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Interlocução do controle interno da Administração Pública com a sociedade.

A experiência cearense

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22/07/2011 às 17:25
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2. CONTROLE INTERNO E INTERLOCUÇÃO COM A SOCIEDADE

Não se admite hoje, numa época em que se caminha, mesmo que ainda não no ritmo pretendido, para o crescimento da participação, por diversos meios e formas, da sociedade na gestão pública, que nenhum gestor público negligencie o Controle Interno. Isto é, não pode se descuidar do que se chama de auto-fiscalização na Administração Pública, notadamente a partir de quando ela se consolida como exigência de índole constitucional.

No final do século passado, Norberto Bobbio já advertia que

A exigência de publicidade dos atos do governo é importante não apenas, como se costuma dizer, para permitir ao cidadão conhecer os atos de quem detém o poder e assim controlá-los, mas também porque a publicidade é por si mesma uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que é lícito do que não é (BOBBIO, 2000, p. 42).

Em outro trecho do mesmo livro, O futuro da democracia, aquele pensador italiano declarava que

Um desses compromissos é o que se refere à visibilidade do poder. A característica da democracia – sobre a qual eu não deixei de insistir ao longo dos anos – é a da publicidade dos atos do governo, pois somente quando o ato é público os cidadãos estão em condições de julgá-lo e portanto de exercer diante dele uma das prerrogativas fundamentais do cidadão democrático, o controle dos governantes" (BOBBIO, 2000, p. 205).

Na defesa desses ideais democráticos embasadores de governos transparentes e conectados ampla e profundamente com a sociedade, outros estudiosos têm reforçado as idéias de Bobbio e outros pensadores que, na segunda metade do século XX se debruçaram sobre a questão da governabilidade na pós-modernidade. GRAHAM JR., BLEASE e HAYS, por exemplo, entendem que

Bons administradores recriarão um sentido de confiança entre governo e governados. Os administradores públicos que perdem o contato com as pessoas tornam-se corruptos ou politicamente falidos. Ao manter o contato, os administradores ajudam o governo a atender às necessidades e desejos dos cidadãos e, assim, a manter sua legitimidade (GRAHAM JR. e HAYS, 1994, p. 267).

Esses três autores, ainda sobre a responsabilidade dos administradores públicos, chamam atenção para a relação que, nessa responsabilidade, existe com os principais segmentos da sociedade, ao afirmarem que

Os administradores públicos são confrontados pela constante vigilância das forças políticas (comissões legislativas, revisores de orçamentos, inspetores, auditores), das forças econômicas (mudanças no imposto de renda, competição com organizações do setor privado que ofereçam serviços similares) e das forças sociais (a mídia, a opinião pública, as avaliações dos grupos de cidadãos) (GRAHAM JR., BLEASE e HAYS, 1994, p. 47).

A constatação das mudanças da dinâmica na democracia e a reformulação de paradigmas, naquela época, já vinham sendo ditadas por diversos fatores, entre os quais a crise da democracia representativa. Trata-se, aliás, de um debate ainda inconcluso, sobre o qual ainda recentemente (2009) se pronunciava Gustavo Costa Nassif:

A democracia representativa, assolada pela crise de legitimidade, deve ser repensada, buscando uma aproximação com o novo paradigma de democracia procedimental no qual a participação do cidadão se traduz em algo fundamental para a garantia dos Direitos Fundamentais. Para assegurar a participação, faz-se necessária a criação de instrumentos que possibilitem cada membro da sociedade ser coautor e parceiro na construção do direito (NASSIF, 2009, p. 45).

No Brasil, nos passos dos grandes pensadores estrangeiros (europeus e norte-americanos, principalmente), diversos doutrinadores no Direito, Administração Pública e outros campos do conhecimento, a partir da redemocratização do País, na década de 1980, já vinham intensificando o processo de reflexão sobre caminhos para o crescimento e consolidação das práticas de cidadania. Havia já, então, a vontade de debates modelos, propostas e diretrizes que pudessem resultar numa espécie de contraponto às deficiências, às fragilidades resultantes da crise que assolou a democracia representativa no Brasil, sendo necessária que ao funcionamento desta se aliasse o protagonismo da sociedade, que, abriga outros grupos de pressão.

