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De uma forma geral, segundo Gustave Glotz, em seu belo livro A Cidade Grega, "as condições geográficas contribuíram fortemente para dar-lhe a sua feição histórica". Nesse sentido, explica Glotz:
"Recortada pelo contínuo embate entre o mar e a montanha, a Grécia apresenta em cada palmo do seu território estreitas depressões cercadas de montanhas cujo acesso só é possível pelo litoral. Formam-se assim inúmeros cantões, cada um dos quais é o receptáculo natural de uma pequena sociedade. A fragmentação física determina, ou pelo menos facilita a fragmentação política. Para cada compartimento existe uma nacionalidade distinta. Imaginem-se, num vale fechado, pastagens banhadas por riachos, bosques sobre as colinas, pradarias, vinhedos e olivais que dêem para alimentar algumas dezenas de milhares de habitantes, raramente mais de cem mil, e, mais adiante, um outeiro que pode servir de refúgio em caso de ataque e um porto para o contato com o exterior, e ter-se-á uma idéia do que é para o grego um Estado autônomo e soberano".
Era, portanto, nesse ambiente que a cidade grega se configurava materialmente em função de seus mitos, crenças e valores religiosos. Na cidade grega, a circulação da riqueza poética dos mitos, das lendas, dos heróis, das filosofias se fazia paralela à circulação da riqueza material, das mercadorias, e por isso a cidade historicamente sempre existiu em função de uma circulação de entradas e saídas cuja incumbência era fazer passar fluxos que a transformavam em uma caixa de ressonância, que fazia ressoar todos os seus elementos (em vez de fazê-los fugir), por mais heterogêneos que sejam, históricos, geográficos, étnicos, lingüisticos, morais, econômicos, tecnológicos, culturais. É por essa razão que, olhando para a cidade grega, surpreende-nos a riqueza de sua mitologia, arquitetura, literatura, filosofia, a fertilidade de sua sociedade... Em todos os seus aspectos, ela se apresenta como um reservatório inesgotável de temas, detalhes, movimentos, devires, associações, surpresas, personagens, um vasto campo de deambulação e errância, de estômago e fantasia. Nesse sentido, quando pomos os olhos em sua História e nela tomamos pé, nos deslumbramo-nos, nossos sentimentos como nossa razão são seduzidos mesmo à revelia, e tanto, que o que Freud disse sobre Paris vem-nos à mente primeiro em relação à cidade grega e, só depois a Paris ou a outra cidade qualquer. Ou seja, a seguinte frase de Freud:
"Também Paris, por muitos anos, fora objeto de meus desejos; e o sentimento de felicidade com que pus o pé, pela primeira vez, nas ruas, parecia uma garantia de que outros desejos seriam realizados". [20]
A cidade grega, portanto, se apresenta assim, como "modelo por excelência, origem e paradigma", não como uma imagem do pensamento, mas como uma imagem do inconsciente, do desejo, com suas camadas superpostas, com seus rastros e ruínas, seus esqueletos e fantasmas. Ou seja, em sua estrutura material, a cidade (a grega, mas também a nossa) não deveria ser um aglomerado caótico de casas e de edifícios, de ruas e praças, mas um conjunto idealmente ordenado, cujas ruas confluiriam para as praças principais, onde se ergueriam os grandes edifícios destinados ao culto religioso e ao exercício do poder político. A cidade grega é, portanto, o "modelo por excelência, a origem e o paradigma, da democracia", por isso nossas utopias são velhas e rotas, nossas esperanças são vãs e abortadas e a Grécia é a miragem e a fantasmagoria de nossa cidade subjetiva moderna e líquida. Mesmo porque, conforme a bela análise de Walter Benjamin, se o homem habita uma cidade real, ele é, ao mesmo tempo, habitado por uma cidade de sonho, ou seja, como observa Peter Pál Pelbart,
"A realidade onírica remete aqui ao sonho coletivo, ao sonho do coletivo, ao desejo do corpo coletivo, suas utopias e esperanças abortadas, as miragens e fantasmagorias que o assediam. Os trajetos reais dos personagens na cidade remetem aos trajetos do sonho e do coletivo, como se houvesse duas cidades superpostas, uma real, outra imaginária, e a apologia de um trânsito metódico entre elas".
