5 LINGUAGEM E RACIONALIDADE COMUNICATIVA EM HABERMAS
O objetivo de Habermas é fornecer critérios para que os atores sociais possam tomar decisões racionais, não arbitrárias, sobre assuntos relevantes, e o aspecto da linguagem que lhe importa é o uso das sentenças com intenção comunicativa.
Nessa dimensão pragmática "revela-se todo o conjunto da comunicação, que inclui a situação da fala, a aplicação da linguagem e a consideração de seus contextos, as pretensões de validez erguidas pelos falantes e, finalmente, seus papéis dialogais". [42]
O consenso obtido de maneira satisfatória, isto é, fundamentado racionalmente, depende da realização da ação comunicativa. O que torna possível a realização da ação comunicativa é o uso da fala, da linguagem e o conjunto de significados que são compartilhados pelos atores sociais. O ato de "compartilhar" entre os atores se dá na Lebenswelt.
A linguagem possui, basicamente, três funções. A função cognitiva, permite que os atores formulem proposições referentes ao mundo objetivo; a função apelativa, permite que os atores utilizem sentenças apelativas de ordenação aos destinatários, "faça isso, faça aquilo". As funções expressivas da linguagem tornam conhecidas as experiências pessoais do falante.
Os atores que se comunicam erguem "pretensões de validade" e esperam que as afirmações sejam verdadeiras, se referidas ao mundo objetivo. Se referidas ao mundo social, os atores que se comunicam esperam que o conteúdo das proposições seja correto, justo; se referidas ao mundo subjetivo, os atores erguem pretensões de validade, na expectativa de que as proposições sejam sinceras.
Nesse momento, importa esclarecer que o agir comunicativo não pode ser confundido com o agir estratégico, pois "uma coordenação da ação bem-sucedida não depende da racionalidade teleológica das orientações da ação, mas da força racionalmente motivadora de realizações de entendimento, isto é, de uma racionalidade que se manifesta nas condições para um consenso obtido comunicativamente". [43]
A teoria da ação comunicativa é baseada na teoria dos atos de fala sustentada por Austin e Searle. Os atos de fala são unidades essenciais da comunicação lingüística. São divididos em locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Nos locucionários, o falante apenas diz algo, expressa um estado-de-coisas. Nos ilocucionários o ator realiza uma ação enquanto diz algo, e, nos perlocucionários, ao falar, causa um efeito sobre o ouvinte, produz algo no mundo.
"Habermas se baseia na distinção entre atos de fala de tipo ilocucionário e de tipo perlocucionário para estabelecer uma grande linha divisória entre dois tipos de ação social. É desse modo, portanto, que consegue fundamentar a especificidade de sua ação social de tipo comunicativo (o agir comunicativo) como aquela em que o falante busca realizar o telos ou a função da fala, a saber, alcançar entendimento, em relação à ação social de tipo teleológico (ação teleológica), em que o falante procura causar algum efeito ou reação no ouvinte, com seu proferimento. Na primeira, o que é constitutivo do ato de fala é o sentido do que é dito; na segunda, a intenção do agente". [44]
Na ação estratégica, um ator procura influenciar o comportamento de outro por meio de "ameaças" ou da perspectiva de gratificação a fim de fazer com que a interação continue conforme o primeiro deseja, ao passo que, na ação comunicativa, um ator procura racionalmente a "motivação", acreditando no efeito compulsório da locução da oferta contida no ato de fala.
"Ao critério formal do imperativo categórico kantiano, Habermas substitui um princípio processual de discussão (D) segundo a qual só podem pretender à validade as normas que são aceitas (ou que poderiam sê-lo) por todas as pessoas concernentes, desde que participem de uma discussão prática". [45]
No curso da discussão prática, os atores decidirão sobre a validade das normas que desejam aceitar, pautando-se numa regra de argumentação que se enuncia assim: "Toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e os efeitos secundários, que (de maneira previsível) provêm do fato de a norma ter sido universalmente observada na intenção de satisfazer os interesses de cada um, podem ser aceitos por todas as pessoas concernentes". Trata-se do princípio de Universalidade (U) tão importante para a fundamentação da ética da discussão defendida por Habermas.