Tais grupos não possuem a condição formal de democracia representativa, mas, conforme já demonstraram Noberto Bobbio e outros pensadores, acabam funcionando como se fossem, na sociedade, tipos informais de democracia representativa.

Assim, na década de 1990, Odete Medauar, só para ficarmos em um exemplo, em livro sobre os controles já consagrados na Administração Pública, já reconhecia que o controle social, nessa reconfiguração da democracia (voltando-se para uma democracia participativa complementar da democracia representativa) crescia de importância, lembrando os vários meios pelos quais pode ser realizado. Sobre a questão, ela afirmava então que

Os controles estudados enquadram-se no conceito jurídico ou técnico do controle, exposto inicialmente, segundo o qual dessa atuação decorre uma providência, medida ou ato do agente controlador. Por isso, deixaram de ser pesquisados os chamados controles sociais, ou controles não institucionalizados, tais como, passeatas, manifestações de entidades da sociedade civil, manifestações de partidos políticos, abaixo-assinados, imprensa falada, escrita e televisiva, etc. Embora tais atuações não culminem em medidas ou atos podem também contribuir, por suas próprias características de repercussão, para o aprimoramento da Administração Pública (MEDAUAR, 1993, p. 181).

Essa reconfiguração no modelo de relacionamento da Administração Pública com a sociedade, em busca de maior interatividade e transparência, veio dar margem ao surgimento do chamado e-Gov, a governança eletrônica. É esta mais condizente com os novos propósitos de integração Governo-sociedade, já que propicia novos instrumentos, sobretudo pela Internet, facilitando, com a eliminação de dificuldades tais como distância e outros, essa interlocução, básica para que se tenha uma democracia efetivamente participativa.

Sobre o assunto, refletem Paulo Alcântara Saraiva Leão, Joaquim Castro Oliveira e João Corte Magalhães nestes termos:

Na linha de transparência, podem ser implementados mecanismos que permitam a sociedade ocupar um papel mais ativo no controle e participação da vida no país, com amplo acesso a informações através dos portais. Mais que isso, dentro do conceito da governança eletrônica, os cidadãos podem inclusive ser agentes ativos na priorização do orçamento ou na tomada de decisões de governo (LEÃO, OLIVEIRA E MAGALHÃES, 2009, p. 291).

Esta observação respalda o raciocínio que se defende aqui de que, no processo educativo da sociedade para o exercício da cidadania, entre os agentes que devem se mobilizar figura o próprio Estado. Ao disponibilizar, notadamente via Internet, instrumentos com esse objetivo (tais como portais, ouvidorias, etc.), o Estado está contribuindo para capacitar e incentivar a sua utilização, numa contribuição para a educação política que se requer para o amadurecimento de uma democracia participativa e, por via de conseqüência, cidadã.

Aqueles três pesquisadores do assunto complementam a defesa da e-Gov afirmando que

O cidadão comum precisa ter acesso aos e-serviços e estar familiarizado com o computador. Com o e-Gov, os governos podem chegar mais perto dos usuários, mas obviamente eles precisam ter acesso a esses recursos e saber usá-los. É muito importante que os tele-centros possam disponibilizar, além do acesso à Internet de forma ampla, também acesso aos serviços públicos dos portais de governo (LEÃO, OLIVEIRA E MAGALHÃES, 2009, P. 294).