Por isso nosso trabalho, atendendo a um imperativo provocativo de servir de texto reflexivo sobre a Cidade, se denomina POR QUE PAIDÉIA?. Porque paidéia, como um processo dialético de formação cultural não deixa originalmente de ser isso: um sonho coletivo, um sonho do coletivo, o desejo do corpo coletivo, suas utopias, suas esperanças, mas, também, suas miragens, suas fantasmagorias... Mesmo porque, como diz-nos Sloterdijk,
"A invenção universal dos cultos dos antepassados abre caminho para um pensamento proto-metafísico – como se por toda parte antepassados mortos fossem aqueles que a princípio chamam a pensar – pois como ensinou Heidegger, pensar significa agradecer (aos mortos, embora não o tenha expressado claramente). Mas dão ainda mais a pensar, desde o início, as vidas humanas que estão por vir, nas quais perdura a horda essencial – o que acarreta o que pensar "no fundo" acaba sendo um mecenato em prol da vida futura".
Afinal, lembra-nos Lewis Mumford, as primeiras cidades de que se tem registro foram lugares de encontro para reverenciar os mortos, de modo que (numa metáfora perfeita) as cidades dos mortos antecedem a cidade dos vivos. Mesmo porque, como diria Derrida, "nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos, quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido" [21]. Com efeito, é na cidade que aprendemos a viver, e paidéia é justamente isso, um mecenato em prol da vida e da cidade onde a vida torna-se humanidade. Portanto, por tudo isso, POR QUE PAIDÉIA? E mais, Fustel de Coulanges, em A Cidade Antiga, ensina-nos que a fundação da cidade era um ato religioso e que a religião presidia toda a vida da cidade, as cerimônias de paz e as solenidades de guerra. Essa era a razão pela qual se diz que a cidade era religiosa e a religião cívica. Vemos, então, Atenas dominada pela Acrópole e Roma pelos templos de Vesta e Juno etc., e isso quer dizer que, em primeiro lugar, os deuses não eram entidades remotas e distantes, invisíveis e problemáticas, mas entidades próximas e familiares, concebidas à imagem e semelhança dos homens, de cuja vida participavam e na qual interferiam constantemente. (O mal que tal concepção cosmológica e antropológica irá causar no desenvolver de toda sociedade humana ainda está para ser investigado e narrado com coragem). Se considerarmos ainda que a estrutura da cidade, a sua causa formal, em linguagem aristotélica, estava em função de sua razão de ser, de sua causa final, ou seja, o telos da cidade, ou da comunidade política, era a felicidade humana, a eudaimonia, que se alcança pelo exercício da virtude. Basta ver que, em Demócrito, a eudaimonia não consistia nos bens externos; em Platão, só o homem justo é feliz e a melhor vida é a vida feliz; em Aristóteles, a eudaimonia é o supremo bem prático para os homens, como conseqüência, a cidade existe para tornar possível o exercício da virtude e a realização da felicidade. Em sua estrutura material, portanto, a cidade não poderia ser um aglomerado caótico de casas e de edifícios, de ruas e de praças, mas um conjunto ordenado, cujas ruas confluíam para as praças principais, onde se erguiam os grandes edifícios destinados ao culto religioso e ao exercício do poder político. E mais, para Aristóteles, a cidade se corromperia, tornando-se incapaz de realizar o fim em vista do qual existia, se a Praça da Liberdade, ou a ágora política, se convertesse na Praça do Comércio, ou na ágora das mercadorias, ou, com outras palavras, se, no governo da cidade, os mercadores substituíssem os políticos e os magistrados. "Revela-se", portanto, que as cidades gregas não eram construídas por mercadores e comerciantes, banqueiros e agiotas, preocupados apenas com o negócio e o lucro, mas por representantes do poder espiritual e temporal, empenhados em edificar a cidade como obra de arte, como