2. Da utilização da ação rescisória. Ação rescisória constitucional e ação rescisória constitucional.
No prefácio do livro O Dogma da Coisa Julgada. Hipóteses de sua Relativização, o ilustre processualista e eminente defensor da tese da aplicação da Coisa Julgada Inconstitucional, Humberto Theodoro Jr., assevera que "(...) o fenômeno da inconstitucionalidade se reduz a uma relação de validade: se o ato de poder – qualquer que seja ele –é conforme a constituição, vale; se não é, não vale. É pelo mecanismo da nulidade, portanto que se resolve o problema do ato incompatível com a ordem constitucional [44]"
Até aí nenhum problema, aliás, a tese se mostra razoável e acorde com a harmonia de tratamento que deve orientar a análise dos atos de todos os poderes. Por isso, a sentença/acórdão inconstitucional seria nula e, como ato nulo deveria ser tratado.
Como dito acima, um dos problemas encontrados pela Doutrina que certamente causa dificuldade ao reconhecimento da tese da coisa julgada inconstitucional está quanto ao instrumento a ser utilizado para o seu reconhecimento e impugnação. Já se falou sobre querella nulitatis, os embargos à execução e inclusive a hipótese do reconhecimento da ação autônoma de impugnação.
Diante disso, o eminente processualista Humberto Theodoro Júnior arremata que "Não há que se cogitar de ação rescisória em semelhante conjuntura porque não é ela o remédio processual concebido para a declaração de nulidade, mas para romper sentença válida, nas hipóteses excepcionais do art. 485 do CPC [45]"
Quanto a isso, vê-se que há algumas objeções a serem postas, pois a própria ação rescisória já vem sendo utilizada para o reconhecimento da coisa julgada inconstitucional. Basta que seja manejada dentro de prazo decadencial de 02 anos – art. 495 do CPC. Tanto isso é verdade que o Enunciado da Súmula do Supremo Tribunal Federal n º 343 é devidamente afastado quando a controvérsia se dá em torno de matéria constitucional.
Portanto, o que aconteceu com a ação rescisória?
Não há como afastar que, em seus primórdios, a ação rescisória como asseverou Humberto Theodoro Júnior não se prestava à anulação ou ao reconhecimento de nulidades. Estava isso a cargo da querella nulitatis insanabilis.
Ocorre que, sendo mantido o entendimento de que apenas a querela nulitatis serviria ao reconhecimento de sentenças nulas por inconstitucionalidade, haveria alguns problemas. Um deles diz respeito à competência para julgamento e processamento dessa ação. Isso porque a Constituição previu expressamente a competência originária dos tribunais apenas para o julgamento da ação rescisória – veja art. Art. 102, I, "j"; art. 105, I, "e"; art. 106, I, "b’ da CF – e, não se pode atribuir competência aos tribunais de lege ferenda.
Não podendo os tribunais julgar as ações anulatórias, querella nulitatis – ajuizadas contra acórdãos inconstitucionais por eles proferidos, caberia à Justiça de 1ª instância, pela competência residual que lhe cabe, julgar essas ações anulatórias. Isso causaria, no mínimo, desconforto para os juízes de primeira instância, além do que afastaria a regra geral de que aos tribunais sempre cabe a análise de seus julgados, antes que a instância ad quem se pronuncie. Seria um contra senso que seus atos fossem julgados pelos juízes de 1ª instância.
Seria uma inversão da regra de competência e a quebra da "hierarquia" entre os membros do Poder Judicário. Utiliza-se das aspas, em razão da autonomia e independência que deve pautar a atuação dos juízes e não a hierarquia em si mesmo.
Assim, afastada está a impugnação da coisa julgada inconstitucional pela via da querella nulitatis insanabilis.
Repita-se, a própria jurisprudência já tomou emprestada as disposições atinentes à ação rescisória para que, como foi dito, evite-se que um juiz de 1ª instância tenha o desconforto de anular por inconstitucionalidade acórdão proferido pelo tribunal que lhe é administrativamente superior.
