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A democracia moderna e o princípio republicano.

Uma imbricação necessária para a proteção do interesse público

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30/07/2011 às 09:09

Resumo:


  • A democracia moderna difere da ateniense, especialmente pela representação política e influência do capitalismo individualista, exigindo a incorporação do espírito republicano para o equilíbrio entre os interesses públicos e privados.

  • A prática política, quando desprovida de ética e responsabilidade republicana, pode levar ao uso indevido da coisa pública para benefícios pessoais, corrompendo a essência democrática e republicana do Estado.

  • Para a sustentabilidade da democracia, é imprescindível a educação para a cidadania e a promoção do princípio republicano, assegurando a participação popular ativa e o controle sobre os representantes eleitos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3) O capitalismo individualista e o sistema representativo: as dificuldades da democracia moderna

O aumento populacional e o inchaço da burocracia estatal levaram ao impedimento da participação direta do povo nas decisões que formam os assuntos públicos, como era em Atenas, tendo sido necessária a implementação de um modus operandi diverso do berço democrático. O sistema representativo, então, limitou, em relação ao modelo ateniense, a participação popular, pois o povo passou a ser chamado apenas para eleger seus representantes. A democracia se intermediária, ou seja, representativa, sendo facultada ao povo a participação adicional, fora do momento eleitoral, por meio das instituições, associações e outras vias democráticas. Perdeu a democracia o viés personalíssimo que caracterizava a participação e o exercício do poder diretamente pelo povo. A reboque da representatividade, vieram os paridos políticos, atividade associativa e organizativa necessária para ligar os indivíduos que pretendem representar o povo a um idealismo ou corrente política.

Discorrendo acerca da representação, Max WEBER indica que a mesma ocorre quando as ações dos representantes são imputadas aos seus eleitores, devendo ser por eles consideradas como legitimas e vinculantes. O maior problema enfrentado pela representatividade é justamente a despersonalização do eleitorado no exercício do poder, ou seja, a frágil presunção de que a ação do representante significa a vontade do povo, pois fica o eleito livre para decidir segundo o seu próprio desejo. É o que WEBER chama de representação livre: [31]

O representante, em regra eleito (eventualmente designado, formalmente ou de fato, por rodízio), não está ligado a instrução alguma, mas é senhor de suas ações. Seu dever consiste em seguir as convicções próprias objetivas e não os interesses de seus delegantes. A representação livre, neste sentido, é não raramente a conseqüência inevitável de insuficiência ou falha das instruções. Em outros casos, porém, constitui o sentido autêntico da eleição de um representante, o qual é então o senhor de seus eleitores, e não o "servidor" deles. Adotaram especialmente esse caráter as modernas representações parlamentares, as quais têm em comum, nesta forma, a objetivação geral – vinculação de normas abstratas (políticas, éticas) – que é a característica do poder legal.

De acordo com o ensinamento de WEBER, a representação democrática, por meio da qual ocorre o exercício do poder por interposta pessoa, acabou transformando a participação popular em regra abstrata e na prática inatingível, pois nos momentos de decisão o que acaba prevalecendo é a vontade do representante que se posiciona conforme suas próprias convicções e não as de seus eleitores. O representante se torna, então, o senhor dos eleitores, e não o contrário, como em deveria ser.

Em relação aos partidos políticos, WEBER, após analisar seus objetivos e estruturas, chega a seguinte conclusão: [32]

Isto significa que as atividades políticas estão nas mãos de a) líderes e quadros de partido, ao lado dos quais b) aparecem membros de partido ativos, ..., enquanto que c) as massas não ativamente associadas (de eleitores e votantes) são apenas objetos de solicitação em tempos de eleição ou votação ("simpatizantes" passivos), cuja opinião só interessa como meio de orientação para o trabalho de propaganda do quadro de partido em casos de luta efetiva pelo poder.

Sobre o financiamento dos partidos, implicando, por óbvio, o das campanhas políticas, pontua o sociólogo Max WEBER: [33]

Economicamente, o financiamento do partido é uma questão de importância central para o modo como se distribui sua influência e para a direção que suas ações tomam materialmente; isto é, se ele provém de grande número de pequenas contribuições das massas, ou de mecenato ideológico, de compra (direta ou indireta) interessada ou de tributação das oportunidades proporcionadas pelo partido ou dos adversários subjugados.