instância cultural e pedagogicamente suprema, capaz de contribuir para a segurança, a formação e a educação de seus habitantes. Nesse sentido, sendo o político a arte do possível, Peter Pál Pelbart nos lembra de um belo livro sobre a cidade, o de Ítalo Calvino, que "percebeu nitidamente essa relação entre a cidade e o possível". Ficamos então sabendo que "Marco Polo descreve ao imperador tártaro Kublai Khan a sensação que teve ao visitar Dorotéia, uma das inúmeras cidades que conheceu ao longo de suas viagens: ‘Aquela manhã em Dorotéia senti que não havia bem que não pudesse esperar da vida’." Tal sentimento, talvez, seja sentido ainda, mas (apenas porque bem tem a conotação de riqueza material ou porque o poder espiritual sempre contrabandeou "estados de ânimo, estados de graça, elegias".), quando nos situamos diante de uma obra da cidade medieval pelo que podemos observar nos resíduos de sua existência nos seus prédios, que ainda dominam por suas proporções gigantescas. São as praças dominadas por igrejas, catedrais, basílicas, ou os palácios residenciais dos reis e imperadores ou sede do poder político. Por isso uma certa, indefinível e indefectível nostalgia nos faz ficar perplexos, em Londres, diante da exuberante beleza da catedral de Westminster ou do palácio de Buckingham; em Paris, diante da catedral de Notre Dame ou do palácio do Louvre; em Roma, diante da basílica de São Pedro ou do palácio do Quirinal. Podemos citar ainda milhares de cidades como Reims, Rouen, Chartres, Colônia em que vemos se erguerem acima dos casarios circundantes, as catedrais góticas, que assinalam o apogeu da arquitetura gótica, marco da cidade medieval. Mas o fato é que raramente hoje, uma cidade como Nova York ou São Paulo pode nos transmitir a sensação reconfortante experimentada por Marco Polo ao visitar Dorotéia. Assim, observa Pelbart:
Raramente uma cidade hoje nos dá essa sensação, que às vezes buscamos em uma mulher, num livro, numa festa, embora isso se revele a cada dia mais raro: que ela evoque um mundo possível e ainda desconhecido. Não é a toa que todas as cidades descritas por Marco Polo levam nomes de mulheres, Zoé, Zemrude, Olívia, etc.. Kublai Khan acaba descobrindo, ao longo do tempo, o que Marco Polo vai buscar nessas cidades invisíveis, o que ele traz delas:..."confesse o que você contrabandeia: estados de ânimo, estados de graça, elegias". Talvez é o que, no mais íntimo, busquemos sempre numa cidade, estados de ânimo, estados de graça, elegias. Mas o Imperador também quer saber qual cidade nos espera no futuro, Utopia ou Babilônia, a Cidade do Sol ou aquela do Admirável Mundo Novo, e lamenta que no final de tudo se insinua "a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos surge num vórtice cada vez mais estreito". Ao que Marco Polo lhe responde: "O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos juntos". Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção aprendizagens contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
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Paradoxalmente, porém, aquilo que não é inferno, Deus, por exemplo, é o que mais nos faz sofrer por suas exigências superiores e quantas vezes por sua cegueira absoluta (não seria por essa razão que Cristo se apresentou como o guia e a salvação?). Mais fácil, portanto, é o primeiro caminho, que tem o poder de consolar e cegar. Ora, a Cidade, se é, não deveria ser um inferno, pois o fato insofismável é que, sendo a cidade suprema instância pedagógica e cultural, os Gregos tinham razão: como seria possível educar os seres humanos, nos estreitos limites do ginásio, da academia ou do liceu, se a cidade, desordenada e caótica, em que vivem os educandos, deseducá-los-ia, oferendo-lhes o espetáculo constante da falta de unidade, de harmonia, de proporção, de medida, de