É notório, neste ponto, que já se vem admitindo a rescisória quando a divergência jurisprudencial tiver por base a controvérsia constitucional. E controvérsia constitucional tem como uma das suas faces a permanência ou não de sentença / acórdão dissonante da CF. E, segundo vem sendo defendido, a permanência de ato dissonante da Constituição é a permanência de ato nulo e, esse ato nulo já vem sendo impugnado pela via da ação rescisória. Veja-se decisão a respeito: "Recurso Extraordinário. Agravo Regimental. 2. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343. 3. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação constitucional revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 4. Agravo regimental a que se nega provimento [46]"
Fica a pergunta, não seria isso uma hipótese de mutação constitucional quanto à ação rescisória? Não teria havido a mudança das circunstâncias fáticas que levam à alteração do próprio sentido da Constituição Federal?
Ora, não se nega que ao tempo da promulgação da CF o termo Ação Rescisória estaria estritamente ligado àquela do art. 485 do CPC. Ocorre que o tempo foi passando e a Ação Rescisória em matéria constitucional foi se afastando paulatinamente da interpretação que era dada à ação rescisória em matéria legal. Está se utilizando o mesmo instituto jurídico com dois pesos e duas medidas. Ora! Por que não admitir que, na verdade, trata-se de uma nova espécie de ação rescisória com enfoque constitucional, que foge a disciplina da ação rescisória em matéria legal?
O fato é que esse novo enfoque dado à rescisória em muito resultou da repulsa causada com a demora na resolução de casos constitucionais relativos a demandas de massa e o trânsito em julgado de decisões discordantes em casos como o dos 28,86%, URPs, FGTS, etc.
Isso certamente levou à mudança da compreensão sobre a ação rescisória, pois permanecia a sua inadmissão para os casos de controvérsia jurisprudencial em matéria legal mas foi expressamente admitida para a controvérsia constitucional, na busca da máxima efetividade da Constituição Federal.
Ou seja, a mudança nas circunstâncias fáticas, por exemplo, os inúmeros casos de massas com diversas decisões sobre a Constituição, levaram a uma nova apreensão do instituto da Ação Rescisória a fim de que se resguardasse maior efetividade do texto constitucional e da própria eficácia normativa da CF, taxando de nulidade o acórdão proferido em desconformidade com o texto constitucional.
Assim, não resta outra alternativa a não ser o reconhecimento de que existem na verdade, por força dessa nova interpretação constitucional, duas faces da Ação Rescisória.
- Ação rescisória legal (art. 485, CPC);
- Ação rescisória constitucional, onde o cabimento estaria na desconformidade do julgado com a Constituição, utilizando-se supletivamente nas mesmas regras do CPC. Isso é o que vem sendo feito pela jurisprudência.
E, com essa diferenciação, a situação começa a merecer uma nova roupagem, pois permaneceria a Ação rescisória do art. 485 do CPC plenamente viável nos casos em que se visa afastar sentença válida, conforme disse Humberto Theodoro Júnior. E a ação rescisória constitucional para os casos onde se busca afastar os casos de decisões, leia-se sentenças e acórdãos nulos/inconstitucionais.
Enfim, a ação rescisória disposta na Constituição sofreu mutação constitucional, pois ninguém à época da Constituinte, visava afastar a aplicação da ação rescisória do regramento disposto pelo próprio Código de Processo Civil, mas veja-se que com o passar do tempo houve a nova disciplina da Ação rescisória, principalmente, com fundamento constitucional. Nesses casos a ação rescisória serve à anulação e não à mera rescisão de sentenças contrárias à Constituição. Veja a Jurisprudência: "Recurso Extraordinário. Agravo Regimental. 2. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343. 3. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação constitucional revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 4. Agravo regimental a que se nega provimento [47]." Veja entendimento diverso quanto à ação rescisória legal: "PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. I. - Ação rescisória inadmitida com base na Súmula 343- STF. Questão de natureza processual, infraconstitucional, que não autoriza o recurso extraordinário. II. - Inocorrência de prequestionamento da questão do direito adquirido. III. - R.E. inadmitido. Agravo não provido [48]."