A viabilização do e-Gov, nos dias atuais, é que vai dimensionar o grau de transparência das ações governamentais, na razão direta do diálogo que os gestores mantêm com a sociedade, conforme constata, a partir de sua experiência no estudo do assunto, Alberto Teixeira:

A transparência em uma organização governamental pode ser medida através das formas como são tomadas as decisões, se prevalece um estilo de gestão democrática e participativa ou um modelo centralizador e autoritário. E também, pela eficácia e eficiência dos canais de interação entre o governo e a sociedade. Leiam-se os canais que possibilitam, por exemplo, a participação dos cidadãos nos processos de planejamento e na gestão, como protagonistas e praticantes da cidadania ativa: questionando, sugerindo, monitorando, divulgando, mobilizando e agindo na defesa do interesse público (TEIXEIRA, 2010, p.43).

A realidade de hoje, dessa maneira, evidencia que essa auto-fiscalização não mais pode persistir como uma caixa preta, devendo ser exercida em parceria com a própria sociedade, em consonância com a ética e todos os princípios constitucionais ou de ordem moral da Administração Pública. Se é o Controle Interno que reúne o Raio-x da gestão pública, ele tem que se abrir à sociedade, recorrendo, para esse fim, à Internet e à sua Ouvidoria, dentre outros veículos, inclusive a mídia, quando for o caso.

Essa abertura do Controle Interno ao conhecimento e à participação pela sociedade é defendida como um direito do cidadão, à luz da Constituição de 1988, naturalmente não mais como acontecia na Ágora ateniense no século V a.C., o conhecido século de Péricles. Claro que hoje os governantes não mais podem se reunir numa praça com os cidadãos, para a prestação de contas dos seus atos, porém contam com outros meios, mais modernos e mais abrangentes, para esse fim.

O exemplo dado pelos atenienses, todavia, ficaria como exemplo e até incentivo para tirar dele lições capazes de auxiliar na definição de um novo modelo de relacionamento entre governantes e cidadãos, como acentua Wremyr Scliar:

A relação entre democracia e controle da administração, exercida pelos magistrados na Grécia, é o próprio fundamento histórico que iria, muito depois, no Ocidente, permitir a construção de instituições de controle da administração pública (SCLIAR, 2009, p. 28)

Ou seja, modernamente, se o modelo ateniense de os governantes prestar contas se mostra superado, a situação de hoje não subtrai deles a obrigatoriedade dessa prestação de contas. É o que observa Oscar d"Alva e Souza Filho;

Se é impossível reunir o povo numa Ágora imensa (pela impossibilidade material ou física), é possível, no entanto, que todos os cidadãos e órgãos públicos, administrativos, privados ou públicos, tenham acesso via internet aos contratos, compras, diários oficiais e negócios públicos em geral, e assim efetivem um controle democrático da administração de sua cidade, estado ou da União. Hoje está assentado definitivamente o direito do cidadão de conhecer todos os meandros da vida administrativa, negocial e política do Estado. O governante em qualquer nível é um mandatário do povo, seu procurador e representante. Todo o proceder político há que ser claro, lúcido, transparente, sem segredos (SOUZA FILHO, 2009, p. 23).

No seguimento do que se convencionou intitular de cidadania deliberativa, Gecilda Esteves Silva chama atenção para o potencial de que esse tipo de cidadania (ponto de destaque nas teorias do pensador alemão Jürgen Habermas sobre este item) se reveste para a interlocução entre a sociedade e o Estado. A propósito, ela frisa que

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A concepção de Cidadania Deliberativa como sendo uma forma de articulação que envolve a exposição das demandas e inquietações das pessoas, por meio dos espaços sociais, contribui para o exercício do controle da administração pública na medida em que o poder público não é o único responsável pelos atos praticados. A sociedade, também, deve estar atenta à administração e as suas ações, e verificando se os atos praticados pelo administrador estão de acordo com os anseios sociais" (SILVA, 2009, p. 220).

2.1. A necessidade de ouvir a população

Uma rápida passagem pela história da humanidade mostra que sempre houve a necessidade de interação entre governantes e governados, com a mobilização de assessores e funcionários para ouvir as queixas dos cidadãos. Foi assim, por exemplo, com Moisés que, ao conduzir o povo hebreu, durante quarenta anos pelo deserto no exílio no Egito, designava assessores especialmente para receber as reclamações do contingente que Deus lhe confiara.

