.689/08). Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1873, 17 ago. 2008.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
LUZ, Delmar Pacheco da. Tribunal do Júri: a nova quesitação. LFG. Disponível em http://www.lfg.com.br. 12 julho. 2008.
MARQUES, Jader. Tribunal do Júri: considerações críticas à lei 11.689/08 de acordo com as leis 11690/08 e 11.719/08. Livraria dos Advogados, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9. Ed. São Paulo: RT, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: RT, 2008.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz. Tribunal do Júri: o rito interpretado. Curitiba: Juruá, 2009.
TÁVORA, Nestor. ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2009.
TÁVORA, Nestor. ARAÚJO, Fábio Roque. Código de Processo Penal para concursos. Salvador: Jus Podivm, 2010.
Notas
- TÁVORA, Nestor. ANTONNI, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. p. 711.
- PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz. Tribunal do Júri: o rito interpretado. Curitiba: Juruá, 2009. p. 118.
- STF. HC. 66.494/SP. Rel. Francisco Rezek. DJ. 16.09.1988.
- "As dificuldades de encaminhamento de questões jurídicas a pessoas sem conhecimentos do Direito não são poucas. (...) Não é por acaso que muitas anulações de processos do júri originam-se de equívocos tanto na formulação dos quesitos como na tradição das respostas". (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11. Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. p. 607).
- Sobre o assunto, "a idéia da simplificação do questionário decorre do entendimento de que o sistema anterior levava a decretação de muitas anulações por erro na elaboração das perguntas ou incompreensão pelos jurados. Os defensores da simplificação argumentam, basicamente que a formulação de várias perguntas, nas diversas séries, e com todas as circunstâncias levadas à consideração dos jurados provoca uma grande quantidade de equívocos, posteriormente revertidos em nulidade processual". (MARQUES, Jader. Tribunal do Júri: considerações críticas à lei 11.689/08 de acordo com as leis 11690/08 e 11.719/08. Livraria dos Advogados, 2008).
- "Os quesitos obrigatoriamente, serão de linguagem simples, pois se direcionam ao Conselho de Sentença. Não podem abrigar ambigüidades, nem ser apresentados na forma de perguntas negativas" (BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 539).
- Art. 482. parágrafo único. CPP. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. (...)
- Novamente, Jader MARQUES ensina que "a verdadeira mudança, provocada pela entrada em vigor da Lei n. 11.689/08, grosso modo, reside na substituição do sistema de quesitos específicos para cada tese suscitada em plenário por um modelo no qual o jurado deverá responder, simplesmente se absolve o acusado". (idem. P. 139).
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9. Ed. São Paulo: RT, 2009. p. 483.
- "O primeiro quesito (...) deverá indagar os jurados acerca da materialidade lato sensu, o que abrange tanto a materialidade stricto sensu (ocorrência das lesões na vítima em decorrência do agir imputado ao réu) como a letalidade (nexo de causalidade entre essas lesões e a morte do ofendido)" (AVENA, Norberto. Processo Penal Esquematizado. São Paulo: Método, 2009. p. 743).
- OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Ob. Cit. p. 608.
- AVENA, Norberto. Ob. Cit. p. 744.
- "O segundo quesito diz respeito à autoria ou participação no evento (ex.: o réu concorreu para a prática do crime, desferindo os tiros que provocaram a morte da vítima?). Naturalmente, se a resposta ao primeiro quesito for negativa, este segundo quesito restará prejudicado" (TÁVORA, Nestor. ARAÚJO, Fábio Roque. Código de Processo Penal para concursos. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 560).
- Em sentido contrário, Noberto AVENA ensina que "(...) apesar da nítida intenção do legislador em simplificar a quesitação, entendemos que, relativamente ao quesito tratado no art. 483, III, deverá ser formulado aos jurados em relação a cada uma das teses argüidas" (ob. Cit. p. 746).
- ÁVILA, Thiago André Pierobom de. O novo procedimento dos crimes dolosos contra a vida (Lei nº 11.689/08). Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1873, 17 ago. 2008. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/11596. Acesso em: 9 maio 2011.
- LUZ, Delmar Pacheco da. Tribunal do Júri: a nova quesitação. LFG. Disponível em http://www.lfg.com.br. 12 julho. 2008. Acesso em 9 de maio de 2011.
- Neste sentido: "Não há mais espaço para indagações sobre circunstâncias agravantes ou atenuantes, sendo a apreciação destas de competência do juiz-presidente por se tratar preponderantemente de matéria de direito" (TÁVORA, Nestor. ANTONNI, Rosmar. Ob. Cit. p. 713).
- Súmula 162. STF. É absoluta a nulidade do julgamento pelo júri, quando os quesitos da defesa não precedem aos das circunstâncias agravantes.
- NUCCI, Guilherme de Souza. ob cit. p. 830.
- NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: RT, 2008. p. 218.