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Problemática do sistema recursal no pregão eletrônico (Decreto nº 5.450/05).

Violações aos princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal

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08/08/2011 às 14:31
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3. DO PROCEDIMENTO RECURSAL NO PREGÃO ELETRÔNICO

Por fim, chega-se a figura do pregão eletrônico, objeto do presente artigo científico. A possibilidade de utilização da internet para a realização de um pregão vem prevista na Lei 10.520/02, que assim discorre:

Art. 1º  Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta Lei.

Parágrafo único.  Consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.

§ 1º  Poderá ser realizado o pregão por meio da utilização de recursos de tecnologia da informação, nos termos de regulamentação específica. (destacamos)

De fato, como dito alhures, a tendência é que cada vez mais a administração sirva-se da internet para a realização de suas compras, uma vez que tal sistema traz algumas facilidades, dentre as quais cita-se a ampliação da competitividade, uma vez que licitantes de diversos locais podem participar, sem maiores custos, das sessões que ocorrem on line.

JUSTEN FILHO trata da difusão da tecnologia da informação e reconhece a ampliação das formas de comunicação ao afirmar que "o processo de circulação de riquezas incorporou as novas tecnologias de transmissão de dados e de comunicação à distância", mas reconhece que "inúmeras dificuldades jurídicas e práticas poderão ser encontradas, tendo em vista as novidades técnicas e eventuais imprevistos impossíveis de serem plenamente controlados (ao menos no atual estágio da técnica)." [11]

De fato, conforme será adiante demonstrado, não há como se negar que o atual sistema recursal do pregão eletrônico traz não somente aos juristas como também aos administradores e licitantes inúmeras dificuldades, uma vez que, no atual estágio em que se encontram os sistemas através dos quais são realizados os pregões, culmina com graves violações ao direito de ampla defesa e contraditório dos envolvidos no processo administrativo.

Pois bem. Conforme acima destacado, a Lei que institui a utilização do pregão, tanto presencial quanto eletrônico é a 10.520/02. Uma lei federal, que institui normas gerais de licitação e, portanto, aplicável a todos os entes da federação.

Tal legislação declarou que, no que tange ao pregão eletrônico, deve ser expedido regulamento próprio a regular essa modalidade. Isso implica em afirmar-se que cada esfera governamental, que quiser utilizar do pregão eletrônico, deverá criar mecanismos e normas que venham a regulamentar seu uso.

Na esfera federal, o governo editou o Decreto 5.450/2005, o qual traz regras para que as aquisições públicas federais sejam efetuadas com o uso da tecnologia da informação. Seu procedimento segue os procedimentos básicos do pregão comum, mas, "como é evidente, deixa de ocorrer na presença física do pregoeiro e dos participantes, já que todas as comunicações são feitas por via eletrônica." [12]

Importante destacar que, para o presente artigo científico, está sendo tomado por base as disposições do referido decreto, as quais muitas vezes acabam por ser observadas em procedimentos licitatórios levados à cabo por outros entes federativos, que possuem regulamentos semelhantes, como ocorre com o Estado de Minas Gerais, que possui o Decreto 44.786/008.

Pois bem. Sucintamente, pode-se afirmar que para participação no pregão eletrônico,o licitante deve estar credenciado perante o provedor do sistema eletrônico, uma vez que é esse credenciamento que dará ao licitante a possibilidade de ingresso no sistema eletrônico através do qual o certame se realizará. É esse credenciamento também que permitirá ao licitante que cadastre sua proposta no site e, se for o caso, anexe os documentos solicitados no instrumento convocatório.

Contrariamente ao que acontece no pregão presencial, no eletrônico a sessão pública será aberta on line, pelo pregoeiro, que também estará credenciado junto ao sistema. Este analisará as propostas apresentadas pelos licitantes, para aferição do cumprimento do edital, desclassificando aquelas que não atendem ao comando editalício.

As propostas serão disponibilizadas no sistema, sem identificação dos licitantes e, ordenadas as mesmas pelo critério de menor preço, se dará início à fase de lances, estes fornecidos exclusivamente pelo sistema.

Encerrada a etapa de lances e aceita a proposta classificada em primeiro lugar quanto à compatibilidade o preço em relação ao estimado, o pregoeiro verificará a habilitação do licitante que forneceu o melhor preço.

Tal verificação se dará através de consulta ao Sistema de Cadastro de Fornecedores – SICAF, mantido pelo governo federal, e, se a documentação exigida para habilitação não estiver contemplada nesse cadastro, deverá ser enviada pelo licitante via fax, mediante apresentação do original posteriormente.