No próprio Egito, vários dos seus faraós escolhiam entre os seus funcionários mais graduados aqueles que ficariam responsáveis por essa interlocução com os egípcios. Missão similar foi confiada a altos funcionários na China (na dinastia de Han) e na Roma Antiga (em sua fase republicana) e, na Idade Média, em vários estados europeus, inclusive durante o período absolutista que marcou a gestão pública em diversos países do continente.

Essas vivências conduziram a um aperfeiçoamento que culminaria com a instituição, na Suécia, no século XVIII, das figura do "ombudsman", que tinha, entre suas atribuições, a de ouvidor junto à população em nome da corte sueca. O exemplo seria imitado em várias outras nações européias, derivando para o surgimento da figura do Ouvidor, adotada, mais intensivamente a partir da segunda metade do século XX, seja no setor público, seja no setor privado. Seu papel se configurava como o de fazer a intermediação entre governantes e governados, com as ouvidorias se modernizando e ganhando novo contorno com o aparecimento da rede mundial de computadores, a Internet.

A utilização de sites veio possibilitar, na área governamental, que pudessem ser disponibilizadas, on line, para a sociedade, dados sobre a realização de suas receitas e despesas, resultados de licitações, relação de fornecedores e prestadores de serviços e tantas outras informações. Esses portais vieram viabilizar também a disponibilização de links para que as Ouvidorias pudessem receber dos cidadãos denúncias, reclamações, sugestões e outras manifestações sobre os serviços públicos. Estabeleceu-se, então, um instrumento de fortalecimento para as Ouvidorias que contariam, a partir de então, com um novo instrumento, de alcance bem mais amplo junto à população, a Internet.

2.2. As Ouvidorias no setor público brasileiro

No Brasil, as Ouvidorias Públicas estão instituídas por legislação infraconstitucional local ou por decreto de iniciativa do Poder Executivo, sendo a experiência pioneira, nesses termos, a criada em 1986 na Prefeitura de Curitiba. A inevitável modernização da gestão pública ensejou a implementação desse novo meio de interação entre gestores públicos e sociedade, que, com a instalação das Controladorias Gerais (União, Estados e Distrito Federal), foi adotada também como instrumento de trabalho pelo Controle Interno nesses entes federativos.

O significado da utilização das Ouvidorias como mais um passo para o fortalecimento do Controle Interno na Administração Pública, é ressaltado por Victor Faccioni, para quem

Tratar os contribuintes como clientes requer uma constante avaliação sobre qualidade e oportunidade dos serviços prestados bem como as reais necessidades dos consumidores. O processo recomendado para alcançar estes objetivos principia na disponibilização de canais ao cidadão, onde, sinteticamente, podemos classificá-los em dois momentos: a participação prévia, através da participação cidadã, em especial nas fases de elaboração e discussão dos planos e orçamento e a participação "a posteriori’, através dos instrumentos de monitoração e controle como a execução dos programas aprovados, ou a avaliação das qualidades dos mesmos. (FACCIONI, 2005/2006, P. 180).

Faccioni preocupa-se não apenas com a fase de elaboração, discussão e aprovação das leis orçamentárias, mas também com o acompanhamento da execução destas pela sociedade. É o que ele chama de controle a posteriori pela população, para o que considera um instrumento importante justamente a Ouvidoria:

É especificamente sobre o controle "a posteriori" que se insere o instituto da Ouvidoria. A possibilidade do cidadão (contribuinte, consumidor ou cliente) expressar sua opinião sobre a prestação dos serviços públicos, ou mesmo fiscalizar os atos desses agentes (mandatários, gestores ou servidores) representa, ao fim e ao cabo, um fortalecimento da cidadania" (FACCIONI, 2005/2006, p. 180)

Para Paula Cristina Bataglia Bugarin, a Ouvidoria Pública "é essencialmente uma ferramenta de relações públicas que se estabelece como um canal de comunicação de duas vias com o cidadão, facilitando o diálogo cidadão-Estado" (BUGARIN, 2008, p.32).