Na visão de Tércio Sampaio Ferraz Jr. [46]:
"O problema, manifesto numa teoria da justiça que traz este tipo (habermasiano) de solução (aceitabilidade racional como base de uma concepção universal de justiça), conduz a algumas dificuldades conhecidas, convergentes na hipótese de que, para qualquer sujeito ou conjunto de sujeitos, haveria proposições independentes do seu juízo. Esta independência é que daria sentido final a um postulado de correspondência, pois não teria pela crença de um ou de vários no sentido da justiça que se garantiria completamente a verdade do juízo. Contudo, deste modo, a universalidade de uma proposição sobre a justiça não seria alcançada por meio de uma imediata confrontação, mas requereria a mediação de outras proposições, o que conduziria à asserção de uma primeira proposição, cujos fundamentos estariam articulados numa competência pragmática transcendental de todo e qualquer sujeito comunicativo. Entretanto, isto não elidiria a persistente dualidade entre estas condições transcendentais e uma possibilidade de equívoco, por mais racionais sejam aquelas: mesmo um acordo argumentativo ideal-transcendental entre os dialogantes exigiria alguma noção primitiva de justiça verdadeira (...)".
5.1 O direito moderno: um direito justificado pelo caminho da racionalidade
Para Habermas [47] "os direitos humanos e o princípio da soberania do povo formam as idéias em cuja luz ainda é possível justificar o direito moderno".
Com efeito, tanto os direitos humanos, quanto o princípio da soberania do povo são ideias construídas a partir da racionalidade. Nesse sentido, na visão habermasiana, o direito moderno é incompatível com a ideia de um direito fundado em tradições metafísicas ou religiosas. Hoje as fundamentações são "pós-tradicionais", posto que o direito moderno busca sua fundamentação e justificação na racionalidade. Conseqüentemente, o direito moderno não é justificado pelo caminho da moral religiosa. O fundamento do direito moderno, igualmente, não está na natureza das coisas (daí a advertência do autor: "sem apelar para motivos de ordem religiosa ou metafísica") [48], já que a sua estrutura está assentada na ideia de direitos humanos e no princípio da soberania do povo. Mais especificamente, no nível "pós-tradicional" de justificação, "só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade" [49].
Por conseguinte, a racionalidade moderna concebe o homem na condição de sujeito de direitos. Dessa maneira, ela afirma a sua autonomia, ao mesmo tempo em que emancipa o homem, já que este adquire sua liberdade pelas vias da racionalidade. Com efeito, o homem racional é capaz de se "autorealizar" e de se "autodeterminar" perante o Universo. O mesmo raciocínio vale para a dimensão social, isto é, o homem pelo caminho da racionalidade tem o condão de se "autorealizar" e de se "autodeterminar" perante a sociedade em que vive.
"As questões da democracia política, da cidadania e da participação popular se sobressaem no Estado moderno, mesmo em relação às formações políticas que o antecederam (até mesmo em relação à Grécia, pois havia o regime da escravidão: havia muitos serviçais alheios aos assuntos políticos da pólis, grande era o número de escravos trabalhadores). No Estado moderno as opiniões dos atores têm de ser ouvidas ao se estabelecerem os objetivos a serem perseguidos pelo poder político, ou seja, para evocar as formulações de Habermas, se é certo afirmar em uma tendência à ‘colonização do mundo da vida’ pelo sistema político, nem por isso deixaria de haver, efetivamente ou como possibilidade, a influência da sociedade sobre o próprio Estado". [50]
O fato é que, na modernidade, não só o direito foi separado da moral, mas esta foi separada da Ética. A exigência habermasiana de justificação racional do direito é bem estruturada e não há que se falar em confusão entre esferas moral e jurídica: não significa que o direito esteja assentado exclusivamente no mundo da vida. Ele se apresenta como esfera de intermediação entre sistema e mundo da vida [51].
O direito moderno foi separado da Ética e da Moralidade. E este fenômeno "separatista" deve-se principalmente ao filósofo alemão Immanuel Kant.
Na medida em que as questões morais e éticas se diferenciaram entre si, a substância normativa, filtrada discursivamente, encontra a sua expressão na dimensão da autodeterminação e da autorealização. Os direitos humanos e a soberania do povo não se deixam subordinar a essas duas dimensões. Entretanto, existem "afinidades entre esses dois pares de conceitos". Com efeito, as duas tradições políticas clássicas (Estados Unidos da América), caracterizadas como "liberais" e "republicanas", concebem os direitos humanos como expressão da "autodeterminação moral" e a soberania do povo como expressão da "autorealização ética". Nesta perspectiva, os direitos humanos e a soberania do povo não aparecem como elementos complementares, e sim, concorrentes. Os liberais não aceitam a tirania da maioria, defendem o primado dos direitos humanos que garantem as liberdades pré-políticas do indivíduo e são contra a vontade soberana do legislador político. Por outro lado, os representantes do humanismo republicano conferem maior destaque ao valor próprio, não-instrumentalizável, da auto-organização dos cidadãos, "de tal modo que, aos olhos de uma comunidade naturalmente política, os direitos humanos só se tornam obrigatórios enquanto elementos de sua própria tradição, assumida conscientemente".
