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Boa-fé objetiva da ética à regra objetiva jurídica

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03/08/2011 às 10:12
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4. Antecedentes históricos da boa-fé objetiva

Historicamente, a noção de boa-fé deita raízes no Direito Romano, reportando-se à fides romana, apresentando-se com implicações de ordem religiosa, ética e moral. Por exemplo, na interpretação de determinados contratos considerados de boa-fé (bona fides), como a locatio e o mandatum, o valor da palavra empenhada tinha um peso maior do que a exteriorização da forma. No Corpus Iuris Civilis a noção de boa-fé está prevista de forma diluída, entendida a bona fides como um estado psicológico de ignorância, também influenciada pelo Direito Canônico, que via a boa-fé como ‘ausência de pecado’. Basicamente, pois, durante o período romano e, depois, medieval, adotou-se uma visão subjetiva sobre a boa-fé.

Mais tarde, com o advento do Code Civil francês de 1840 (Code Napoléon), a noção da boa-fé objetiva passa a ser positivada, através da terceira alínea do artigo 1134 do Code, quando ali determina que os pactos devem ser executados de boa-fé, sendo que tal norma não foi cumprida, tornou-se letra morta, à vista da influência da Escola da Exegese, apegada ao extremo à letra da Lei Napoleônica.

À vista da grande influência que o Code exerceu mundo afora, a noção de boa-fé espargiu-se para outros ordenamentos jurídicos, sendo a boa-fé objetiva adotada, de forma expressa, pelo Código Civil alemão (BGB), através de sua cláusula geral, em seu § 242: "O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como a exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego".

Entretanto, logo após a entrada em vigor do BGB, em 1900, o dispositivo citado (§ 242) não teve a repercussão devida, à altura da sua importância, somente vindo a ser ressaltado a partir da 1ª Guerra Mundial, através da jurisprudência alemã que, de forma mais copiosa e contundente, passou a difundir os seus contornos, ao ponto de a cláusula geral da boa-fé objetiva ter sido adotada por diversos países europeus, como a Itália, Portugal e Espanha.

Ao que parece, a sua importância tende a universalizar-se, ao ponto mesmo de as Nações Unidas reconhecerem a boa-fé objetiva como um parâmetro hermenêutico nos tratados que versem sobre o comércio internacional, como a Convenção de Viena (1980), que trata da compra e venda de mercadorias, cuja cláusula 7 deste tratado assim reza: "Na interpretação da presente Convenção ter-se-á em conta o seu caráter internacional bem como a necessidade de promover a uniformidade da sua aplicação e de assegurar o respeito da boa-fé no comércio internacional".


5. A positivação da boa-fé subjetiva no Brasil

No ordenamento jurídico pátrio, a primeira referência à boa-fé teve lugar no vestuto Código Comercial de 1850, em seu artigo 131, I, como cânone para a interpretação dos contratos firmados sob sua égide.

Posteriormente, com o advento do Código Civil de 1916, a noção de boa-fé aparece em diversas ocasiões, de forma explícita, mas sempre sob a ótica subjetiva, ou seja, fundada num erro de fato ou num estado de ignorância desculpável.

Efetivamente, trata-se da boa-fé subjetiva, adotada expressamente pelo Código Civil em vigor, como, por exemplo: quanto aos efeitos civil do casamento putativo (artigo 1.561); quanto à conceituação de posse de boa-fé (artigo 1.201); quanto ao requisito para a usucapião (artigos 1.238 a 1.244); quanto à proteção daquele que aliena, de boa-fé, imóvel que recebeu indevidamente (artigo 879); quanto à aquisição a non domino (artigo 1.268 § 1º), dentre outros.


6. A positivação da boa-fé objetiva no Brasil

A partir dos anos 30 do século XX, começa a proliferar no Brasil, segundo o ínclito civilista Gustavo Tepedino – uma sucessão de leis extravagantes e especiais, que tinham por escopo disciplinar novos institutos surgidos com a evolução econômica e com o recrudescimento da problemática social.

Gestadas no seio de um fenômeno conhecido como ‘dirigismo contratual’, tais leis extracodificadas passaram a disciplinar institutos específicos do direito privado (contrato, família, propriedade), criando assim os chamados microssistemas jurídicos, que condensavam um direito civil especial, a gravitar ao redor do Código Civil, que passou a guarnecer um direito civil comum, pois, segundo ensinança de Gustavo Tepedino [04], o Código Civil passou "a ter uma função meramente residual, aplicável tão-somente em relação às matérias não reguladas pelas leis especiais".

Em suma, é a ‘era dos estatutos’, a qual, igualmente inspirada na principiologia da Constituição Federal de 1988, produziu o Código de Defesa do Consumidor, de matriz constitucional, vez que o legislador constituinte erigiu a defesa do consumidor à categoria de direito fundamental (artigo 5°, XXXII) e a princípio da ordem econômica (artigo 170, V), ambos da Carta Magna/88.

Em verdade, considerado a lei rejuvenescedora do Direito Civil Brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor foi quem, pela vez primeira, positivou expressamente a boa-fé objetiva no ordenamento jurídico pátrio, mencionando-a em dois momentos, sendo o primeiro no capítulo da política nacional de relações de consumo (artigo 4°, III) e o segundo na seção das cláusulas abusivas (artigo 51, IV).

Num primeiro momento, a boa-fé objetiva aparece como princípio, a saber:

Artigo 4°: A Política Nacional das relações de consumo tem por objetivos o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (...)

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores".

Num segundo momento, a boa-fé objetiva aparece como cláusula geral, ou seja:

"Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

IV- estabelecem obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis como e boa-fé ou a equidade".

Agora, com a edição do novo Código Civil, definitivamente e pela primeira vez na legislação civil brasileira, a boa-fé objetiva passa a ser consagrada, de forma clara a expressa, conforme dispõe o artigo 422:

"Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".


7. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil

A abalizada doutrina, e, muito especialmente, o grande jurista alagoano Paulo Luiz Netto Lôbo [05], assesta que "a boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de comportamento".

Em igual sentido, ‘mutatis mutandis’, elucida Cláudia Lima Marques [06] que a "boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes".

A boa-fé objetiva se acha inserida no novo Código Civil enquanto um princípio, de cunho social, estampado que se acha pela cláusula geral disposta no artigo 422.

Aliás, nesse sentido, o novel codificador agiu bem em positivar a boa-fé objetiva enquanto cláusula geral, na medida que, através dessa técnica legislativa, faculta-se ao aplicador do Direito uma linha teleológica de interpretação, objetivando a abertura do sistema jurídico para permitir o ingresso de princípios e valores, de forma ‘não-casuística’.

A cláusula geral é uma valiosa técnica legislativa que, não obstante a sua vagueza semântica, segundo uma parcela da doutrina, representa um importante instrumento de vivificação do ordenamento jurídico, desde quando, é claro, seja prudente e sabiamente operada pela magistratura, no sentido de acompanhar a dinamicidade e a vicissitude da vida moderna.

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A boa-fé objetiva trata-se, pois, de um princípio, ou de uma cláusula geral.

Por oportuno, registre-se que a norma do artigo 422 do Código Civil de 2002 refere-se a ambos os contratantes do contrato comum, civil ou comercial, não podendo o princípio ser aplicado preferencialmente ao contratante devedor, mas aplicado a qualquer deles, indistintamente.

E ainda: que o princípio da boa-fé objetiva, segundo a melhor doutrina, aplica-se aos contratantes antes, durante e após o contrato, ou seja, é aplicável à conduta dos contratantes antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum).


8. A acolhida jurisprudencial sobre a boa-fé objetiva

No dizer de Bruno Lewicki [07], o debate sobre a boa-fé objetiva em nossos tribunais, mormente nas cortes superiores, tem se dado de forma esporádica e tênue, possivelmente em razão da cultura jurídica herdada pelos operadores do direito, na sua grande maioria ainda muito ligada à idolatria da codificação, na medida que entende e admite o Código Civil como a ‘constituição do direito privado’.

Tal visão deve ser rechaçada.

A moderna civilística advoga a resistematização do sistema jurídico civil, a partir da Constituição Federal, enquanto vértice do ordenamento jurídico, e não mera base deste.

É o chamado Direito Civil Constitucional, ou seja, a legislação civil lida e interpretada à luz do Texto Constitucional e não o inverso.

Nesse sentido, pois, é de se aplaudir alguns votos proferidos pelo então Desembargador Ruy Rosado de Aguiar Junior, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, lavrados no final da década de oitenta e os primeiros anos da década de noventa, os quais, fazendo ou não menção expressa ao princípio da boa-fé objetiva passaram a corporificar uma renovada concepção do direito das obrigações.

À guisa de exemplo, trago à baila o famoso ‘caso dos tomates’, cujo acórdão foi lavrado em 06/06/1991, relatado pelo jurista citado, "no qual, de forma majoritária, entendeu-se que uma vigorosa empresa do ramo alimentício era responsável pelas perdas dos agricultores que haviam confiado na compra de sua safra de tomates – o que a Ré fazia sistematicamente, ano após ano, exercitando um comportamento que instava a parte autora ao plantio, inclusive através da distribuição de sementes. Como naquele ano a empresa negara-se a comprar a produção, movida por interesses próprios, determinou-se que ela deveria "...indenizar aqueles que lealmente confiaram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo".

Mais recentemente, o mesmo jurista, agora já Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça, assim relatou: "O compromisso público assumido pelo ministro da Fazenda, através de Memorando de Entendimento, para suspensão de execução judicial de dívida bancária de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no mutuário a justa expectativa de que essa suspensão ocorrerá, preenchida a condição. Direito de obter a suspensão fundado no princípio da boa-fé objetiva, que privilegia o respeito à lealdade" (STJ, 4ª T., RMS 6183, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.u., j. 14.11.1995).

A bem se ver, pois, como bem ressalta a doutrina, o princípio da boa-fé objetiva tem uma ‘vocação expansionista’, agora muito mais alargada em face de sua expressa previsão legal, no Código Civil de 2002.


9. Conclusão

Não podemos deixar de reverenciar este tão grandioso princípio, este que como supracitado, é um dos principais princípios do ordenamento jurídico, servindo como base para outros demais.

O princípio boa-fé objetiva se estabelece em uma regra ética, em um grande dever de guardar fidelidade à palavra dada ou ao comportamento praticado, na idéia de não fraudar ou abusar da confiança alheia, o respeito e a obrigação. Como já argumentado anteriormente, não surgiu com o Código Civil de 2002 ou mesmo com o Código de Defesa do Consumidor, mas, ao contrário, passou por uma lenta e gradativa evolução, desde os tempos romanos, passando pelo direito alemão, sendo que, pelo legislador constituinte de 1988 foi reconhecida e erguida à condição de princípio, adquirindo o status de fundamento ou qualificação essencial da ordem jurídica. Isto significa dizer que atua como postulado ético inspirador de toda ordem jurídica e que, por fim, sempre deverá ser aplicado no caso concreto. Nos dias atuais, não há como não se reconhecer a sua incidência em todos os temas de direito civil, direito processual civil e direito do consumidor.

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Sobre o autor
Antônio Baracat Habib Neto

Estudante do curso de Direito pela UNIME-Itabuna

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HABIB NETO, Antônio Baracat. Boa-fé objetiva da ética à regra objetiva jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2954, 3 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19683. Acesso em: 19 abr. 2024.

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