equilíbrio, o espetáculo constante da negação da beleza e da ética? Se a educação consiste em formar, em imprimir na matéria humanizável a forma do humano, como pretender formar o ser humano fazendo-o habitar não o cosmo, mas o caos? Segundo Corbisier, [22] os gregos ensinaram, entre outras coisas, e de uma vez por todas, que se educar não é conviver com a família e freqüentar o ginásio, a academia e o liceu, mas viver na cidade. A cidade é, pois, a principal, a suprema instância pedagógica, e se a cidade, em lugar de ser unidade, ordem, harmonia, proporção e equilíbrio, etc., seja caos e não cosmo, ela se converterá na negação da cultura e da pedagogia, contribuindo não para formar, quer dizer, para humanizar o homem, mas, ao contrário, para deformá-lo ou desumanizá-lo. Mas o fato de que, alerta-nos Sloterdijk, "os políticos em exercício estejam tão raramente preparados para os desafios da nova situação – intelectualmente quase nunca, moralmente às vezes, pragmaticamente menos do que mais --, constitui uma parte do mal-estar maciço, cada vez mais agudo em relação à classe política", constantemente flagrada em meio a fraudes, abusos de poder e irregularidades, e raramente revelam-se à altura dos desafios globais que urge enfrentar, e que devemos enfrentar e vencer e isso vale ainda mais para os não políticos. – Desesperador é que vencer ou perecer revela-se cada dia mais e mais como as únicas alternativas finais da história de uma cidade em nossa contemporaneidade. – E o que é pior: não sabemos (o povo, enquanto eleitores) escolher o tipo humano que seria necessário para preencher os espaços vazios e que treinamentos devem ser desenvolvidos para que seja reduzida a enorme lacuna entre a forma mundial global e as psiques locais. Como ensinar isso? Tudo isso nos instala no caos e não no cosmo. E assim é que cidades como Londres, Paris, Roma etc., nos parecem humanas, e Nova York, São Paulo etc., nos parecem desumanas. E por quê? Psicologia à parte, com a Revolução Francesa, como é sabido, a burguesia tomou o poder, instaurando a democracia liberal e o capitalismo econômico. Assim, diz-nos Corbisier:
"A vitória da burguesia significa a ascensão ao poder de mercadores e comerciantes, agiotas e banqueiros, representantes, não do poder espiritual e político, mas do poder econômico e financeiro. E esta é a razão pela qual o poder espiritual e político são então substituídos pelo poder do dinheiro. E essa é a substância de toda nossa história moderna. É verdade, o capitalismo também construiu cidades, não mais em função de valores religiosos, estéticos e políticos, mas em função de valores econômicos. E, como o capitalismo é essencialmente individualista, anti-comunitário, construiu cidades à sua imagem e semelhança, em função dos interesses dos empresários privados, do lucro e do dinheiro, como valores supremos. A grande cidade capitalista, construída sob o signo do lucro e do dinheiro, nada mais tem a ver com a cidade tal como a imaginaram os grandes sábios da Antigüidade, pois não existe para permitir aos seus habitantes o exercício da virtude, a conquista da felicidade, e não passa do cenário em que se trava a luta implacável pela sobrevivência, em que todos são inimigos de todos, em que o homem se torna o lobo do homem, como dizia Hobbes, em que a prostituição, a violência, o vício e o crime alcançam índices mais elevados. E por significativa coincidência, nessas cidades, os maiores edifícios, mais imponentes e luxuosos, não são as igrejas e as sedes do poder político, mas os bancos, onde se abriga, nos cofres subterrâneos, o deus do sistema, o dinheiro. Verificamos, assim, que a cidade é inumana, ou desumana, porque é capitalista, porque o seu deus é o dinheiro, não passando de ingenuidade pretender humanizá-la conservando o sistema que é a causa da sua desumanização".