Se a proposta do licitante não for aceitável ou este não atender a todas as exigências relativas à habilitação, o pregoeiro passará a examinar a proposta e documentos do licitante classificado em segundo lugar, e assim sucessivamente, até encontrar um fornecedor que atenda a todas as exigências quando então este será declarado vencedor.

Nesse momento, inicia-se a fase recursal, que segue o procedimento instituído na Lei 10.520/02 (porque norma geral) e, no caso dos entes federais no art. 26 do Decreto 5.450/05:

Art. 26. Declarado o vencedor, qualquer licitante poderá, durante a sessão pública, de forma imediata e motivada, em campo próprio do sistema, manifestar sua intenção de recorrer, quando lhe será concedido o prazo de três dias para apresentar as razões de recurso, ficando os demais licitantes, desde logo, intimados para, querendo, apresentarem contra-razões em igual prazo, que começará a contar do término do prazo do recorrente, sendo-lhes assegurada vista imediata dos elementos indispensáveis à defesa dos seus interesses.

(...)"

Veja-se que o sistema recursal no pregão eletrônico segue, basicamente, a mesma norma instituída no pregão presencial, ou seja, exige que após a declaração do vencedor o licitante apresente imediata e motivadamente suas razões de insurgência, devendo apresentar memoriais em três dias.

No entanto, tal sistema não é tão simples quanto parece.

Como se percebe, exige o Decreto que, da mesma forma como ocorre com o pregão presencial, no pregão eletrônico o licitante indique as razões pelas quais está recorrendo. Ou seja, que apresente sua intenção de recurso imediata e motivadamente.

Ocorre que essa regra só poderia ser observada se o licitante que pretende recorrer tivesse amplo e irrestrito acesso a todos os documentos que compõe o processo licitatório, inclusive propostas e documentos de habilitação de seu concorrente.

Isso porque, é impossível a manifestação de qualquer intenção de recurso enquanto não se tem ciência do conteúdo do processo administrativo e dos documentos apresentados pelo licitante vencedor, que, dependendo do tipo de bem adquirido, pode vir acompanhada de documentos extensos e técnicos (manuais, autorizações de funcionamentos para as empresas, alvarás sanitários, etc.).

Assim, à primeira vista, o que se tem é que a exigência de que o licitante manifeste motivadamente sua intenção de recurso pode vir a ferir o princípio constitucional do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, uma vez que via de regra lhe é assegurado o direito ao recurso mas não se lhe dá meios de exercer tal direito.

Nesse sentido, destaque-se a doutrina de JUSTEN FILHO [13], aplicável ao assunto:

No âmbito do pregão comum, o licitante tem o dever de indicar, desde logo, os fundamentos de seu recurso. Ser-lhe-á assegurada a faculdade de apresentação de ‘memorial’, no prazo de três dias úteis. Esses memoriais destinam-se ao desenvolvimento e aprofundamento das razões anteriormente indicadas.

Essa solução é incompatível com as características do pregão eletrônico. É que, no pregão eletrônico, o licitante não tem acesso material e visual aos documentos apresentados pelos demais competidores. No pregão comum, os licitantes dispõem da faculdade de exame de todos os elementos apresentados e trazidos aos autos.

Impor ao licitante insatisfeito, no pregão eletrônico, o dever de deduzir desde logo os fundamentos de sua insatisfação equivaleria a frustrar o seu direito constitucionalmente assegurado de exercitar o recurso. (...)

Logo, a aplicação do princípio constitucional da ampla defesa e do devido processo administrativo exige que se assegure oportunidade para o licitante examinar todos os atos praticados ao longo do pregão eletrônico. Não é admissível impor a regra do exaurimento das razões recursais por ocasião do término da sessão da licitação. Essa previsão é compatível com a natureza do pregão comum, em que o licitante acompanha fisicamente as ocorrências e tem possibilidade de apurar eventuais defeitos na medida em que eles se concretizam. Como tal não ocorre no pregão eletrônico, o prazo recursal apenas pode iniciar seu curso após facultada ao interessado a oportunidade para examinar e rever os documentos de formalização do certame, com ampla possibilidade de acesso a todos os registros eletrônicos acerca dos eventos verificados.

No mesmo sentido se mostra o entendimento de NEVES [14], que expõe seu entendimento quando comenta sobre o citado art. 26:

Evidentemente o comando normativo regulamentador acima citado não foi capaz de solucionar o problema pertinente ao efetivo exercício do direito recursal no Pregão Eletrônico, até porque reiterou a necessidade de manifestação imediata e motivada da intenção de recurso em campo próprio do sistema, mesmo sabendo-se da impossibilidade de acesso à documentação e à proposta do licitante declarado vencedor.