Nada mais houve do que uma nova consciência do que viria a ser a acepção do termo Ação Rescisória contido na Constituição, servindo tanto à descontituição de julgado contrário a lei quanto àquele contrário à Constituição, e por isso nulo. Há um novo enforque sobre a Ação rescisória, isso é inegável, pois, repita-se, ela já é o remédio correto para desconstituição do julgado nulo por inconstitucionalidade se a ação é proposta dentro do prazo decadencial, o que afasta a Rescisória do que era o seu pretérito objetivo.Sem dúvida houve mutação constitucional. E, nesse ponto são elucidativas as palavras de Anna Cândida da Cunha Ferraz a respeito de alterações constitucionais, in verbis: "Daí a distinção que a doutrina convencionou registrar entre reforma constitucional e mutação constitucional, a primeira consiste nas modificações constitucionais reguladas no próprio texto da Constituição (acréscimos, supressões, emendas), pelos processos por ela estabelecidos para sua reforma; a segunda consiste na alteração, não da letra ou do texto expresso, mas do significado, do sentido e do alcance das disposições constitucionais, através ora da interpretação judicial, ora dos costumes, ora das leis (...) [sem grifo no original]." [49].
Houve, sem dúvida, a mudança do significado do termo ação rescisória disposto na Constituição, pois utilizada de uma forma se visa rescindir sentença que viola literal dispositiva de lei, e utilizada de outra forma se visa anular sentença inconstitucional. Teori Albino Zavascki resume bem o tratamento diferenciado da ação rescisória constitucional e da ação rescisória legal, veja:"(omissis)d) relativamente às normas infraconstitucionais, entende-se como ‘violação literal’ a que se mostra de modo evidente, flagrante, manifesto, não se compreendendo como tal a interpretação razoável da norma, embora não a melhor;
e) quando a norma for de interpretação controvertida nos tribunais, considera-se interpretação razoável a que adota uma das correntes da divergência, caso em que não será cabível a ação rescisória (Súmula 343 do STF);f) relativamente às normas constitucionais, que têm supremacia sobre todo o sistema e cuja guarda é função precípua do Supremo Tribunal Federal, não se admite a doutrina da ‘interpretação razoável’, mas apenas a da melhor interpretação, não se lhes aplicando, por isso mesmo, o enunciado da Súmula 343; g) considera-se a melhor interpretação, para efeitos constitucionais, a que provem do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, razão por que se sujeitam à ação rescisória, independentemente da existência de controvérsia sobre a matéria nos tribunais, as sentenças contrárias a precedente do STF, seja ela anterior ou posterior ao julgado rescindendo, tenha ela origem em controle concentrado de constitucionalidade, ou em controle difuso, ou em matéria constitucional não sujeita aos mecanismos de fiscalização de constitucionalidade dos preceitos normativos; h) não havendo precedente do STF sobre a matéria, o princípio da supremacia da Constituição e a indispensabilidade da aplicação uniforme de suas normas impõem que se admita ação rescisória, mesmo que se trate de questão controvertida nos tribunais; [50]
E, por isso, entende-se que o instrumento capaz para o reconhecimento da coisa julgada inconstitucional é a ação rescisória com fundamento no art. 485, inciso V do CPC (conquanto é caso de violação literal a dispositivo de Lei, nesse caso constitucional). Aqui, violação à lei deve ser considerada violação à Constituição como já vem normalmente acontecendo. E, nesse ponto, ou seja, quanto à fundamentação da utilização da Ação rescisória a própria prática processual já indica a utilização do art. 485, inciso V, pois, para Teori Albano Zavascki quando o art. 485, inciso V, fala em "violação literal dispositivo de lei" ela não tem o significado de lei em sentido estrito, mas em sentido amplo, designando o gênero normativo de que fazem parte não apenas a lei ordinária, mas todas as demais espécies de normas jurídicas, inclusive a constitucional. O código, em suma, emprega o vocábulo como sinônimo de direito, de norma jurídica, conforme reconhece nossa doutrina mais autorizada [51]".
Com isso, a Ação rescisória já é o instrumento utilizado quando a impugnação da coisa julgada inconstitucional ocorre dentro do prazo decadencial disposto pelo art. 495 do CPC. Dessa forma, não há razão para que se a ato jurisdicional for impugnado fora desse prazo decadencial outro deva ser o instrumento processual utilizado, pois, como dito, o instituto da ação rescisória sofreu mutação constitucional para transformá-lo, em matéria constitucional, em evidente ação anulatória.
E assim, mantém-se a competência originária dos Tribunais para analisarem seus próprios julgados, evitando a quebra da ordem lógica de julgamento que há muito domina a prática jurídica.