Na visão liberal, os direitos humanos impõem-se ao saber moral como algo dado, ancorado num estado natural fictício; ao passo que na interpretação republicana a vontade ético-política de uma coletividade que está se auto-realizando não pode reconhecer nada que não corresponda ao próprio projeto de vida autêntico. No primeiro caso, prevalece o momento moral-cognitivo, no segundo, o ético-voluntário [52].
Curiosamente, Rousseau e Kant apreendem a cognição e a vontade a partir da ideia de complementação, "de tal modo que a idéia dos direitos humanos e o princípio da soberania do povo se interpretassem mutuamente" [53]. No entanto, eles não conseguiram entrelaçar simetricamente os dois conceitos, já que em linhas gerais, "Kant sugeriu um modo de ler a autonomia política que se aproxima mais do liberal, ao passo que Rousseau se aproximou mais do republicano" [54].
O nexo interno entre soberania do povo e direitos humanos reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade. Nem Kant, nem Rousseau conseguiram descobrir esse nexo. Este é o entendimento de Habermas.
Sob premissas da filosofia da consciência, é possível aproximar razão e vontade no conceito da autonomia, seja ao self da crítica da razão prática, seja ao povo do "Contrato Social".
Se a vontade racional só pode formar no sujeito, então a autonomia moral deste deve passar através da autonomia política da vontade unida de todos, a fim de garantir antecipadamente, por meio do direito natural, a autonomia privada de cada um. Se a vontade racional só pode formar-se no sujeito superdimensionado de um povo ou de uma nação, então a autonomia política deve ser entendida como a realização autoconsciente da essência ética de uma comunidade concreta; e a autonomia privada só é protegida contra o poder subjugador da autonomia política através da forma não-discriminadora de leis gerais. Ambas as concepções passam ao largo da força de legitimação de uma formação discursiva da opinião e da vontade, na qual são utilizadas as forças ilocucionárias do uso da linguagem orientada pelo entendimento, a fim de aproximar razão e vontade – e para chegar a convicções nas quais todos os sujeitos singulares podem concordar entre si, sem coerção. Todavia, se discurso e negociações, cujos procedimentos são fundamentados discursivamente, constituem o lugar no qual se pode formar uma vontade racional, a legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo: "enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos."
Por conseguinte, o nexo interno entre soberania popular e direitos humanos só se estabelecerá, se o sistema dos direitos apresentar as condições exatas sob as quais as formas de comunicação – necessárias para uma legislação política autônoma – podem ser institucionalizadas juridicamente. O sistema dos direitos não pode ser reduzido a uma interpretação moral dos direitos, nem a uma interpretação ética da soberania do povo, porque a autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobreposta e nem subordinada à sua autonomia política [55].
Portanto, na visão habermasiana, embora tenham chegado perto, tanto Kant quanto Rousseau não foram capazes de identificar o nexo interno entre a soberania popular e os direitos humanos, já que um concebeu a autonomia política mais próxima ao modelo liberal, e o outro, aproximou a respectiva autonomia ao modelo republicano. Isto acabou dando margem para que os norte-americanos reivindicassem o primado de um sobre o outro. Deve-se à tradição.
De um lado, os republicanos priorizam a soberania popular, e de outro, os liberais defendem a supremacia dos direitos humanos; de modo que os republicanos se apóiam na ideia de autorealização ética ("vontade") e os liberais na autodeterminação moral ("cognição-razão").
Logo, para Habermas, não há direitos humanos sem soberania popular, nem esta sem direitos humanos, já que ambos estão entrelaçados de modo a formar um "nexo interno". Com isso, o autor quer dizer que o sistema de direitos deve ser fundamentado com base na interpretação moral dos direitos, bem como na ética da soberania do povo, pois a autonomia privada (liberdades negativas) dos cidadãos não pode ser sobreposta e nem subordinada à sua autonomia política (liberdades positivas, de participação). Ambas as ideias devem fundamentar o sistema, uma vez que as liberdades de participação decorrem das liberdades negativas (autonomia privada dos cidadãos), ao mesmo tempo em que estas derivam das liberdades de participação.