A experiência da cidade grega morreu, é verdade. E o atletismo de estado da globalidade, parafraseando Sloterdijk, ainda não foi inscrito. E o que é mais grave, não há preparativos para o mesmo. Se os há, diz-nos Sloterdijk, há-os então somente na forma de treinamentos selvagens e autodidatas. E arremata:
"Aqui são exigidas consciências que se estabelecem firmemente no abismo do paradoxo sobre a espécie. Profissão: político. Residência principal: opacidade. Programa: pertencer-se com aqueles com os quais é difícil pertencer-se. Moral: pequenos trabalhos de desafios. Paixão: ter uma relação com a ausência de relação. Evolução: auto-recrutamento a partir de conhecimentos, que se transforma em iniciativa".
Eis, portanto, em resumo perfeito, a descrição de como podemos viver bem em um inferno. A cidade grega morreu, é verdade. Deixou-nos no entanto, o gesto desesperado, junto com seu corpo embalsamado, como último e derradeiro episódio pedagógico da cidade grega que a pesquisa histórica resgatou e a memória fixou para sempre, como conhecimento, a participação de certo Diógenes, -- de que nos fala José Américo Motta Pessanha -- do século II d.C. que perpetuou no muro de sua cidade, Enoanda, na Capadócia (Turquia Central) uma mensagem filosófica constituída por teses fundamentais da ética de Epicuro, -- filósofo grego que viveu cerca de quinhentos anos antes (século III a.C.),evidenciando, assim, qual era o verdadeiro papel e o próprio sentido da cidade grega. E foi assim, movido pelo Amor aos homens, que Diógenes, esse cidadão de Enoanda e professor em Rodes, procurou partilhar indiscriminadamente os ensinamentos do mestre com qualquer um que passasse diante da muralha de Enoanda. E lá estavam os ensinamentos dormindo através dos séculos, em Enoanda, naquelas pedras contendo curiosas inscrições, até que foram descobertas, no final do século XIX, por arqueólogos franceses. Só que no muro de Enoanda, esclarece-nos Motta Pessanha, as teses fundamentais de Epicuro aparecem nas inscrições sob a forma de tetraphármakon, quádruplo remédio composto por ingredientes das Doutrinas principais de Epicuro. Ei-lo:
- Não há o que temer quanto aos deuses.
- Não há nada a temer quanto a morte.
- Pode-se alcançar a felicidade.
- Pode-se suportar a dor.
Assim, entretanto, justifica-se Diógenes, face a realidade da miséria e da dor humanas, na parte inicial da inscrição:
"Se uma pessoa, ou duas, ou três, ou quatro, ou o número que queiram, estiver em aflição, e se eu fosse chamado a ajudá-la, faria tudo que estivesse em meu poder para oferecer meu melhor conselho. Hoje, a maioria dos homens está doente, como que de uma epidemia, em função das falsas crenças a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitação, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros. Além disso, é justo levar socorro àqueles que nos sucederão. Eles também são nossos, embora ainda não tenham nascido. O amor aos homens nos leva a ajudar os estrangeiros que venham a passar por aqui. Como a boa homenagem do livro já foi difundida, resolvi utilizar esta muralha para expor em público o remédio da humanidade".