Ricardo Martins Pereira não pensa diferentemente, ao ressaltar o parágrafo 3º do art. 37 da Constituição Federal de 1988, o qual determina que órgãos públicos mantenham serviços visando a avaliação periódica dos serviços públicos, entre os quais, alguns que possibilitem ouvir o cidadão a respeito desses serviços, como é o caso das Ouvidorias.

O texto constitucional não desce a detalhes quanto ao assunto, mas permite a interpretação intensiva de que tal avaliação não deve ficar circunscrita aos gestores e suas equipes, não dispensando, pois, a contribuição popular. É assim que raciocina PEREIRA:

É neste contexto que está inserida a Ouvidoria, como órgão receptor das reivindicações dos usuários dos serviços públicos, que, muitas vezes, ficam perdidos sem saber a quem recorrer e quais são os seus direitos. Esta função, que deveria existir em todo Estado Democrático, estava ausente na administração pública brasileira. Contudo, começamos a ver, em diversos órgãos públicos, o surgimento de Ouvidorias, que estão preenchendo, com muito sucesso, este espaço vazio". (PEREIRA, 2010, p. 1).

O significado das Ouvidorias como meio de participação popular na Administração Pública, na mesma linha de Ricardo Pereira, também é reconhecido por Gustavo Costa Nassif, para quem

As funções exercidas pelas Ouvidorias Públicas assumem um caráter administrativo, como poder de iniciativa nos processos de indagação, encaminhando e cobrando dos órgãos da administração públicas as providências sobre suas queixas, reclamações e denúncias, sem, contudo, arrogar-se suas competências (NASSIF, 2009, p. 54).

Portanto, mesmo ressalvando a inexistência de poder vinculante para as manifestações registradas via Ouvidorias Públicas, Nassif não desconhece a validade de que estas se revestem como instrumentos de controle social. A respeito, assim se pronuncia:

Seus poderes constituem-se naqueles de persuasão e influência em relação às autoridades administrativas, devendo aconselhar-se os dirigentes de órgãos da administração pública a propor ações jurisdicionais, legislativas e/ou correcionais. Verificada sua inércia, as Ouvidorias Públicas poderão provocar os superiores hierárquicos dos órgãos da própria administração ou o Poder Legislativo ou, ainda, os demais órgãos de controle, como os Tribunais de Contas, a tomar as providências a fim de corrigirem as disfunções administrativas (NASSIF, 2009, p. 54)

O fortalecimento da cidadania pressupõe que os gestores públicos devem atuar de modo participativo e transparente, expondo o que está fazendo e sobre seu desempenho auscultando a população. O cidadão, portanto, tem o direito (de que não deve abrir mão, a não ser por desconhecimento dos seus direitos) de ter à sua disposição, proporcionados pela Administração Pública, instrumentos que lhes assegurem conhecimento e participação nos resultados da atuação dos gestores públicos.

Trata-se, aqui, da obrigação dos gestores públicos de atenderem à exigência, pela sociedade, de que atendam ao princípio da publicidade, esta logicamente com um sentido que vá bem além da mera publicização de atos administrativos. Trata-se aqui, da obrigatoriedade do cumprimento de um outro princípio constitucional, a moralidade, ou seja, de um firme compromisso ético que pressuponha a prática da accountability.

Vocábulo do idioma inglês ainda sem uma tradução perfeita para a língua portuguesa, accountability significa dizer responsabilização política, obrigatoriedade do gestor público de, pelos melhores meios e formas possíveis, prestar contas à coletividade dos atos a ele confiados pela população. Implica, como se observa, a definição de formas e procedimentos para que o cidadão possa acompanhar e participar do que está sendo feito na gestão pública, um avanço no esforço para nesta inibir aquilo que Norberto Bobbio denominava de poder oculto.

