Os mutirões carcerários foram uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça – CNJ em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP. De início, esse projeto se baseava em ato normativo, consoante se depreende da Resolução Conjunta 01/2009– CNJ/CNMP, mas o Congresso Nacional editou a Lei nº 12.106, de 02 de dezembro de 2009 que, expressamente, em seu art. 1º, parágrafo 1º, III prevê a realização dos mutirões para reavaliação da prisão provisória e definitiva, da medida de segurança e da internação de adolescentes e para o aperfeiçoamento de rotinas cartorárias.
A lei é clara em determinar que os mutirões carcerários ocorram com freqüência para, entre outras ações, reavaliar a prisão provisória e definitiva. Assim, pois, fica a indagação de como essas prisões devem ser reexaminadas, já que a lei não desce a minúcias.
Se por um lado, a norma legal não dá elementos precisos quanto à forma de reavaliação dessas prisões, por outro, determina que o seja por meio de mutirões. Aí está a pedra de toque da interpretação.
Com efeito, dentre os significados disponíveis nos dicionários podemos compreender mutirão como mobilizações coletivas para lograr um fim [01]. Trazendo a idéia para a realidade dos mutirões carcerários tem-se que os processos onde hajam prisões provisórias ou decorrentes de sentença condenatória já em execução, necessariamente serão reexaminados por um grupo de juízes em mutirão, e não apenas pelo condutor do feito.
A conjugação dessas duas palavras, reavaliação e mutirão,nos permite inferir que a própria lei quis prestigiar outros princípios constitucionais, como a duração razoável do processo e o da dignidade da pessoa humana,em contraponto ao do juiz natural. Até porque, a doutrina constitucionalista reconhece há tempo que nenhum princípio constitucional é absoluto. Ao contrário, são todos relativos e flexíveis, viabilizando a convivência entre si. A propósito, atenta Robert Alexy, em sua teoria dos direitos fundamentais, "existe uma relação material" de "precedência condicionada" entre os direitos fundamentais e, "nos casos concretos os princípios têm diferente peso, prevalecendo o princípio de maior peso" [02].
Os mutirões realizados ao longo dos três últimos anos por todo o País revelam uma realidade estarrecedora e preocupante de violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e da duração razoável do processo. As vias processuais e recursais normais acabam não sendo suficientes para ensejar o adequado cumprimento dos prazos previstos na Lei de Execução Penal. Muitas vezes, determinados benefícios só são concedidos por força do mutirão.
Evidentemente que nos diversos casos de desobediência explícita à LEP, se se entendesse que os mutirões ofendem o princípio constitucional do juiz natural, outros igualmente caros – dignidade da pessoa humana e duração razoável do processo – continuariam sendo violados, desrespeitados, olvidados. Não parece, pois, ser a mens da Magna Carta. Daí a necessidade de sopesar os ditos princípios, extraindo-se eventual prevalência de um deles.
Ademais, o princípio do juiz natural, na ótica de hoje, é aquele que veda a designação casuística de juiz para uma atuação particularizada. A esse respeito, esclarece Jorge de Figueiredo Dias:
O que o princípio quer proibir é apenas, como atrás dissemos, a criação post factum de um juiz, ou a possibilidade arbitrária ou discricionária de se determinar o juiz competente. Em um caso como no outro estaríamos então, na verdade, perante actos políticos norteados somente pela raison d’État, que acabam inevitavelmente se dirigir "a um tratamento discriminatório e por isso incompatível com os cânones do Estado-de-direito [03].
E é sob essa roupagem do princípio do juiz natural que o Superior Tribunal de Justiça, por mais de uma vez enfrentou a questão, reiterando não haver qualquer violação. Eis acórdãos elucidativos:
AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS NS. 282 E 356 DA SUPREMA CORTE. ANÁLISE DE LEI LOCAL. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REGIME DE "MUTIRÃO". VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. NÃO-OCORRÊNCIA. REEXAME DE PROVA. SÚMULA N. 7/STJ. 1. A ausência de prequestionamento da questão federal suscitada impede o conhecimento do recurso especial (Súmulas ns. 282 e 356 do STF). 2. É inviável, em sede de recurso especial, o exame de eventual ofensa a dispositivos de legislação estadual, circunstância que atrai a aplicação, por analogia, da Súmula n. 280 do Supremo Tribunal Federal. 3. A orientação jurisprudencial do STJ firmou-se no sentido de que o regime de "mutirão" não fere o princípio do juiz natural, notadamente quando a questão discutida nos autos independe da produção de provas em audiência. 4. Descabe ao STJ, em sede de recurso especial, revisar a orientação adotada pelas instâncias ordinárias quando alicerçado o convencimento do julgador em elementos fático-probatórios presentes nos autos (Súmula n. 7/STJ). 5. Agravo regimental improvido. [04]
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. JUIZ CONVOCADO.COMPETÊNCIA. PROVIMENTO. MUTIRÃO. AFRONTA NÃO VERIFICADA. ADICIONAL POR TEMPO DE SERViÇO. LEI 3414/ 58. REVOGAÇÃO. LEI 4439/ 64. IMPOSSIBILIDADE.Ao instituir o regime de "mutirão" por meio do Provimento n. 24, a primeira instância não feriu o princípio do juiz natural, não havendo falar-se em incompetência do juiz prolator da decisão. Impertinente a alegação de afronta a dispositivo da Lei 3. 414/ 58, eis que revogado pela Lei 4439/ 64. Recurso desprovido. [05]
De se destacar que a EC 45/2004 trouxe para o nosso ordenamento constitucional uma extrema preocupação com a celeridade processual, principal reclamação da sociedade em relação ao Poder Judiciário e mola propulsora da Emenda. Mudou muito a fisionomia desse Poder com a criação do Conselho Nacional de Justiça, Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, súmula vinculante e estabelecimento de novos valores no sentido de tornar mais prática e desburocratizante a ação judicial.
Nessa perspectiva, a inserção do princípio da razoável duração do processo entre as garantias fundamentais asseguradas a cada indivíduo (art. 5º, LXXVIII), requer seja o princípio do juiz natural interpretado cum grano salis, de modo a conferir eficácia máxima à dignidade da pessoa humana e aos valores constantes do rol do art. 5º da Constituição Federal. Tudo com vistas à efetiva e pronta entrega da prestação jurisdicional.
Em arremate às argumentações supra, é possível concluir que inexistindo designação casuística de juízes para atuarem em processos específicos, e contando os magistrados com independência e imparcialidade, não se vislumbra qualquer ofensa ao tantas vezes citado princípio do juiz natural.
Notas
- Enciclopédia Wikipedia, disponível em http://pt.wikipedia.org.
- ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução para o espanhol de Ernesto GarzónValdés. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 89, tradução livre.
- DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Primeiro Volume. Coimbra: Coimbra Editora,1974, p. 326.
- STJ, AgRg no Ag 828862 / PR, AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2006/0205541-8, Relator Ministro: JOÃO OTÁVIO DE NORONHA , DJ de 23.11.2007, p. 458.
- STJ, REsp 389516/PR, Relator Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Quinta Turma, DJ de 09.06.2003, p. 286.