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O afastamento do princípio da identidade física do juiz e a oralidade no processo civil brasileiro

04/08/2011 às 09:46
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O princípio processual vigente até à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1973 obrigava o Juiz transferido, promovido ou aposentado a concluir o julgamento dos processos cuja instrução houvesse iniciado em audiência, salvo quando o fundamento da aposentadoria tivesse decorrido de absoluta incapacidade física ou moral para o exercício do cargo.  Quando da discussão do CPC de 1973 a Comissão Revisora propunha que a regra repetisse a primeira parte do art. 120 do Código de 1939, mas um novo texto alterador do Anteprojeto foi aprovado sem emendas, determinando que o  magistrado que iniciasse a audiência concluiria a instrução julgando a lide, mas excluía as hipóteses de transferência, promoção ou aposentadoria, em que passaria os autos ao seu sucessor. Era o primeiro passo para o alargamento das exceções  ao princípio da identidade física do juiz e à regra da vinculação.  O sucessor prosseguia na audiência, mandando repetir, se entendesse necessário, as provas já produzidas. Assim funcionou até à superveniência da Lei 8.637/93 que, dando nova redação ao art. 132 do CPC de 1973, restringiu ainda mais a aplicação do princípio, prevendo a não vinculação nas hipóteses de convocação, licença ou afastamento por qualquer motivo, além das anteriormente já previstas. de promoção e aposentadoria, casos em que passava os autos ao sucessor. Tornavam-se expressas as situações que a jurisprudência até ali enfrentara como compreendidas na anterior expressão genérica "transferido", tais como a do Juiz  convocado para exercer outro cargo ou licenciado, incluindo-se na expressão a licença médica, a licença-prêmio e as férias e, finalmente, o afastamento por qualquer motivo.

Apesar do alargamento das exceções ao princípio da identidade física, doutrinadores consideravam o art. 132 tratado na prática ainda com grande rigidez, contribuindo para o retardamento da prestação jurisdicional. Cândido Rangel Dinamarco, citado por Reis Friede [01] (1) esperava que com o novo dispositivo cessassem as dúvidas que tanto concorriam para o retardamento dos já demorados serviços forenses. A observação data de 1995.

O remansoso entendimento jurisprudencial e doutrinário deu ensejo à edição de Súmulas da desvinculação, independentemente da ocorrência das condições anteriores, quando não houvesse sido colhida prova ou na hipótese em que o Juiz não participasse integralmente da  Audiência.

Em sua obra sobre a Sentença Cível,  Nagib Slaibi Filho destaca que em sendo critério de competência funcional, face ao princípio da imediatidade, o Juiz que colhe a prova em audiência é que deverá ser o que julga a lide. E cita, neste sentido, a Súmula 262 do, então já extinto, Tribunal Federal de Recursos (2)  Sua pormenorizada sentença transcrita na obra retrata toda a controvérsia. Destaque-se com relação àquele critério, que a regência sobre a competência funcional no art. 93 do Código de 1973 vigente exclui a relativa aos Juízes de Primeiro Grau cuja disciplina há de ser encontrada no próprio CPC.

Por se tratar de um País de grande extensão territorial e diversidade jurisdicional, era natural que outras situações processuais houvessem ocorrido como a do Juiz transferido para outra comarca de mesma competência, ou dos processos submetidos às Juntas Trabalhistas. Questões controvertidas, igualmente, ocorriam nos Embargos de Declaração quando não pudessem mais ser julgados pelo prolator da decisão, uma vez transferido.

Percebe-se, diante de toda a exceção criada ao princípio da identidade física do juiz, que o conceito de competência funcional disciplinado no art. 93 do mesmo diploma estendia-se progressivamente sobre juízes de todos os graus (inclusive os de primeiro grau) e que seria adequado, diante da extensão territorial, que prevalecessem apenas as normas da Constituição da República e as de Organização Judiciária de cada Estado. O princípio doutrinário e, certamente, ideal do art. 132 estava perdendo espaço como regra geral do processo civil em favor da mobilidade operacional da magistratura conduzida pela Organização Judiciária.


Conceito de oralidade cede espaço no novo processo civil.

Datam do século passado os debates que sustentavam a virtude do princípio de oralidade do processo.  Autores italianos — dentre os mais ilustres  Chiovenda — concebiam a oralidade como princípio que necessariamente deveria presidir o processo civil com a imposição dos seguintes valores: prevalência da palavra falada sobre a escrita; imediação entre o Juiz e as partes; identidade física da pessoa do juiz colhendo a prova e julgando a causa; concentração de provas para favorecer as impressões do julgador; inapelabilidade das interlocutórias. O legislador pátrio de 1939 adotou o princípio que, posteriormente, o legislador de 1973 restringiu e o de 1993 aparou em respeito às controvérsias surgidas no período.

Agora, o Substitutivo oferecido pelo Senador Valter Pereira ao PL 166/2010 (3,)  exclui definitivamente do Processo Civil normas de vinculação, cancelando o  inteiro teor do artigo  do CPC de 1973 que o Projeto de Lei pretendia manter e, endossando alteração do art. 30 do PL 166/2010, estende a disciplina da competência funcional do CPC sobre os juízes de primeiro grau. Desta forma, a competência funcional dos juízos e tribunais será, em todos os graus, regida pela normas da Constituição da República e de organização judiciária, assim como, no que couber, pelas normas das Constituições dos Estados.