Na segunda metade do século XX, aquele pensador político italiano advertia para os perigos do poder oculto, ensejador, facilitador, conforme advertia, da corrupção na gestão pública. Em seu O futuro de democracia, ele já se debruçava sobre o assunto, que iria retomar no livro Direitos e deveres na república: os grandes temas da política e da cidadania, que reúne conversas suas, no início do século XXI, com o cientista político, também italiano, Maurizio Viroli.

No diálogo com o seu patrício e discípulo, Bobbio, como que antevendo o agravamento da incidência de casos de corrupção no setor público, deixa esta advertência para os tempos atuais

O máximo da corrupção corresponde ao máximo do segredo. O pagamento de um contrato regular deve ocorrer sob a luz do sol; o dinheiro dado ao corrupto é dado nas sombras. O contrato juridicamente legal é público; a relação de corrupção acontece em segredo. Mais os corruptos sentem-se protegidos dos olhares, mais sentem-se seguros parta cumprir atos ilícitos" ( BOBBIO e VIROLI, 2007, P. 111)

Neste ponto, Bobbio ressalta o valor da democracia como caminho assecuratório para a transparência no setor público, observando que "a democracia é a tentativa de tornar o poder visível a todos; é, ou deveria ser, ‘poder em público’, ou seja, aquela forma de governo em que a esfera do poder invisível está reduzida ao mínimo" (BOBBIO e VIROLI, 2007, p. 106).

2.3. Controle social: um avanço na sociedade democrática

Considerando-se o que foi posto até aqui, não se pode omitir a importância do controle social, um instrumento democrático no qual há a participação dos cidadãos no exercício do poder. Coloca a vontade social como fator de avaliação para a criação e metas a serem alcançadas no âmbito das políticas públicas, sobretudo aquelas que mais de perto dizem respeito às necessidades básicas da população.

O controle social pressupõe um avanço na construção de uma sociedade democrática, capaz de determinar alterações profundas nas formas de relação do Estado com o cidadão. Por meio do controle social, é possível criar mecanismos destinados à integração dos cidadãos no processo de definição, implementação e avaliação das ações na gestão pública., especialmente por intermédio dos Portais da Transparência, Ouvidorias, realização de audiências públicas e outros meios.

Com o controle social crescente, será possível garantir serviços de qualidade, a partir do momento em que o Estado, indo além da execução e gerenciamento desses serviços, buscar e até estimular o controle direto e a participação da sociedade. Além disso, o controle social é uma forma de se estabelecer uma parceria eficaz e gerar a partir dela um compromisso entre poder público e população que venha a garantir a consecução de saídas para o desenvolvimento econômico e social do país.

Em todas as partes do Brasil é possível ver comunidades se organizando na defesa de seus interesses e trabalhando para diminuir e mesmo corrigir inúmeras desigualdades por meio do acesso a bens e serviços que lhes assegurem os seus direitos fundamentais. Logo, controle social abre espaços para a descentralização das atividades do Estado em direção à sociedade.

Esse processo se desenvolve pela participação da sociedade na gestão pública e na efetiva possibilidade do cidadão de controlar instituições e organizações governamentais para verificar o bom andamento das decisões tomadas em seu nome. Nessa vertente, tem se reivindicado dos gestores públicos, para incremento do controle social sobre o desempenho deles, não apenas a instrumentalização do ponto de vista material e humano, mas também a formação de um embasamento normativo técnico e jurídico para o controle social.

Esta linha de raciocínio já é motivo de discussão na Presidência da República, onde existe um anteprojeto de lei que estabelece normas gerais sobre a administração pública direta, as entidades paraestatais e as de colaboração na União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Em um reconhecimento à dimensão político-institucional que ele assumiu, no esforço em prol do fortalecimento da cidadania no Brasil, o controle social está recepcionado nesse anteprojeto, mais especificamente no artigo 66, cujo teor é o seguinte:

Art. 66. Controle social dos órgãos e entidades estatais é o exercido pela sociedade civil, por meio da participação nos processos de planejamento, acompanhamento, monitoramento e avaliação das ações de gestão pública e na execução das políticas e programas públicos.

