4) A prática política e sua relação com o princípio republicano
Costumeira e dificilmente se fala de ética como essencial a política, sendo mais difícil ainda a sua prática por quem exerce o poder na representação do povo. Não se pode, todavia, desperceber que a idéia da coisa pública e da necessidade de seu resguardo e proteção vem do fato de que o exercício do poder por delegação torna os representantes responsáveis pela guarda do interesse coletivo. Esta é a essência do princípio republicano. A idéia de república é oriunda da politeia de Aristóteles, sendo que esta veio em primeiro lugar, alguns afirmando que a república foi sua sucessora. Preferimos dizer, no entanto, que a idéia de política e república tem conceituação distinta, mas a essência da primeira é parte da segunda, sendo que o contrário nem sempre é verdadeiro. O que se quer dizer é que, ao se ter a real consciência do sentido de república, está-se fazendo política. Mas nem sempre quem faz política está preocupado com a coisa pública.
Por meio da participação política, oriunda do grego polis, significando governo das cidades, no uso do sufrágio, determina-se a escolha dos representantes do povo que, por sua vez, no exercício de suas designações, idealizam e executam a construção, organização, estrutura, objetivos, programas, crescimento e melhorias das cidades, consideradas pequenos grupos que compõe o Estado. Cidade aqui tem significado muito mais amplo e abrangente do que a simples noção de ruas e praças. Diz respeito a vontade do povo, às necessidades conjunturais da nação, investimentos, controle e crescimento econômico, geração de emprego e renda, segurança, educação, cultura, saúde, entretenimento, áreas de lazer e meio ambiente.
Realizados estes programas, todos eles se tornam, desde os meios para o seu alcance, bem como o resultado em si dessas ações, como patrimônio público, ou seja, coisa pública. Sendo assim, o dinheiro e a publicidade acerca de uma obra para construção de um hospital, uma escola, ou de qualquer outro bem público, não podem ser desviados em benefício do gestor e de terceiros, nem servir para a sua promoção pessoal.
Um político em sentido estrito, podendo ser o chefe do executivo ou um parlamentar, bem como os agentes políticos, sendo eles um ministro, um secretário, um conselheiro ou ministro de um tribunal de contas, um procurador, um magistrado, que manuseie a coisa pública, no decurso do processo de fazimento da política, não pode fazer uso da coisa pública para se beneficiar. Exemplificadamente, não pode fazer uso de passagens ou verba de gabinete para si ou para sua família, não pode privatizar empresas estatais e receber propina, não pode dispensar ou inexigir indevidamente procedimento licitatório para beneficiar determinada empresa e daí dividir os lucros, não pode firmar parceria com organizações sociais sem a prévia licitação, não pode comprar votos para aprovar emendas constitucionais ou reformas legislativas, não pode viajar usando cota de passagem ou verba de gabinete de um parlamentar, nem pode vender emendas no orçamento, bem como não desviar dinheiro da merenda escolar.
Mas se o político ou o agente político fizer uso de seu mandato ou da confiança que lhe foi depositada para fins lícitos, aplicando os recursos públicos de acordo com a lei, poderá ser taxado de republicano, pois suas ações visaram apenas a correta aplicação e a proteção da coisa pública.
É preciso diferenciar a cidade (o Estado) do patrimônio pessoal. O primeiro está ligado ao trabalho político, e o segundo está atrelado a república. Ambas, política e república, devem ser executadas pelos políticos e agentes políticos. O problema reside quando estes personagens lembram apenas de fazer política, esquecendo, no entanto, o seu dever republicano, e ai fazem uso da política para se beneficiar. Daí parecer-nos que a noção de república é muito mais nobre que a de política, pois esta última é passível de manobras iníquas e egoístas, não raro usada como meio de corrupção, locupletamento indevido e promoção pessoal. Já a república insere no indivíduo o sentimento de realização do interesse da coletividade, sendo o antídoto para o individualismo e para o desejo egoísta.
Para proteger a coisa pública e, consequentemente, a realização do interesse coletivo, é que o Direito criou mecanismos específicos para combater a malversação do patrimônio e dos recursos públicos, dando proteção à república. Aqui entra a exposição feita acima, qual seja, de que a república é ideal muito mais nobre que a política, porquanto esta última muitas vezes seja utilizada para forjar o interesse próprio em interesse público. Outro importante fator a ser frisado é que a política é aberta, comportando todas as idéias e filosofias, regimes e veias de pensamento, ou mesmo podendo lhe faltar idealismo, levando o político a atuar de acordo com suas conveniências. A república, por sua vez, é fechada, não comportando modificações em seu sentido. Ou a pessoa é republicana e preocupada com a coisa pública ou não. Inexiste meio-termo.
