INTRODUÇÃO
A tortura sempre esteve ligada à história universal, à história do homem. Entretanto, apesar de sua antiguidade, ela continua sendo um assunto extremamente atual e, consequentemente, polêmico. Em pleno século XXI, a prática de tortura e de formas cruéis, desumanas e degradantes de tratamento permanece difundida e sistemática, principalmente no Brasil.
Não se pode negar o grande avanço alcançado por diversos países em relação aos direitos humanos, considerados como uma construção histórica em constante construção. É sabido que por séculos os indivíduos eram submetidos a tratamentos excessivamente cruéis por conta de sua cor, de seu sexo, de seu credo, de sua origem, de suas convicções políticas, enfim, por inúmeras razões consoantes ao panorama histórico, político e social de determinada época. No entanto, foi-se percebendo a necessidade de se estabelecer direitos individuais, intrínsecos à pessoa, dos quais o Estado não poderia dispor. A partir dessa perspectiva, foi-se desenvolvendo um arsenal teórico – juntamente com inúmeras lutas sociais – a fim de que esses direitos fossem efetivamente alcançados, não só formal, mas, principalmente, materialmente. Assim, ao longo do tempo foram sendo reconhecidos os direitos de primeira, os de segunda e os de terceira dimensão.
Nesse contexto, emerge a necessidade de se fazer uma reflexão acerca da tortura no Brasil. Apesar de se dizer que é um país democrático, inúmeras pessoas são submetidas a tratamentos desumanos, mesmo na vigência da Lei de Tortura. Aliás, convém também se questionar o porquê de sua frequente ineficácia, e mais, o porquê da tardia aprovação dessa lei, haja vista a tortura estar presente na conjuntura do país há mais de 500 anos – além dos outros séculos na conjuntura mundial. Esses são, portanto, os escopos do presente trabalho, os quais serão analisados em seguida.
DESENVOLVIMENTO
Antes da análise da atual situação da tortura no Brasil e a influência da Lei de Tortura nesse contexto, convém fazer uma sucinta reflexão acerca da presença da tortura em várias perspectivas históricas.
1.A história da tortura
A prática da tortura acompanha toda a história da humanidade, uma vez que ela esteve presente em todas as civilizações. O homem sempre foi passível de ser submetido a algum tipo de tratamento cruel na medida em que se viu inserido em uma relação de poder, à qual estava, evidentemente, subordinado. Essa presença da tortura na história esteve vinculada à sua aparente necessidade para a resolução de um eventual conflito.
Podem-se colher vários exemplos nas civilizações antigas, tendo sido até mesmo incorporada nas incipientes legislações. Na Mesopotâmia, por exemplo, havia o Código de Hammurabi (aproximadamente 1694 a.C.), composto por 282 artigos, dentre os quais havia matéria de direito de família, de direito econômico, de direito penal e de direito privado [01]. No concernente ao direito penal, havia diversas penas ligadas à mutilação e ao castigo físico:
"2. Se alguém imputou a um homem atos de feitiçaria, mas se ele não pôde convencê-lo disso, aquele a quem forem imputadas as atividades de feitiçaria irá ao Rio; mergulhará no Rio. Se o Rio o dominar, o acusador ficará com a sua casa. Se este homem for purificado pelo Rio, e se sair são e salvo, aquele que lhe tinha imputado ato de feitiçaria será morto; aquele que mergulhou no Rio ficará com a casa de seu acusador." [02]
Mais à frente, está expresso em seus artigos 195, 196 e 197:
" 195. Se um filho agrediu um pai, ser-lhe-á cortada mão por altura do pulso. 196. Se alguém vazou o olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o olho. 197. Se ele partiu o osso de um homem livre, ser-lhe-á partido um osso." [03]
Na Grécia e em Roma, civilizações exaltadas pela sua capacidade de elaboração de normas desvinculadas de um caráter divino – transcendental -, a tortura também era permitida – e instigada –, principalmente quando se referia a escravos e a estrangeiros. Dentre os métodos mais utilizados estão o açoitamento, a crucificação, o chicoteamento, o envenenamento, a morte a pauladas, o apedrejamento, o enterro em vida. Entretanto, é na Idade Média que a tortura é mais bem visualizada, especialmente pelo maior acesso a fontes históricas. Diferentemente dos romanos e dos gregos, a cultura jurídica da Idade Média irá atribuir à confissão obtida sob tortura uma importância decisiva e inédita.