Chama atenção no texto do anteprojeto a conexão que, no âmbito da administração pública, em todos os entes federativos, ele estabelece entre controle social e ouvidorias públicas, conforme se depreende do artigo 68, que tem este teor: "As entidades estatais buscarão manter ouvidorias, com o objetivo de receber e examinar reclamações, elogios e sugestões".

Surgem, nestas circunstâncias, o desafio e o momento de transformar o Estado verdadeiramente em um realizador da cidadania, com a fruição dos direitos básicos para todos, o que somente é viável com governos que ajam em interação com a população, equilibrando forças e interesses inerentes aos diversos segmentos da sociedade.

Com essa finalidade, é garantido para o cidadão-contribuinte todo um potencial, que começa pela Constituição Federal de 1988 (em que estão recepcionados mais de cinquenta instrumentos de cidadania) e alcança as gestões públicas, que, por seu lado, estruturam Ouvidorias e outros meios para o controle social. Mesmo assim, são constantes os questionamentos de que a população não faz uso de todo esse potencial, tornando-se este ineficaz, pela não utilização, decorrente do desconhecimento, pela coletividade, de que ele existe.

Por isso, torna-se inadiável educar a população para reforçar a contribuição que ela pode proporcionar no sentido de melhorar, em todos os sentidos, as gestões sociais, por meio dos mecanismos de controle. Conselheiros de Tribunais de Contas e outros estudiosos têm advertido para a importância dessa ajuda da sociedade, auxiliando, de forma proativa, na atuação de Controle Externo sobre as gestões públicas exercida por essas Cortes de Contas, conforme salienta Helio Saul Mileski:

O controle social é complementar ao controle oficial e depende deste último para ter eficácia. O controle social, para fazer valer as suas constatações contra irregularidades praticadas pelo Pode Público, deve buscar a própria Administração para correção das falhas encontradas, representar aos integrantes do sistema de controle interno, denunciar os fatos ao Tribunal de Contas ou representante do Ministério Público (MILESKI, 2005, p. 41).

2.4. Educando para o controle social e cidadania

A abordagem que se faz acima remete para a questão da educação política, da educação para a cidadania, que deve ser tarefa compartilhada entre diversas instituições: a escola, os Tribunais de Contas, as Controladorias e Ouvidorias Públicas, as redes sociais, as organizações da sociedade civil, a mídia e outras. Somente com uma ampla convergência de esforços nesse sentido é que será alcançada a consciência coletiva do direito e dever de participação no cotidiano da esfera pública.

O assunto tem motivado análises por especialistas de diversas áreas de conhecimento, preocupados com a evolução do nível de conscientização das massas quanto aos seus direitos no contexto da gestão pública. Vários deles entendem que iniciativas nesse sentido devem começar pelas próprias autoridades governamentais, citando-se o exemplo de César Muñoz, para quem

A informação deve circular em todos os sentidos. Informação na ida, informação na volta. Eu lhe solicito informação, mas antes o informo. E, além disso, solicito-a de você, esclarecendo que você é imprescindível para mim, pois sem sua informação minha ação será menos válida ou quase nula, fruto da ausência de uma parte da informação que só quem a vive tem em profundidade (informação unida a sentimentos, a vivências), a pessoa que vive uma realidade concreta" (MUÑOZ, 2004, P. 74)

Trata-se de um chamamento à formação de uma cidadania crítica, motivo de posicionamento de um outro educador, Henry Giroux, nos seguintes termos:

Igualmente importante é a necessidade da escola cultivar um espírito de crítica e um respeito pela dignidade humana que sejam capazes de associar questões pessoais e sociais em torno do projeto pedagógico de ajudar os alunos a se tornarem cidadãos críticos e ativos". (GIROUX, 1987, p. 102)

Desse modo, também à escola cabe parcela dessa responsabilidade de construção de uma cidadania crítica e ativa, opinião pela qual se põe a favor Demerval Saviani, ao acentuar que "a importância política da educação reside na sua função de socialização do conhecimento" ( SAVIANI, 1987, P. 92).