Ao se conceder a uma pessoa a função de administrar a coisa pública cria-se uma relação de confiança entre o povo e seu administrador. Essa legitimidade é transmitida pelo titular real do poder, o povo, aos seus escolhidos, na medida em que delega a função administrativa aos seus pares. Todavia, as tentações para praticar ilicitudes, mesmo naquelas que envolvem a nobre função de administrar a coisa pública, acompanham a vida e a história humana, cujas sociedades constantemente apresentam desvios éticos e tendência à corrupção. [46]
Não haverá bom governo, ainda que democrático, sem que este seja republicano, pois não se pode pensar apenas no individuo e em seus desejos sem que se proteja o espaço público. Para que os representantes do povo não façam uso indevido do interesse e do patrimônio público em seu próprio benefício ou de particulares é imprescindível a educação para a cidadania, para a república e para a ética na política. Sem ética, o político, ainda que legitimamente eleito, não fará bom uso do poder a ele delegado em benefício da sociedade. De nada adiantará eleições democráticas sem essa ética e sem o controle e acompanhamento, pelo povo e pelas instituições constituídas, das ações de governo. A política, portanto, deve servir ao povo e não aos interesses individuais ou de grupos particulares.
4.1) O princípio republicano como instrumento necessário à democracia
A liberdade individual, essência do ideal democrático, se implementada sem controle e responsabilidade, pode levar a corrupção do estado republicano. Isso faz lembrar as palavras de George ORWELL: [47]
Durante duzentos anos serramos, serramos e serramos o galho sobre o qual estávamos sentados. E no final, muito mais depressa do que alguém jamais previra, nossos esforços foram recompensados e despencamos. Mas, infelizmente, houve um pequeno engano. O que nos aguardava lá embaixo não era, no final das contas, um canteiro de rosas, mas uma fossa sanitária entulhada de arame farpado.
Notou-se que, sendo o regime da liberdade e do exercício de interesses individuais, que resultariam em direitos assegurados pela maioria, não pode a democracia viabilizar a permissividade. Terem os indivíduos o direito de participação não significa o desprezo para com o interesse público. Não se pode admitir, da parte dos representantes do povo, desvios no exercício do poder pela usurpação da coisa pública em benefício do interesse individual. Especialmente a partir da democracia representativa é que se nota tal possibilidade de desvios. Também é a partir dela que recebe maior destaque a tensão entre o interesse público e o interesse privado, amadurecida por séculos de exercício do poder estatal. É neste ponto que se nota a necessidade de contrabalançar a democracia com o princípio republicano. Apesar de criada e exercida desde Roma, a república ganha importância com a democracia representativa como forma de evitar desvios no exercício do poder pelos representantes do povo.
Enquanto que a democracia é regime simpático, tendo em vista buscar a liberdade, a igualdade, a garantia de direitos, a transparência e a participação popular, seu elemento moderno, a representatividade, exigiu, mais ainda do que debaixo do império romano, uma consciência republicana. Apesar de ser mais dirigido aos seus representantes, a noção de república é também exigida dos indivíduos, assim como o foi nos primórdios do Estado. Enquanto que a democracia impulsiona os direitos, a república freia o exercício deles com o escopo de proteger o bem público.
Essa tensão existente entre o espaço público, cuja importância é contida na noção de república, e a esfera individual, contida na democracia, é que deve ser corretamente contrabalançada pelos governados e pelos governantes, e pelo centro resultante – o Estado, cuja função continua basicamente a mesma, qual seja, organizar o povo num determinado território, protegendo o interesse público e respeitando o privado.
Jean-Jacques ROUSSEAU [48], analisando a tensão entre democracia e república, assinalou que "não é bom que execute as leis quem as faz, nem que o corpo do povo desvie sua atenção dos objetivos gerais para pôr em objetos particulares. A coisa mais perigosa que há é a influência dos interesses privados nos negócios públicos...".
A preocupação com a mistura entre a esfera individual e a pública não tinha razão de existir na democracia ateniense, tendo em vista que o próprio povo decidia os assuntos relevantes da pólis. Mas essa possibilidade de desvio da esfera pública em prol de si mesmo ou de pessoas de seu interesse passou a ter pertinência e relevância a partir do momento em que a representatividade entrou na democracia. Com isso, a democracia passou a ter a necessidade de incorporar a noção de separação da esfera individual da pública, sendo esta protegida como algo a ser inatingível.
É bem verdade que a república teve seu início em Roma, onde são inúmeros os ensinamentos no sentido de separar o Estado da religião e o Estado da esfera individual, especialmente da pessoa de quem governa. Tanto que aos romanos é dado o mérito do desenvolvimento do Direito Privado colocando-o claramente em contrapartida com o Direito Público ou estatal. Ao frisar o perigo da influência dos interesses privados nos negócios públicos, Rousseau indica justamente o malefício do mau uso da liberdade do governo democrática, seja pelo governante ou pelo governado, em prol da esfera individual.
