4 – Análise de Caso Prático de Estupro de Vulnerável à Luz do Conceito Material de Crime e da Teoria da Tipicidade Conglobante
Amplamente divulgado pela imprensa nacional foi o caso do rapaz W., à época com 18 (dezoito) anos de idade, flagrado no cinema de um Shopping de São Paulo trocando beijos com um menino de 13 (treze) anos.
Ouvida pela Polícia, a vítima disse não ter sido constrangida a nada e que beijou o maior por "vontade própria" [22].
O autor foi preso em flagrante e indiciado por estupro de vulnerável.
Em entrevista, a autoridade policial responsável pela ratificação da prisão em flagrante disse que o crime era grave e que a nova lei, mais severa, carrega o intuito de coibir essa prática delitiva. O Delegado disse ainda que o consentimento do menor de nada vale e que, por isso, era sua obrigação prender o autor dos fatos [23].
Comentando o caso para a imprensa, o Desembargador Antônio Carlos Malheiros, coordenador da infância e da juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entendeu que:
"Tecnicamente é correto, porque o menino menor de 14 anos de idade que está sofrendo, foi atingido por um maior de idade que está praticando com ele algum ato libidinoso. [...] é estupro de vulnerável [24]".
O primeiro ponto digno de análise no mencionado caso diz respeito à abrangência do termo "ato libidinoso". Beijos lascivos podem receber o mesmo tratamento jurídico criminal que a conjunção carnal?
Para Guilherme de Souza Nucci, o beijo destinado à satisfação do desejo sexual, desde que dado na boca e com a introdução da língua, é ato libidinoso diverso da conjunção carnal e, portanto, suficiente para caracterizar a elementar "outro ato libidinoso" do tipo penal expresso no artigo 213 do código penal, bem como do artigo 217-A, ambos do Código Penal brasileiro [25].
Cezar Roberto Bitencourt fez leitura diversa, sob o manto do princípio da proporcionalidade. Referido doutrinador leciona que falta aos beijos lascivos "danosidade proporcional, que se encontra no sexo anal ou oral violentos, sendo impossível equipará-los [26]". Assim, recomenda que, tendo sido os beijos lascivos praticados em público, haja desclassificação para a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor e, quando não forem praticados em público, reconheça-se a incidência do princípio da insignificância.
Anote-se que as considerações feitas por Cezar Roberto Bitencourt referem-se ao artigo 213 do Código Penal, estupro. Ocorre que, com relação ao artigo 217-A, o autor não faz nova abordagem do que se deve entender como ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Entendemos que o beijo lascivo em crianças pode, sim, ter relevância penal.
Objetivamente, não parece fácil determinar o tratamento jurídico criminal a ser dado ao beijo lascivo em menor de 14 anos. Como defendemos no curso da presente leitura, a análise deve ocorrer com vistas ao conteúdo material da conduta. Imagine-se, por exemplo, como vítima, uma criança de oito anos de idade, indubitavelmente incapaz de discernir a prática de atos libidinosos. Possivelmente, a conduta de beijá-la, à força ou não, praticada por um maior de idade, implicaria traumas de ordem psicológica à vítima. Ainda que assim não seja, o simples fato de o menor não compreender o conteúdo do ato libidinoso que o envolve é suficiente para que haja ofensa à sua dignidade sexual. Nesse diapasão, contrariando a recomendação de Cezar Roberto Bitencourt, acreditamos que não deve incidir o princípio da insignificância ao beijo lascivo quando praticado em desfavor de menor de doze anos, ainda que com consentimento, pois tal conduta se reveste de periculosidade social, reprovabilidade e lesividade. Não se mostra razoável admitir, de qualquer forma, que crianças incapazes de compreender a prática de atos libidinosos sejam usadas como objetos de satisfação sexual. Aliás, tratar-se-ia de proteção estatal deficiente, em detrimento do sistema de proteção integral à criança e ao adolescente constitucionalmente consagrado. Desta forma, para nós, o beijo lascivo pode caracterizar o crime de estupro de vulnerável se as circunstâncias como, por exemplo, o reduzidíssimo grau de discernimento da vítima, evidenciarem ter referida conduta sido suficiente a ofender o bem jurídico tutelado pela norma penal sem que, com isso, fale-se em desproporcionalidade com relação à prática de outros atos libidinosos. Constranger uma criança a beijar o infrator pode ser tão danoso quanto forçá-la à prática de sexo oral, por exemplo. Eventuais desproporcionalidades podem ser corrigidas na individualização da pena. Se necessário, deve haver análise psicossocial da vítima para melhor afe rir as conseqüências do delito. Um beijo lascivo único no "vulnerável", por exemplo, pode representar a fixação da pena-base no mínimo legal - sem prejuízo da análise das demais circunstâncias judiciais, é claro. Já se esse mesmo beijo for praticado na mesma ocasião em que se realiza com o menor outro ato libidinoso, as circunstâncias do delito, claramente, implicariam maior reprovabilidade da conduta e fixação da pena-base acima do mínimo legal.