No entanto, a utilização da ação rescisória não impede a utilização dos embargos à execução na forma do atual artigo 741 § 1º do CPC, visto anteriormente, aliás a ação rescisória poderia ser proposta quando fossem os embargos à execução incabíveis (quando a obrigação é apenas de fazer, por exemplo) ou extemporâneos (quando a matéria constitucional ainda não tenha sido julgada pelo Supremo Tribunal Federal), assim como pode ocorrer com qualquer ação anulatória.
Tal rescisória poderia ser proposta mesmo que posteriormente ao prazo de 02 anos do trânsito em julgado conforme será defendido posteriormente. Isso porque o ordenamento não poderia dar ao autor apenas uma forma de defesa que são os embargos, pois a sentença impugnada pode não depender de processo de execução. Com isso, deve-se possibilitar uma forma de ataque a coisa julgada inconstitucional, que nesse caso se trata da ação rescisória no prazo de que se falará em seguida.
Com isso, conclui-se que os instrumentos hábeis ao reconhecimento da coisa julgada inconstitucional são a ação rescisória e também os embargos à execução como proposto pelo art. 741 § 1º do CPC além da argüição de erro em precatórios no caso de execução por quantia certa contra a fazenda pública.
2.1. Do prazo para impugnação
Defende-se neste trabalho que os instrumentos hábeis ao reconhecimento da coisa julgada inconstitucional são três: a ação rescisória, chamada constitucional, os embargos à execução.
Ocorre que, não se aplicariam a essa Ação Rescisória Constitucional todas as disposições da Ação Rescisória Legal, pois, afirme-se, a ação rescisória legal visa rescindir uma sentença válida e a Ação rescisória Constitucional visa anular sentença inválida. Daí que elas não podem ser tratadas da mesma forma como está ocorrendo na prática.
A sentença nula, por exemplo, não pode se convalidar no exíguo prazo de 02 anos previsto no Código de Processo Civil, como se verá a seguir:
Mas, como afastar o prazo decadencial para os casos de ação rescisória constitucional?
Em suma, esse prazo deve ser afastado porque específico para a ação rescisória legal visto que inaplicável aos casos da ação rescisória constitucional. Na verdade, ação rescisória constitucional seria uma típica ação de nulidade, sem prazo fixo disposto em lei, o que não impede que a nulidade seja afastada de maneira indireta pela prescrição do direito subjetivo (que à falta de prazo específico seria de 10 anos, veja-se art. 205 do Código Civil de 2002) ou da usucapião no caso de direitos reais. Tal posicionamento, todavia, será fundamentado com base nos preceitos que se seguem.
A ausência de prazo para essa ação rescisória que nomeia-se constitucional para diferenciá-la da ação rescisória legal foi defendida pelo Eminente Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, mas, de pronto foi afastado pelo seu colega de turma, o Desembargador Federal Carlos Moreira Alves, que proferiu voto vencedor nos Embargos Infringentes em Ação Rescisória n º 1999.01.00015489-6 de relatoria do Eminente Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral onde asseverou que, para se alterar o prazo de 02 anos da ação rescisória dever-se-ia afastá-lo por ser inconstitucional e por isso inviável o seu afastamento, pois o artigo seria plenamente constitucional.
Não é isso verdade! O que acontece é que o art. 495 do CPC deve ser interpretado conforme a constituição e seja reconhecida a mutação constitucional ocorrida na acepção do significado da ação rescisória disposta na Constituição para que:
1. (a) o art. 495 – que dispõe sobre o prazo da ação rescisória – tivesse sua aplicação restrita aos casos de sentenças com fundamento legal ou
2. (b) poder-se-ia interpretar esse artigo de forma que o prazo de 02 anos continuasse sendo contado a partir da decisão, mas não da decisão do processo, mas sim contado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, seja em controle abstrato ou em controle concreto, desconsiderando-se a necessidade de suspensão de vigência pelo Senado. Tal posicionamento, apesar de aparentemente resolver pouco, poderia ser utilizado como forma de conformação da segurança jurídica com a efetividade da Constituição e do princípio da isonomia.
E, nesse ponto, qualquer que fosse a interpretação dada não se falaria em reserva de plenário, pois dispensável nos caos de interpretação conforme a Constituição [52]!