Caso venha o legislador a entender, definitivamente, que as regras de vinculação ao processo e  identidade física do juiz correspondem a aspectos da competência funcional dos magistrados, de caráter absoluto, e não a um princípio processual de interesse do jurisdicionado, restará à regência da Organização Judiciária de cada Estado estabelecer as novas normas como determina o art. 30 do PL 166 (45 no Substitutivo). Se admitir que se tratava de princípio geral inscrito no art. 132 vigente como simples recomendação em busca da razoabilidade, mas cercada de exceções, ainda prevalecerá a lição sensata do STJ em 1995: "A celeridade processual e a falta de prejuízo não são motivos suficientes para desvincular do processo o Juiz que iniciou a audiência e concluiu a instrução " 4.

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Assim, submergirão de vez as virtudes da oralidade do processo, de que a identidade física do Juiz era parte, e o princípio da imediatidade (que passa a ser simples critério sequencial administrado pelos cartórios na conclusão dos processos – art. 138 do Anteprojeto) cessando a indispensabilidade do contato do magistrado com o fato concreto e aumentando a responsabilidade do advogado sobre a exposição escrita dos fatos e da tese.  Nem mesmo a obrigatoriedade da criação de setores de conciliação e mediação agora prevista nos projetos de mudança servirá à pretendida imediatidade, tal o distanciamento entre a sua realização e a sentença final. A oralidade do processo civil cede, pois, mais espaço ao documental e ao virtual, distanciando-se de princípios que ainda regem, por exemplo, os processos nos Juizados Especiais


Conclusão

De há muito se constata  que, progressivamente, princípios doutrinários como o da identidade física do Juiz, que preservavam a continuidade da presença do julgador em contato direto com as partes e a condução da produção de provas para formar seu convencimento, iam cedendo espaço à necessidade da desobstrução do Judiciário, entrave decorrente em grande parte da constante carência de magistrados sempre sujeitos a remanejamentos, acumulações e convocações. Clara demonstração do total afastamento do princípio da identidade física do Juiz já se encontrava evidente, por exemplo, na reduzida utilização prática da Inspeção Judicial prevista nos arts. 440 a 443 do CPC vigente, que regulamenta a ida do Juiz ao local para melhor verificação dos fatos que deva observar. Tal possibilidade de inspeção Judicial está sendo mantida nos arts. 467 a 471 do Substitutivo para o  novo CPC, como medida excepcional, embora obviamente inutil.  Vale destacar que as observações pessoais do julgador deverão integrar as decisões como elementos colhidos e fundamentos probatórios, destacados expressamente de forma a atender à exigência constitucional de motivação das decisões judiciais, sob pena de nulidade 5(art. 93, inciso IX, da CF).

Outra constatação, a de que o julgador — seja por acúmulo de responsabilidades, seja por uma estrutura que ainda o obriga a administrar a organização cartorária, seja por excesso de processos — ainda se vê obrigado a tomar conhecimento do processo civil tal como se estivesse lendo uma obra em capítulos, tem sido a frequência com que determinam que as partes ofereçam alegações finais. O resumo da obra.

É legítimo, portanto, concluir que ao eliminar o inteiro teor do atual art. 132 do Código de Processo Civil, no Substitutivo ao PL 166 elaborado pela Comissão de Juristas, não estará o legislador inovando mas, simplesmente, reiterando uma realidade que a liturgia processual civil já havia demonstrado: a de que a ampliação do acesso à Justiça e o crescimento da conscientização sobre direitos, têm como consequência direta a necessidade de ampliação dos quadros; o aperfeiçoamento da administração jurídica; o combate aos caminhos processuais desnecessários; a pesquisa e a integração com outras ciências sociais e o suprimento de recursos financeiros, antes que a pressão da prática vá derrubando, um a um, princípios que a teoria jurídica incorporara como fundamentais à adequada distribuição da Justiça, mas que, em algum momento, mostraram-se prejudiciais à celeridade dos processos.


Notas

1 REIS FRIEDE, Comentários à reforma do Direito Processual Civil brasileiro, Forense Universitária: Rio de Janeiro, 1995, pág. 145

2 SLAIBI FILHO, Nagib – Sentença Cível (Fundamentos e Técnica)- Ed. Forense: Rio de Janeiro, 1991, pág. 88

3 Elaborado pela Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Luiz Fux, por solicitação do Senador José Sarney, atualmente em exame na Câmara dos Deputados

4 Ac. un. da 3ª T. do STJ de 13.06.1995, no REsp.64.458-5-ES, rel. Min. Nilson Naves RSTJ 84/209; in  Alexandre de Paula Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, pg 892

5 Art. 93 inc. IX da Constituição Federal

A)Art. 132 do CPC vigente: O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.

B)Art. 112 do Projeto de Lei 116/2010 elaborado pela Comissão de Juristas

O juiz que concluir a audiência de instrução e julgamento resolverá a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que tiver que proferir a sentença poderá mandar repetir as provas já produzidas, se entender necessário.

C)O art. 112 acima foi suprimido no Substitutivo do Relator-Geral Senador Valter Pereira que revisou e renumerou todo o Projeto de Lei 116. A página do Senado oferece um quadro comparativo entre o CPC vigente, o PL 166 redigido pela Comissão de Juristas e o Substitutivo oferecido no Relatório do Senador Valter Pereira, igualmente submetido à apreciação de juristas.

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Sobre o autor
Carlos Vaz Gomes Corrêa

Advogado.Pós-graduado em Processo Civil. Consultor Jurídico da PRODECCON - Associação de Proteção e Defesa do Crédito do Consumidor no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Carlos Vaz Gomes. O afastamento do princípio da identidade física do juiz e a oralidade no processo civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2955, 4 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19693. Acesso em: 28 mar. 2024.

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