Esse período foi fortemente marcado pelos suplícios, caracterizados como grande punição corporal imposta por uma sentença. Desde a Antiguidade, tinha-se como pressuposto que o indivíduo que cometesse algum crime, ou mesmo fizesse algo que ameaçasse a autoridade, devia ser submetido a sessões de tortura que, muitas vezes, resultavam em morte. Durante a Idade Média, inúmeros instrumentos de tortura foram desenvolvidos a fim de que possibilitassem o maior sofrimento possível. A ideia da aplicação da pena como correção, ou prevenção, não existia. Pelo contrário, ela tinha, essencialmente, um caráter de vingança, sendo que o corpo era o alvo principal da repressão penal. Podem-se citar alguns métodos de tortura, como a serra, a submersão no azeite em ebulição, as gaiolas suspensas, a roda para despedaçar, a dama de ferro, o quebrador de joelhos, pêra oral, retal e vaginal, o destroçador de seios, etc. As sessões de tortura eram verdadeiros espetáculos públicos, nos quais uma grande quantidade de pessoas se concentrava para ver o sofrimento físico como elemento constitutivo da pena.
Outro aspecto do período medieval que deflagrou o uso intenso de instrumentos de tortura foi o advento dos ordálios e dos duelos judiciais. Por meio daqueles, os conflitos judiciais eram resolvidos, utilizando-se de provas irracionais, tais como verificar quem conseguia passar sobre brasas quentes, quem suportava mais a dor, etc. Não se pode olvidar também que a Inquisição foi fundamental para consolidar o regime das torturas. Qualquer pessoa que fosse considerada herege era submetida a verdadeiros tratamentos cruéis a fim de que pudesse se arrepender e servir de lição a outros indivíduos que se atrevessem a ameaçar a autoridade da Igreja. Cremações, instrumentos de mutilação, esmagadores de cabeça, de polegares, garrote, entre outros, eram abusivamente utilizados.
No entanto, com o desenvolvimento da civilização, provocado pelo crescimento do comércio, pela laicização do governo, pela Revolução Científica, pela Reforma Protestante, pelo revigoramento das cidades e das universidades, a conjuntura social se transformou. As sessões públicas de tortura não eram mais toleradas, mesmo porque o poder da Igreja havia se restringido bastante. Dessa maneira, começa a haver uma reforma no sistema penal, visando à transformação da concepção de pena como punição corporal. Inicia-se, como diz Foucalt, uma reflexão acerca da possibilidade da existência de penas que ferissem mais a alma que o corpo [04]. Assim, os "espetáculos" vão se enfraquecendo e, do mesmo modo, a concepção de que a dor física era, necessariamente, um elemento da pena. A partir dessas importantes alterações, Foucalt assevera que "Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado no período compreendido entre 1830 e 1848." [05].
A partir dessa desconstrução da pena como sofrimento do corpo e da consequente construção da pena como correção e prevenção, passa-se a considerar que a sanção devia ter por objetivo não somente a punição pelo crime cometido, mas sim, a tentativa de influir sobre aquilo que o agente é ou possa ser. Diz Foucalt que passa a ser importante
"(...) dar aos mecanismos de punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão ou possam ser. (...). Faz 150 ou 200 anos que a Europa implantou seus novos sistemas de penalidade e, desde então, os juízes, pouco a pouco, (...) começaram a julgar coisa diferente além dos crimes: a alma dos criminosos." [06]
Com essa reformulação, o sistema penal é alterado em suas bases. Aliada ao Iluminismo e à ascendência de um Estado Liberal – e os subsequentes paradigmas constitucionais ( Estado Social e o Estado Democrático) -, foi possível interiorizar na sociedade o repúdio à tortura, alcançado juntamente com a emergência dos direitos de primeira, segunda e terceira dimensões.
Hodiernamente, vive-se num período posterior às grandes Guerras Mundiais, pelas quais o mundo ficou aterrorizado com a violência cometida por governos nazi-fascistas contra milhares de pessoas (judeus, ciganos, homossexuais, etc.). Por isso, fez-se mister a criação de uma entidade desvinculada dos Estados – a Organização das Nações Unidas -, no escopo de que esta pudesse supervisionar a atuação dos governos frente à população, observando, dessa maneira, o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo. Por conseguinte, restou institucionalizada a necessidade de uma internacionalização e universalização dos direitos humanos [07].
Entretanto, apesar de uma longa luta contra a violência expressa por meio da tortura, esta ainda subsiste em diversos países, especialmente no Brasil, desrespeitando toda a evolução em prol da existência material dos direitos humanos. Faz-se necessária, pois, a análise da recente Lei da Tortura, promulgada no Brasil em 1997, e os seus reflexos na sociedade brasileira.