Diante dessas hipóteses, melhor seria a própria não aplicação do prazo da rescisória do art. 495 aos casos de anulação de sentença inconstitucional. Isso porque a manutenção de ato nulo com prazo fixo para sua declaração está em dissonância com os sistemas de nulidade dos atos públicos em geral.
Veja que se a lei ou ato normativo considerado inconstitucional é nulo sua declaração/decretação de nulidade não tem prazo para sua declaração/decretação e, em regra, tem eficácia ex tunc, não se convalescendo nem mesmo com o tempo. Nesse ponto muito semelhante à teoria de nulidades do direito privado onde o tempo não tem o condão de convalidar o ato nulo – art. 169 do Código Civil: "O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.". Nesse ponto, ressalva-se a possibilidade de em face da prescrição ou usucapião poder levar ao convalescimento indireto da sentença nula. Ou seja, a sentença seria ato nulo, inconvalidável pelo tempo, mas a ação rescisória constitucional não surtiria efeito pois prescrito o direito subjetivo ou usucapido o direito real que a sentença conferiu.
Não se considerando, todavia, a sentença/acórdão como ato normativo assim como a lei, dever-se-ia considerá-lo como um ato do poder público como qualquer outro do Legislativo e Executivo.
E, com isso, chega-se à discussão que há muito provoca os juristas: Os atos públicos, neste caso as sentenças, devem ou não ter regime de nulidade diverso do Direito Privado?
Em face disso, faz-se necessário abrir um parênteses para fazer uma breve menção à teoria da nulidade no campo privado.
Sempre se defendeu no direito privado que a nulidade absoluta seria insanável, mesmo pelo decurso do tempo, mas o STF no Enunciado de Súmula n º 494 [53], quando tratava matéria privada, fixou o entendimento de que o decurso do prazo prescricional máximo, 20 anos, seria aquele em que o ato nulo se convalidaria, e aqui, lembre-se que o Supremo se equivocou em falar em prazo prescricional, pois, na verdade a ação de decretação de nulidade obedece a prazo decadencial. Tal direito à declaração de nulidade se enquadra entre os direitos potestativos que independem da colaboração da outra parte para serem exercidos.
Tal discussão todavia perdeu um pouco do charme porque o Novo Código Civil de 2002 afastou expressamente esse Enunciado de Súmula, ou seja, a nulidade absoluta, em direito privado jamais se convalesce com o tempo – veja artigo 169 – "O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo".
Quanto à aplicação da teoria da nulidade do direito privado ao campo público ainda há que ressalvar que seria a sentença ou o ato público espécie de negócio jurídico nulo ? Ou seja, a sentença é ou não um negócio jurídico?
Pois bem, se assim fosse, transportado isso para o campo do direito público, a sentença inconstitucional seria absolutamente nula, impassível de convalescimento, salvo de forma indireta.
O convalescimento de forma indireta dos atos nulos ocorreria com a usucapião quando se tratar de ato jurídico relativo a direitos reais. Ou seja, uma sentença que conferisse um direito real a alguém em desconformidade com a Constituição seria inconvalidável, mas àquele que foi erroneamente conferido o direito real estaria aberto o caminho da aquisição desse mesmo direito por força da usucapião que, frise-se, é forma originária de aquisição de propriedade.
Outra forma de convalescimento do negócio jurídico, se assim fosse considerada a sentença, estaria na prescrição da pretensão de repetição de pagamento indevido em casos de sentenças proferidas com base em pretensão ligada a direito subjetivo. Ou seja, uma sentença conferindo direito subjetivo a alguém em desconformidade com o texto constitucional seria nula, inconvalidável, mas a violação do direito subjetivo decorrente dessa sentença em desconformidade à Constituição, por sua vez, é prescritível e tem seus prazos dispostos pelo Código Civil, se aplicável a espécie.
Todavia, há quem sustente que no direito público não há atos absolutamente nulos mas tão somente anuláveis, porque a própria lei do processo administrativo - Lei 9784/99, art. 54 assevera: "Art. 54. O direito da Administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé."