(...) duas premissas fundamentais devem ser consideradas, especialmente pelo agente público: 1) o respeito ao direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório previstos no artigo 5º, inciso LV da Constituição da República. Não há como se exercer o direito recursal e motivas as razões sem acesso aos documentos e proposta do concorrente declarado vencedora da disputa; 2) o prazo de manifestação da intenção recursal no Pregão Eletrônico não deve ser iniciado e, muito menos encerrado, sem que os autos estejam disponíveis ao interessado para análise (Parágrafo Quinto do artigo 109, da Lei num. 8.666/93, aplicável subsidiariamente ao caso.)

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SANTANA também traz a lume a questão relativa à dificuldade para concessão da vista dos autos, através da qual o licitante elaborará suas razões de recurso. Questiona o referido autor [15]:

Ora, como a licitação é a distância (...) de que modo franquear efetivamente a vista dos autos? Como o licitante do Piauí terá acesso efetivo aos autos que se encontram em São Paulo? Como aquilatar fatos e motivos jurídicos sem os autos em mãos?

Assim, há discussão acerca da violação ao direito constitucional da ampla defesa, contraditório e devido processo legal (administrativo) uma vez que, se por um lado a legislação estabelece a necessidade de o licitante manifestar imediata e motivadamente a intenção de recorrer, por outro não dá subsídios para que essa intenção seja exposta.

Outra dificuldade para os licitantes se faz presente no que diz respeito ao momento da abertura do prazo recursal, dificuldade essa que pode ensejar também violação ao princípio da ampla defesa e contraditório.

Muitas vezes, durante o curso do pregão eletrônico, a sessão pode ser suspensa. Assim pode ocorrer quando, por exemplo, o pregoeiro determina que o licitante detentor do melhor preço envie documentos (de habilitação e proposta) por fax, com a ressalva de que deve entregar os originais posteriormente.

Ocorre que é essencial que seja previamente comunicada aos licitantes a data e horários em que a sessão será retomada para que seja declarado o vencedor e aberto o prazo para recorrer.

No entanto, a prática demonstra que nem sempre isso acontece, posto que comumente as licitações permanecem "suspensas" para averiguação da documentação do licitante que ofereceu o menor preço (averiguação essa que se dá no âmbito interno da administração) e, sem qualquer aviso aos demais participantes, são reabertas as sessões com a declaração do vencedor e com a abertura do prazo para apresentação da intenção de recorrer.

Nessas hipóteses, se não existir a prévia intimação acerca da data da reabertura ou se ao menos o tempo para interposição da intenção de recurso não for razoável (por exemplo, 24 horas), pode sem dúvidas ocorrer violação ao princípio da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, vez que se mostra absolutamente inviável para o licitante permanecer conectado e acompanhando o certame 24 horas por dia.

Ainda, o Decreto 5.450 estabelece que o licitante que recorreu deve enviar suas razões no prazo de 03 dias. Ocorre que, de modo a garantir a ampla defesa, o sistema deveria permitir não apenas que sejam enviadas as razões mais também eventuais documentos que o licitante recorrente queira anexar para comprovar o seu direito.

Assim, enquanto que nas licitações regidas exclusivamente pela Lei de Licitações ou ainda no pregão presencial o licitante tem a possibilidade de protocolar suas razões de insurgência diretamente no órgão público, pode ocorrer de o pregão eletrônico exigir que, nessa modalidade, o envio das razões de recurso se dê via sistema.

Nesse caso, há necessidade de o sistema suportar o envio de grande quantidade de documentos ou o protocolo por outra via, sob pena de ferir-se inegavelmente o direito de defesa do recorrente.

SANTANA defende:

A todo modo, as razões recursais, na medida em que o sistema permita, deverão ser inseridas em face da licitação respectiva por meio eletrônico. Admite-se, onde isso não for possível, que tal peça possa ser enviada por outro via eletrônica (e-mail ou até mesmo fac-símile). [16]

Como se vê, muito embora o legislador tenha a intenção de simplificar os procedimentos atinentes às licitações públicas, instituindo a realização de sessões através da internet, e aumentar a competitividade pode ensejar, se não tomado cuidado por parte da administração pública, cerceamento ao direito de defesa do recorrente, questão que pode ser levada ao Judiciário na defesa dos interesses deste.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KREMER, Giselis Darci. Problemática do sistema recursal no pregão eletrônico (Decreto nº 5.450/05).: Violações aos princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2959, 8 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19723. Acesso em: 17 abr. 2024.

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