Moacir Gadotti reforça esta linha de pensamento, ao afirmar que

A escola não é a alavanca da transformação social mas essa transformação não se fará sem ela, não se efetivará sem ela. Se ela não a alavanca, isso significa, ainda, que a sua luta deve estender-se além dos muros da escola, não deve limitar-se ao seu "campus", o que a ideologia dominante entendeu há muito tempo, querendo limitar o conflito aos muros dos "campi". (GADOTTI, 2001, p. 73).

O desenvolvimento da cidadania é destacado também por Antônio Araújo da Silva, considerando que "o principal ingrediente para desenvolver a cidadania é a educação. As práticas de cidadania têm de ser incentivadas desde a escola para que se conscientize a sociedade dos seus deveres e direitos" (SILVA, 2009, p. 77).

Ressalta-se o papel da escola com vistas à consecução de uma cidadania crítica, porém, como já dito, sem dispensar a necessidade de que o Estado, simultaneamente, cumpra a sua parte. Disponibilizar instrumentos de cidadania, incentivando a sua utilização, é uma ação pedagógica que o Estado pode adotar, conforme o já mencionado Antônio Araújo da Silva, ao defender o ponto de vista de que "é indiscutível que governo e sociedade precisam partilhar informações num processo de mão dupla, cujo objetivo é sempre a defesa do erário e a eficiente aplicação dos recursos disponíveis" (SILVA, 2009, p. 11).

Outro não é o pensamento de Gabriela Soares Balestero, ao argumentar que "é necessário criar instituições que canalizem o direito à participação direta na gestão política, de maneira a qualificar as políticas públicas, dando-lhes maior eficiência, pois alcançarão efetivamente as necessidades da comunidade" (BALESTERO, 2010, p. 13). Segundo ela, "o tipo ideal de democracia é aquela em que há um aprofundamento da identidade popular, possibilitando que as funções públicas sejam exercidas com maior participação dos cidadãos, criando-se novos espaços públicos e novos agentes" (BALESTERO, 2010, p. 13).

De igual modo se pronuncia José Matias-Pereira, ao afirmar, quanto a essa participação, ser importante, na Administração Pública, "o desenvolvimento de ações e práticas que envolvam de forma crescente a participação direta dos cidadãos na formulação e implementação de políticas públicas" (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 246).

Já o educador canadense Edmund O’Sullivan externa o ponto de vista de que, na era da globalização, a noção da cidadania reinsere-se em statusprimordial, assim se expressando:

A noção de cidadania volta para o primeiro plano. Uma cidadania alerta é o último obstáculo para as atividades de políticos e instituição comerciais e financeiras. Um governo efetivo vai depender de os indivíduos exercerem seus direitos e responsabilidades, como fiscalizar atividades do governo." (SULLIVAN, 2004, p. 366).

Centrando-se no caso brasileiro, o que se pode deduzir é que, se não se atingir no País uma convergência de esforços dos vários setores, oficiais e não oficiais, em prol do amadurecimento do exercício da cidadania, muito do que está na Constituição e na legislação sobre o assunto continuará sem cumprimento, deixando de redundar em resultados práticos para a sociedade. Não se nega a validade da aprovação de novas leis para a cidadania, mas de nada valerão se não alcançarem a sua efetividade.

Não se pode ignorar, também, no âmbito governamental, a instrumentalização e iniciativas objetivando o fomento a essa cidadania. Contudo, esse esforço todo terá sido em vão enquanto a grande maioria da população desconhecer a existência de todo esse arcabouço legal e dele, por ignorância, pela ausência de educação política, não se utilizar.

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Sobre o autor
José Ossian Lima

Jornalista e radialista. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do ceará (UFC) e Especialista em Administração Pública pela Faculdade Ateneu. Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará (TCM-CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, José Ossian. Interlocução do controle interno da Administração Pública com a sociedade.: A experiência cearense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2942, 22 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19601. Acesso em: 19 abr. 2024.

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