Assim, sabe-se que para que ocorra a anulação por parte do particular deve-se recorrer ao Judiciário e tal prazo, como diz respeito à anulação, leva à conclusão de que mesmo os atos administrativos supostamente absolutamente nulos se convalesceriam com o tempo, nesse caso, após 5 (cinco) anos. Assim, a mencionada lei restringiu o prazo para reconhecimento da nulidade a 5 anos, ou seja, expressamente admite o convalescimento da nulidade pelo tempo. Por isso, defende-se que aí se trata de mera anulabilidade e que quanto aos atos públicos em geral não se aplicariam as disposições do Código Civil. Assim, uma sentença proferida em desconformidade com a Constituição, se levasse a cabo efeitos favoráveis aos administrados, convalesceria em 5 (cinco) anos contados do trânsito em julgado.
Pode-se, por outro lado, dizer que, no conceito de ato administrativo, não se poderia incluir as decisões judiciais e assim esse prazo disposto pela Lei do Processo Administrativo não caberia ser aplicado aos atos jurisdicionais. Em resposta, basta enquadrar as decisões judiciais dentro de um conceito amplo de ato administrativo, sendo uma das espécies de atos públicos conforme se asseverou no tópico correspondente.
Muito bem, para aqueles que vierem a afastar a aplicação desse artigo ainda existe a opção teoria de nulidade do direito privado, com o não convalescimento da nulidade com o tempo, salvo pela via indireta.
Interessante notar, por sua vez que, se for a Administração Pública aquela que visa desconstituir o julgado inconstitucional, os prazos de decadência para decretar a nulidade de seus atos (Lei 9.784/99) bem como o prazo de prescrição relativo ao seu direito subjetivo(Decreto 20.910/32) são exatamente os mesmos – 5 (cinco) anos.
E daí?
Pois bem, considerada a teoria das nulidades do campo civil onde a nulidade é insanável pelo decurso do tempo, ainda assim a sentença inconstitucional desfavorável à Administração, apesar de nula, convalesceria indiretamente no prazo de 5 (cinco) anos, ou seja no prazo prescricional disposto pelo art. 1º do Decreto 20.910/32, caso o direito envolvido se enquadrasse entre os direitos subjetivos. Um exemplo disso seria a concessão pelo Judiciário de um vantagem que teve o seu trânsito em julgado 5 (cinco) anos antes de que fosse considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Note-se que a aplicação da ação rescisória para o reconhecimento da coisa julgada inconstitucional fecha o Sistema, pois se a parte não executar o montante devido nesses 05 anos o seu direito prescreve. Se executar anteriormente a esses 05 anos, a Adminstração poderia impugnar o título em embargos à execução. Pelo regime atual, ultrapassado o prazo da rescisória, a Administração somente poderia impugnar o título em embargos à execução – há um vácuo de 3 (três) anos! Além disso, fica a questão: E se o aumento concedido foi, como normalmente é, implantado em folha, e a reforma do CPC segundo a da Lei 10.352/02 acabou com o processo de execução, como impugnar isso, a não ser pela Ação Rescisória Constitucional?
Ademais, seguindo a regra civil, a sentença inconstitucional conferindo direito real ao particular seria, em razão da própria regra constitucional, inconvalidável, mesmo que indiretamente, pois, não existe possibilidade da usucapião de bens públicos.
Por outro lado, considerando-se que o prazo da Lei 9.784/99 rege o prazo de anulabilidade e não de nulidade dos atos públicos em geral, inclusive as sentenças inconstitucionais, a sentença desfavorável à Administração Pública também convalesceria no prazo de 5 (cinco) anos, salvo mais uma vez, a impossibilidade de convalescimento quanto a usucapião por vedação constitucional.
Nessa mesma esteira de pensamento, em se tratando de litígios entre particulares, caso haja questão constitucional, aplicar-se-ia o prazo prescricional do direito subjetivo ou mesmo o prazo da usucapião.
Como pode ser visto essas considerações levam em conta uma questão prática: para que o direito de ação rescisória com vistas à decretação de nulidade – sem prazo decadencial para o seu exercício – se o direito subjetivo em que se funda a ação não pode mais ser exigido.