Os eleitores, no sistema representativo partidário, significam apenas o meio de legitimar a chegada dos candidatos ao poder, fato este que pode levar a máculas em seu exercício, fomentando ainda mais a ausência do espírito republicano nos representantes que podem fazer uso do espaço público para, em vez de promovê-lo e protegê-lo, promover seus próprios interesses. Diante desse quadro, dos eleitores se exige não apenas a participação no momento de exercer o sufrágio, cujo sistema de eleições deve ser justo e livre, mas no período compreendido entre as eleições. [34] A democracia não pode ser monista, isto é, apenas na investidura do representante no poder, mas sim dualista. Para a dualista, a participação popular não existe apenas no ato de escolher e votar, levando a uma participação institucional regular onde o povo controla e exige resultados. [35] Admitir que a democracia existe apenas no momento das eleições, significa dizer que "no período entre eleições, todas as verificações institucionais sobre os vitoriosos elegíveis são presumidamente antidemocráticas". [36]

O sistema representativo e seus necessários partidos políticos trazem consigo maiores exigências tanto de quem vota (direitos políticos ativos / jus sufragii) quanto de quem é votado (direitos políticos passivos / jus honorum). Para os primeiros exige-se maior interesse e participação políticas, assim como controle e acompanhamento de seus representantes (princípio democrático). E dos segundos se espera a aplicação da responsabilidade e de verdadeiro espírito público, cuidando de zelar pelo interesse coletivo (princípio republicano). No entanto, a representação e os partidos políticos apresentam grandes dificuldades para aquiescer estes dois princípios, especialmente pelos desafios enfrentados pela democracia moderna e sua forma representativa, como as decisões tomadas por maioria simples e ausência de participação popular. [37] Hans Peter SCHNEIDER discorre acerca dos problemas enfrentados pela democracia moderna que afetam o interesse republicano: [38]

Pero precisamente este carácter plantea nuevos problemas. Y es que el destino del moderno sistema parlamentario está íntimamente ligado a la evolución futura del Estado de partidos. El egoísmo de partido, la corrupción de los partidos, el desencanto a los partidos y, por último, incluso el tédio hacia los partidos inciden directamente em la capacidad de funcionamiento y la fuerza de integración de los órganos parlamentarios, debilitando y desacreditando incluso el mismo principio de representación. Por el contrario, una política de partidos realista, objetiva e íntegra fortalece la autencidad y credibilidad del parlamentarismo. También el fracaso de los partidos políticos es corresponsable, junto a otros factores, de que decisiones parlamentarias tomadas por mayoría no sean aceptadas o lo sean bajo protesta, porque no han informado a tiempo ni de forma clara y honesta, porque no han argumentado de forma convincente ni consecuente, porque no han actuado de forma flexible ni han atendido adecuadamente las necesidades del ciudadano.

Em adição a questão econômica, já apontada por Max Weber, SCHNEIDER aponta a influência do capital sobre as questões políticas, levando ao egoísmo e a corrupção partidária, que resultam na debilidade e no descrédito do princípio da representação, cabendo ao próprio cidadão comum combater esse egoísmo, procurando se inserir no conceito de república, desenvolvendo em si e na sociedade o espírito republicano. [39]

Parece que hoje o principal entrave para a boa fruição de uma democracia republicana é a ganância e o capital, sendo que muitos políticos se utilizam do poder para manter seus monopólios e oligopólios, e muitos particulares que com eles se relacionam para investir em campanhas visando retorno certo dos cofres públicos. No ensinamento de Hans Peter SCHNEIDER: [40]

Si las dificultades existentes en el sistema de partidos, en el propia concepción de los partidos y en su relación con la ética política, no son sólo transitorias, sino que se trata de obstáculos institucionales y organizativos, deberá plantearse a largo plazo una reforma de la legislación de los partidos (p. ej., mediante la ampliación de los derechos internos de las minorias), en una democratización del derecho electoral (extendiendo las candidaturas), así como en una mayor autonomía del mandato (p. ej., fortaleciendo los derechos de los diputados). De esta forma se conseguirá garantizar la pervivencia del Estado representativo de partidos también en un futuro. [...] Sin embargo, no son los partidos los únicos que manifestan déficits notables de representatividad democrática. Incluso los Parlamentos manifestan estos déficits.

Grande parte do egoísmo e do individualismo que permeia a atitude política de representados e representantes é originado pelas regras do capitalismo. De fato, a política foi inundada pela doutrina liberal, aparecida justamente no retorno da democracia, por volta do final do século XVII, cuja característica primordial diz respeito ao elemento capital e a despolitização, este último como fenômeno resultante da redução do poder regulamentador do Estado sobre as relações privadas. No Manifesto do Partido Comunista, Karl Heinrich MARX e Friedrich ENGELS chamaram a atenção para as influências danosas do capitalismo sobre a senso político, acabando por desferir perigoso golpe sobre o espírito republicano pela inserção da busca desenfreada do lucro: [41]

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. [...]; a burguesia, a partir do estabelecimento da grande indústria e do comércio mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.[...] Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma única palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.

Tudo o que era sólido evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.

Por conta da influência do capitalismo, a democracia se tornou mais impessoal e distanciou o povo da política, sendo mais importante a lei da sobrevivência pecuniária do que os assuntos públicos. Se a democracia sempre foi o regime dos desejos, hoje este fator é ainda mais notório pela necessidade do capital e pelo destaque destinado aos direitos humanos, estando abertas as portas para a busca desenfreada pelo interesse individual. A democracia se tornou o regime cujo sistema econômico viabiliza quem tem oportunidade, sendo este o objetivo maior das pessoas dentro da concorrência elevada e do aumento populacional. [42]

Neste sentido, releva o ponto de vista de Alain TOURANE: [43]

A consciência de cidadania enfraquece-se porque muitos indivíduos se sentem mais consumidores do que cidadãos e mais cosmopolitas do que nacionais ou, pelo contrário, porque alguns se sentem marginalizados ou excluídos da sociedade – com efeito, têm o sentimento de que, por razões econômicas, políticas, étnicas e culturais, não chegam a participar dela.