Com a democracia moderna, a aplicação do princípio republicano se mostrou ainda mais necessária. A nova feição dada à democracia, notadamente pela inserção da representação, pelas mudanças territoriais e inchaço burocrático do Estado, e o surgimento do voto clientelar, tornaram ainda mais pertinente a noção de república. O voto clientelar, caracterizado pelo voto de favor, onde o eleitor não está nenhum pouco preocupado com o interesse público, entregando a qualquer um o exercício do poder desde que este lhe satisfaça uma necessidade puramente individual, ilustra bem o lado negativo da democracia moderna. Somando-se o voto clientelar a outro fator que deve ser levado em conta – o financiamento privado de campanha, verifica-se ainda mais a despreocupação com o interesse público. Pelo financiamento privado de campanha o financiador faz um verdadeiro toma lá, dá cá, onde financiar a campanha de um político representante tornou-se um investimento em que o retorno advirá com o dinheiro público.
Diante desse quadro, as anotações feitas por BOBBIO sobre a democracia moderna, especialmente as relacionadas ao não combate da concorrência entre elites para a conquista do voto e a falta de educação para a cidadania, se tornam realmente pertinentes. Deixar que apenas as elites tenham acesso a serviços públicos de qualidade e que a representatividade esteja em suas mãos, acaba na realidade transformando a democracia em aristocracia. E a falta de educação para a cidadania deixa o sufrágio aberto às negociatas espúrias que se preocupam apenas em satisfazer o interesse individual em detrimento do público.
A solução para estes males da democracia moderna está em entender que a democracia, apesar de suas virtudes e pureza de ideal, não está imune às más influências e aos desvios do exercício do poder, procurando temperar seus pilares, hoje ainda mais fundados nos direitos humanos e nos desejos, com a noção de intocabilidade da coisa pública. Especialmente quando a participação popular, na democracia moderna, ocorre através de intermediários, podendo os políticos, na condição de representantes e procuradores do povo, desviar-se do correto exercício do poder, é que se mostra importantíssimo temperar o princípio democrático com o espírito republicano. "O inimigo da república é o uso privado da coisa publica. É sua apropriação como se fosse propriedade pessoal". [49]
A república, significando coisa pública, é essencialmente mais nobre do que a prática política, porquanto na primeira esteja a noção exata do interesse coletivo, debelando-se o interesse particular. Quando um político é efetivamente republicano, ter-se-á a real representatividade dos interesses do povo. Mas quando um político, ou a grande maioria deles, faz uso da função delegada pelo povo para governar sem a exata noção de república, será verificada a corrupção, pois se verá o uso dos recursos públicos para a realização de seus interesses particulares, envolvendo ai benefícios a parentes, amigos e financiadores. Quando essa ausência de homens realmente republicanos, dotados de consciência para com o interesse coletivo, é observada dentro da nação, constata-se o fomento da cultura de desvios dentro do regime democrático. A falta dessa consciência e que eles, os que receberam do povo o poder para governar, devem servir de exemplo para todos, acaba fomentando a manutenção de uma sociedade tendente ao ilícito, fazendo essa classe política uso desse quadro para beneficiar a si e aos seus.
Dois são os inimigos da república: o patrimonialismo e a corrupção. Pelo primeiro, há a apropriação privada da coisa pública por políticos ou por quem tenha poder. Nele o representante entende o Estado como sua empresa, como bem e patrimônio pessoal. Em relação a corrupção, a mesma não se resume a idéia de retirada de dinheiro público em benefício próprio ou de outras pessoas. Envolve a inanição do Estado e dos serviços públicos de qualidade, levando ao atraso do povo e a não realização das funções básicas do Estado que envolve a oferta de educação, saúde e segurança pública. Além disso, a falta de respeito à república, refletindo a corrupção nos governados, pode ser vista pelo mau uso dos bens públicos e pelo manuseio indevido do sufrágio.
A república se caracteriza mais do que um formato dado ao governo. Seu objetivo é, reforçando o sentido da democracia, incutir o espírito de proteção a coisa pública estabelecendo a responsabilidade pelo uso, gerenciamento e manuseio dos assuntos de natureza pública. [50] Ela assegura a participação do povo, fazendo com que o governante seja por ele eleito, colocando a participação popular como de domínio publico, opondo-se, portanto, a monarquia e aristocracia. [51]
A principal característica da república é a responsabilidade. Inicialmente, esta foi entendida apenas como de natureza política. Porém, com a chegada do capitalismo e o aumento da ganância, que hoje põem em risco o bem público, a responsabilidade republicana é também financeira, orçamentária e patrimonial, afetando tanto o governante e os servidores públicos quanto o particular contratado ou que mantém negócios com o Estado.
A democracia moderna veio, com base nos direitos humanos, como meio de combater o absolutismo e assegurar o Estado de Direito. Mas a república surge para frear os desejos desmedidos, com base em direitos declarados contra o Estado, responsabilizando aqueles que extrapolam o exercício dessas prerrogativas. Sem república não há democracia válida, efetiva e eficaz, e sem democracia não é possível existir república. Uma está imbricada na outra. Afinal, o direito individual não pode viver sem o bem público, e o bem público não pode prescindir do bem-estar dos indivíduos.