Ocorre que não é essa a situação do caso em análise. Trata-se de conduta materialmente atípica! O menino de treze anos marcou seu encontro com o autor dos fatos via Internet, saiu de sua casa para encontrá-lo sozinho e se dirigiu até o local acertado; consentiu, plenamente ciente das intenções que circundavam o encontro, ingressar nas dependências do cinema com o maior e, voluntariamente, beijou o rapaz. Evidentemente, a situação seria diversa se o sujeito passivo fosse uma criança imatura a ponto de imaginar que o interesse do homem preso em flagrante se resumia ao filme em cartaz e fosse surpreendida com beijos, para ela, inimagináveis. Ocorre que a vulnerabilidade presumida pela lei, in casu, não existia, o que se visualiza ictu oculi.
De que vale a intervenção do Direito Penal nesse caso concreto? Serve para garantir o livre desenvolvimento sexual da vítima? Na verdade, o que a traumatizou, sem dúvida, foram os efeitos da persecução penal originada de seu encontro, não os "beijos lascivos". O Estado estorvou o livre desenvolvimento sexual do jovem que ocorria em ritmo normal - um encontro num cinema e alguns beijos. O menor foi vítima da violência institucionalizada do sistema processual penal – a denominada vitimização secundária [27]. Não se faz necessário muito refletir para imaginar o quão vexatório foi para o adolescente prestar esclarecimentos perante as autoridades acerca do seu encontro.
O que mais chama atenção, contudo, é a postura das autoridades envolvidas.
O Delegado de Polícia Civil que ratificou o flagrante entendeu que estava no cumprimento de seus deveres. É dever da Polícia Civil realizar prisões de pessoas que praticam fatos atípicos?
Em verdade, o juízo inicial acerca do caráter criminoso de fato atribuído a alguém cabe exatamente à autoridade policial, que só deverá lavrar o auto de prisão em flagrante quando entender verificada a tipicidade da conduta [28]. Esse é o dever do Delegado de Polícia: exercer com cautela o juízo provisório do fato.
Se a doutrina [29] admite que, excepcionalmente, as autoridades policiais podem apreciar até mesmo a existência de causas excludentes de ilicitude, quando manifestas, não obstante o disposto no artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal [30], resta evidente que acurada análise da tipicidade da conduta, a princípio, fica a cargo do delegado de polícia e não se restringe à tipicidade formal, pois é razoável que proceda à apreciação do conteúdo material da conduta nas hipóteses em que se evidenciar a ausência de afetação (por lesão ou exposição a perigo) do bem jurídico tutelado pela norma. Por isso, no caso em estudo, não deveria ter sido ratificada a prisão em flagrante do acusado.
Por fim, em que pese o notório brilhantismo do Professor Antônio Carlos Malheiros, não se pode deixar de mencionar que sua declaração, nesse caso específico, denota certo apego à teoria causalista por parte dos profissionais do Direito que atuam na seara penal.
5 – Conclusão
A análise do crime de estupro de vulnerável à luz do princípio da ofensividade e da teoria da tipicidade conglobante possibilita a conciliação do desvalor contido no tipo com o presente contexto social, bem como confere compatibilidade à norma penal incriminadora com relação a outros atos normativos de nosso ordenamento jurídico. Tal leitura, contudo, não se mostra presente na prática criminal. Isso porque, ainda que não admitam, os doutrinadores e operadores do Direito Penal no Brasil ainda possuem certo apego à teoria causal, fato que acarreta, na prática, evidentes injustiças, tais como as cometidas contra o rapaz W., etiquetado, em patente exagero das autoridades responsáveis pela persecução penal, como "estuprador". O tratamento jurídico criminal dispensado a crimes sexuais praticados em desfavor de crianças e adolescentes, indubitavelmente, justifica resposta penal severa para que tais práticas sejam coibidas. Entretanto, avanços legislativos nesse sentido devem ocorrer de forma coerente e de acordo com o meio social. Ademais, em matéria sexual, o legislador criminal deve se atentar para que não adote postura moralista, em detrimento da verdadeira finalidade do direito penal – promover a tutela dos bens jurídicos.