De qualquer forma, fica o posicionamento de que os Tribunais devem assumir a nova roupagem da ação rescisória e afastar o dispositivo relativo ao prazo, pois, específico para a ação rescisória legal, dando-lhe uma interpretação conforme a Constituição. No mais, os tribunais permaneceriam utilizando as disposições regimentais sobre o processamento dessa rescisória constitucional, com reserva de plenário se for o caso, pois a própria CF prevê a competência dos mesmos para desconstituição dos julgados seus e nos casos do TFR e TJ também dos julgados da 1ª instância
Crítica corrente ao presente tema fala-se que, na prática, nunca se consegue depurar o sistema, mas aqui não se visa à perfeição mas sim uma melhor apresentação da matéria conforme o sistema que já vem sendo utilizado para admitir a ação rescisória como instrumento hábil ao reconhecimento da coisa julgada inconstitucional.
Assim se a sentença for ilegal caberá a aplicação do prazo de 2 anos. Se for inconstitucional, e assim por isso nula, o prazo seria de 5 anos e o seu processamento poderia ficar a cabo do regimento interno do tribunal rescindendo.
Pois, como dito, não se pode aplicar o mesmo instituto de forma diferente, a depender da matéria, salvo se ocorrer uma especialização interna desse instituto que aqui se defende tenha ocorrido em relação à Ação Rescisória, em razão das circunstâncias fáticas que se modificaram conforme acima foi exposto.
De toda forma, sirva-se do exemplo a seguir para elucidar e fundamentar a tese esposada
- Em controle difuso, onde a regra é a eficácia ex tunc foi reconhecida uma isenção tributária a um grupo enorme, de forma ex tunc. A lei impugnada também foi objeto de ADI e lá ficou decidido após 02 anos do trânsito em julgado da decisão, no controle difuso, o desacerto da decisão que reconheceu essa isenção do pagamento.
Como conciliar essas decisões se no controle difuso a matéria não chegou no STF e a decisão da ADI também tem efeito vinculante?
A conciliação seria alcançada se acatada a tese da coisa julgada constitucional levando a revogação da isenção dada indevidamente em controle difuso
Ademais, conclui-se, na verdade, que essa ação rescisória que se menciona é um importante instrumento para a manutenção da isonomia, principalmente, e tantos outros princípios previstos na Constituição Federal, como moralidade, justiça, etc.
Com o acatamento do prazo de 05 anos para anulação também se resguardaria o princípio da segurança jurídica, pois, bem ou mal a questão jurídica estaria pacificada com o tempo.
O que falta, portanto, é um ato de coragem da Jurisprudência e da Doutrina conformando-se o valor dado à segurança jurídica ao lado da isonomia de tratamento que deve imperar entre os cidadãos, reservando-se, como não poderia deixar de ser, ao STF o papel de intérprete mor da CF.
E quanto aos efeitos dessa decisão que reconhece a coisa julgada inconstitucional? Teria ela efeitos ex tunc?
Ora! A decisão que desconstituir poderá, em respeito mais uma vez ao princípio da segurança jurídica, ter eficácia apenas ex nunc aplicando-se subsidiariamente o art. 27 da Lei 9868, pois o reconhecimento da coisa julgada inconstitucional é caso de declaração de inconstitucionalidade/nulidade de um ato normativo – sentença/acórdão. Teria ela o condão de anular a sentença/acórdão inconstitucional mas surtindo efeitos apenas para frente.
De toda forma não se pode pactuar com a permanência na Ordem Jurídica de sentença/acórdão contrário à interpretação dada à Constituição pelo Supremo Tribunal Federal. Qualquer forma de expurgá-la é válida.
Sintetizando, como a sentença inconstitucional é ato nulo, inconvalidável, pelo menos diretamente, deve-se reconhecer que o prazo decadencial para ajuizamento da ação rescisória deve ser aquele correspondente ao prazo prescricional ou de usucapião do direito conferido pela sentença. Isso porque a prescrição e a usucapião levam ao convalescimento indireto do ato nulo. Os prazos serão de 05 anos no caso da Administração Pública – ou 10 anos, na falta de prazo específico, art. 205, CC, para as relações privadas – ou o prazo da usucapião do direito. Tal decisão teria apenas eficácia ex nunc aplicando-se analogicamente o art. 27 da Lei 9868/99). Com isso, tratar-se-ia o reconhecimento da coisa julgada de forma sistemática, conformando-no com o resguardo da segurança jurídica.