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A democracia, assim enfraquecida, pode ser destruída a partir de cima – por um poder autoritário – ou a partir de baixo – pelo caos, violência e guerra civil – ou a partir de si mesma – pelo controle exercido sobre o poder pelas oligarquias ou partidos que acumulam recursos econômicos ou políticos para impor suas escolhas a cidadãos reduzidos ao papel de eleitores.

Conseqüência desse quadro nocivo é que a noção de soberania do povo deixou de ser tão insofismável e a política passou a ser determinada pela estrutura. O povo, componente essencial das sociedades, foi maculado pelo interesse capitalista. Quem chama a atenção para este fato, fazendo menção a Marx, é o filósofo e pensador italiano Antônio GRAMSCI: [44]

Poder-se-á observar quantas cautelas reais Marx introduz em suas investigações concretas, cautelas que não poderiam encontrar lugar nas obras gerais. Entre estas cautelas, como exemplos, pode-se citar as seguintes: 1) A dificuldade de identificar em cada caso, estaticamente (como imagem fotográfica instantânea), a estrutura; de fato, a política é – em cada caso concreto – o reflexo das tendências de desenvolvimento da estrutura, tendências que não se afirma que devem necessariamente se realizar. Uma fase estrutural só pode ser concretamente estudada e analisada após ter superado todo o seu processo de desenvolvimento, não durante o próprio processo, a não ser por hipóteses (e se declarando, explicitamente, que se trata de hipóteses). 2) Disto se deduz que um determinado ato político pode ter sido um erro de cálculo por parte dos dirigentes das classes dominantes, erro que o desenvolvimento histórico, através das "crises" parlamentares governamentais das classes dirigentes, corrige e supera: o materialismo histórico mecânico não considera a possibilidade de erros, mas interpreta todo ato político como determinado pela estrutura, imediatamente, isto é, como reflexo de uma real e duradoura (no sentido de adquirida) modificação da estrutura. O princípio do erro é complexo: pode se tratar de um impulso individual motivado por um cálculo errado, bem como, também, de manifestações das tentativas de determinados grupos ou grupelhos para assumir a hegemonia no interior do agrupamento dirigente, tentativas que podem fracassar.

3) Não se leva necessariamente em conta que muitos atos políticos são motivados por necessidades internas de caráter organizativo, isto é, ligados à necessidade de dar coerência a um partido, a um grupo, a uma sociedade. Isto é evidente, por exemplo, na história da Igreja Católica. Se se pretendesse encontrar, para todas as lutas ideológicas no interior da igreja, a explicação imediata, primária, na estrutura, se estaria perdido: muitos romances político-econômicos foram escritos por esta razão. É evidente, ao contrário, que a maior parte destas discussões são ligadas a necessidades sectárias, de organização.

E GRAMSCI conclui:

Se se observa bem, deve-se chegar à conclusão de que o ideal de qualquer elemento da classe dirigente é o de criar as condições nas quais os seus herdeiros possam viver sem trabalhar, de renda. Como é possível que uma sociedade seja sadia quando se trabalha para estar em condições de não mais trabalhar? Já que este ideal é impossível e malsão, isto significa que todo o organismo está viciado e doente. Uma sociedade que afirma trabalhar para criar parasitas, para viver no chamado trabalho passado (que é uma metáfora para indicar o trabalho atual dos outros), destrói, na realidade, a si mesma.

Gramsci chama a atenção para a estrutura política como influenciada pela sociedade, sendo que a esta designou como superestrutura. Estrutura e superestrutura têm entre si uma relação de coordenação, e não de subordinação. Ao concluir que a sociedade se encontra viciada e doente, destruindo a si mesma, o faz com base nos efeitos que o capital tem sobre ela, fato este que reflete na política. Apesar da teoria de Gramsci culminar com o fim do Estado pela absorção dele (estrutura) pela sociedade (superestrutura), serve ela, até que essa profecia não se concretize, para demonstrar a influência que a sociedade capitalista e individualista exerce negativamente sobre a política e sobre o Estado, resultando num elevado déficit do espírito republicano. [45]

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Sobre o autor
Michel Mascarenhas Silva

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR. Advogado. Professor da Universidade Federal do Ceará-UFC, da Universidade de Fortaleza-UNIFOR e da Faculdade Sete de Setembro-FA7.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Michel Mascarenhas. A democracia moderna e o princípio republicano.: Uma imbricação necessária para a proteção do interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2950, 30 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19671. Acesso em: 23 dez. 2024.

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