REFERÊNCIAS
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BITENCOURT, Luciane Potter. Vitimização secundária infantojuvenil e violência sexual intrafamiliar. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte geral. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2010.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2008
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10ª Edição. p. 907 São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. p. 581. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010.
ROXIN, Claus. Derecho Penal, Parte General – Tomo I: Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Madri: Civitas, 1997
SARAIVA, R. Jovem que beijou menor em cinema cometeu crime grave, diz delegado. Band, São Paulo, 12 nov. 2010.
THOMAZ, K. Jovem de 18 anos é preso por beijar garoto de 13 em shopping. G1 / Globo, São Paulo, 11 nov. 2010.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Tratado de Derecho Penal – Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1981.
Notas
Acesso em: 26/06/2011
- SENADO FEDERAL – Projeto de Lei n.º 253/2004. Senador Relator Demóstenes Torres. Parecer disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/62985.pdf, acesso em: 23/06/2011. Grifos nossos.
- Entendendo ser "juris tantum" a violência presumida por força dos artigos 213 e 214, em combinação com o artigo 224, todos do código penal, antes do advento da lei n.º 12.015/2009, v. STJ, REsp 637361; STJ, REsp 494792.
- BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal - parte especial. Vol 4. 5ª Ed. p. 95. São Paulo: Saraiva, 2011.
- STJ - EDcl no AgRg no AI Nº 706.012 – GO. Quinta Turma. Min. Rel. Laurita Vaz. J.: 23/02/2010; DJe.: 22/03/2010 – v.u.
- STJ – REsp 494792 / SP. Sexta Turma. Min. Rel. Celso Limongi (desembargador convocado do TJSP). J.: 02/02/2010; DJe.: 22/02/2010.
- ROXIN, Claus. Derecho Penal, Parte General – Tomo I: Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. P. 51 e 52. Madri: Civitas, 1997.
- Classificando assim a ausência de ofensividade significante ao bem jurídico: STJ - HC 187310 / PA, HC 112840 / SP, entre outros.
- STF – HC 84412. Min Rel. Celso de Mello. DJU: 19/04/2004.
- ROXIN, Claus. Op. Cit. p. 51.
- Apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit. p. 96
- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª Edição. p. 129 . Rio de Janeiro: Forense, 2008.
- Apud CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – parte geral. 12ª ed. p. 128/129 São Paulo: Saraiva, 2008.
- BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 3ª Edição. p. 177 São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002.
- ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 4ª ed. p. 458. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
- Cabe anotar que na teoria ora trabalhada os autores retiram o "estrito cumprimento do dever legal" do âmbito da exclusão de ilicitude, como adotado no Código Penal, em seu artigo 23, III, e o colocam como causa excludente da própria tipicidade.
- V. ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Op. Cit. P. 68/69.
- Em defesa da teoria do direito infracional, o Prof.º Valter Kenji Ishida (2010, p. 199).
- ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Tratado de Derecho Penal – Parte General. Tomo III. p. 233/234 Buenos Aires: Ediar, 1981.
- STJ – REsp – 1103032. Sexta Turma. Min. Rel. Celso Limongi. J: 08.09.2009; DJe: 21.09.2009. grifos nossos.
- ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. Cit. P. 230 e 236.
- ROXIN, Claus. Op. Cit. P. 52.
- Em que pese o caráter sigiloso do inquérito policial, dados foram repassados pela Polícia à redação do Jornal Eletrônico Globo / G1: disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/11/jovem-de-18-anos-e-preso-por-beijar-garoto-de-13-em-cinema-de-shopping.html . Acesso em: 26/06/2011.
- Trechos da entrevista disponíveis em: http://www.band.com.br/jornalismo/cidades/conteudo.asp?ID=100000367708
- http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/11/jovem-de-18-anos-e-preso-por-beijar-garoto-de-13-em-cinema-de-shopping.html Acesso em: 26/06/2011
- NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 10ª Edição. p. 907 São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
- BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit. p. 50.
- Sobre a "vitimização secundária" decorrente do danoso processo investigatório envolvendo crimes sexuais, v. BITENCOURT, Luciane Potter. Vitimização secundária infantojuvenil e violência sexual intrafamiliar. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009. Parte da obra está disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp052863.pdf
- OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. p. 581. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010.
- OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Op. Cit. P. 581.
- Que, conforme redação dada pela lei n.º 12.403/2011, dispõe que a apreciação da existência de causas excludentes de ilicitude e de culpabilidade compete ao juiz.