Quer dizer, doente, a humanidade transformada em rebanho precisa de tratamento. E parafraseando Motta Pesanha, a fonte do mal, que se alastra pelo contágio do mimetismo, está detectada: as falsas crenças. As falsas crenças imobilizam, recolhem as antenas da inteligência. Sim, somos todos nós como um caracol, e o símbolo da inteligência, como nos propõe Adorno / Horkheimer, é a antena do caracol "com a visão tateante", graças à qual, a acreditar em Mefistófeles (personagem de "O Fausto", de Goethe), ele é também capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena é imediatamente retirada para o abrigo protetor do corpo; ele se identifica novamente com o todo e só muito hesitantemente ousará sair de novo como um órgão independente. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá de novo, e a distância até a repetição da tentativa aumentará. Com isso, queremos dizer que, em seus começos a vida intelectual é infinitamente delicada. O sentido do caracol depende dos músculos, e os músculos ficam frouxos quando se prejudica seu funcionamento. O corpo é paralisado pelo sofrimento físico ou pela atrofia muscular; o espírito, pelo medo, pelo desespero, pela dor, pela angústia. Quantas coisas podemos apreender simplesmente observando o caracol? Quantas? Vejamos! Em primeiro lugar, que não nos podemos esquecer de que devemos o que somos a nossa maior ou menor liberdade; a história da existência humana mostra que, outrora, nossas antenas foram dirigidas a novas e inéditas direções e não foram retiradas. Assim, toda burrice parcial de um povo ou de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar. A conclusão inevitável é que a burrice é uma cicatriz. Uma cicatriz profunda aberta na alma de um povo ou de uma pessoa. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos, esportivos ou intelectuais. Com efeito, qualquer violência sofrida por um povo ou por uma pessoa transforma a boa vontade em má. E não apenas a pergunta proibida, como também a resposta preterida, mas também a imitação do outro, a brincadeira arriscada, a humilhação etc. podem provocar essas cicatrizes. Felizmente, uma vez ferido o homem, o que move a ação curativa é o generoso sentimento de philia (amizade) que, além de sustentar intrinsecamente a filosofia, transborda – enquanto amor à sabedoria – em amor à humanidade. E se falta o amor estamos todos perdidos porque a ação do médico-filósofo ou do filósofo-médico – ressaltada desde Empédocles e Sócrates/Platão – se faz por amor à sabedoria e por isso não conhece, na linhagem epicurista, qualquer tipo de restrição quanto à escolha do paciente-discípulo: todos têm direito à cura, sem limitações sociais, econômicas, étnicas. Afinal, observa-nos Sloterdijk:
"Política é a arte de organizar laços ou forças de ligação que abrangem grandes grupos de até milhões de membros, e para além disso numa esfera de elementos comuns – seja o elemento comum nefasto do sofrimento sob a tirania ou o elemento comum saudável de uma cooperação entre pessoas competentes na democracia".
Por isso, diz-nos Motta Pessanha, a mais ampla publicidade deve ser dada ao tratamento: e eis aí a necessidade da democracia, da liberdade, da igualdade, já que o remédio deve ser oferecido a qualquer um, a qualquer passante, mesmo aos estrangeiros, pois seu valor e benefício são universais, acima das contingências de espaço e tempo. E sua preservação em pedra é justamente para que os pósteros – que também são nossos – dele possam usufruir. Essa é a função de toda Pedagogia, de toda Cultura: a preservação em pedra do que de melhor pode servir-se a humanidade. Entendemos, portanto, que é preciso fazer com que dentro dos muros da cidade contemporânea se desenvolvam outras medidas, talhadas na dimensão e na grandeza das transformações, e que devem ser implementadas para tornar possível uma nova estação da vida. Por referência a esse projeto aristotélico e grego, que também é o nosso, a felicidade humana deve ser a grande obra de uma cidade. E porque podemos terminar citando Sloterdijk:
a filosofia grega é, entre todas as das grandes civilizações, o "instituto" mais claramente motivado pelo espírito do Grande – seus co-participantes estão convencidos de que a melhor vida, sobretudo para homens, consiste em trocar com amigos todos os dias algumas palavras sobre as grandes coisas – ta megala.
Parafraseando Pelbart podemos dizer, portanto, que com a colaboração de todos os Professores e Intelectuais objetivamos com POR QUE PAIDÉIA? irrigar, primeiro com conversas e debates a nossa cidade com territórios potenciais, instaurar campos que favoreçam processos abertos, que estimulem as hibridações, as intensificações e diversificações, as redistribuições, a liberdade de todas as antenas, apostar na reinvenção do espaço pedagógico da cidade e, para que essa reinvenção tenha um suporte ideológico, urge repensar a questão da Cidade, de um Direito da Cidade na sociedade contemporânea...
REFERÊNCIAS