2.Lei n.º 9455/97
A inclusão de referências à tortura na Constituição de 1988 e, posteriomente, no Estatuto da Criança e do Adolescente e, o que é mais importante, a aprovação da Lei da Tortura em abril de 1997, que define a tortura como crime pelo Código Penal, foram todos marcos importantes no processo de reconhecimento da tortura como delito sujeito à punição criminal. Esses são reflexos de exigências internacionais: em 1984, em Nova York, aprovou-se a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da ONU, que foi adotada pelo Brasil em 1991. Logo em seguida proclamou-se a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (OEA), que entrou em vigor no Brasil em 1989 (Decreto 98.386, de 09.11.1989). Diante dessa conjuntura e, tendo ratificado essas convenções, o Brasil editou – oito anos após a assinatura da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura – a Lei N.º 9455, que, assim, é expressa:
LEI Nº 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997
Define os crimes de tortura
e dá outras providências
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena: reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II - se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos de idade;
III- se o crime é cometido mediante sequestro.
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.
Art. 2º O disposto nesta lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em Território Nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.
Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
Brasília, 7 de abril de 1997, 176º da Independência e 109º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Nelson A. Jobim
Essa Lei, embora seja o instrumento mais importante para acabar com a impunidade disseminada de que desfrutam aqueles que a praticam, não chega a definir de forma plena o ato de tortura conforme o descrito no Artigo Primeiro da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura:
" Artigo 1:
1. Para os propósitos dessa Convenção, o termo ‘tortura’ significa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores o sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram." [08]
Para a Lei da Tortura, é necessário o emprego de "violência ou grave ameaça" quando, na Convenção, a tortura se refere a qualquer ato, não sendo necessariamente preciso o emprego da violência. Além disso, na Lei Brasileira está estabelecido que a tortura pode ocorrer em função de "discriminação racial e religiosa", enquanto a Convenção se refere à "discriminação de qualquer espécie", permitindo uma definição muito mais ampla de discriminação que abarca, por exemplo, a discriminação com base no sexo ou por motivos de natureza social, cultural ou sexual [09].
Após esses breves apontamentos acerca da Lei de Tortura, convém fazer uma análise da situação na qual o Brasil se encontra em relação à tortura e, assim, refletir sobre o real papel desempenhado por essa Lei.
3.A tortura no Brasil atual
Atualmente, a maior parte dos estudos da tortura no Brasil atribui grande importância à herança do país, citando a longa história de escravidão e os períodos mais recentes, sob o governo militar, como fatores que exerceram influência fundamental sobre as atitudes relativas à tortura, bem como sobre a persistência de sua prática. A ditadura militar de 1964-1985 foi marcada por uma forte repressão à oposição política. Como diz o relatório da Anistia Internacional, "O emprego da tortura pelas forças de segurança era político oficial aprovada e, como tal, sua prática tornou-se institucionalizada." [10]. Os meios cruéis de tratamento eram práticas rotineiras utilizadas para conter manifestações contrárias ao regime. Entretanto, após a transição para o regime democrático, boa parte da população acreditava que os métodos policiais violentos e repressivos haviam acabado. Mas não. A tortura estava enraizada nas práticas policiais, além de contar com a ajuda da inexistência de controle dos atos da polícia. Dessa forma,
"A tortura transformou-se, mais uma vez, em um crime invisível e predominantemente esquecido, uma vez que as vítimas não gozam do mesmo status social de muitos dos que foram torturados no regime militar." [11]
Por causa da permanência desse tipo de comportamento, Paulo Sérgio Pinheiro [12] afirma que não houve uma real transição do regime militar para um regime democrático. Para ele, a democracia implica o desaparecimento de práticas desumanas a indivíduos, uma vez que todos devem ser tratados dignamente, por força, inclusive, da Constituição Federal. Em termos políticos, essa transição foi muito importante, pois possibilitou um maior acesso da população à política por intermédio das eleições. Entretanto, no quadro social, as classes menos privilegiadas continuaram sofrendo contínuos ataques à sua dignidade e integridade física. E o maior problema disso tudo é que a tortura passou a ser tolerada, e muitas vezes – até mesmo por meio da mídia -, instigada. É isso que Pinheiro denomina "autoritarismo socialmente implantado": constantes práticas de violência desferidas, principalmente, a pessoas de baixa renda, sem que haja qualquer tipo de punição ou repressão a eles:
"Parece estar inscrito numa grande continuidade autoritária que marca a sociedade brasileira ( e sua ‘cultura política’) diretamente dependente dos sistemas de hierarquia implantados pelas classes dominantes e reproduzidos regularmente com o apoio de instrumentos de opressão, da criminalização da oposição política e do controle ideológico da maioria da população." [13]
Como herança do período militar tem-se também que a maioria das pessoas que praticaram tortura nessa época não foram punidas, e ainda, muitas delas são detentoras de cargos do poder político. A omissão quanto á investigação e punição dos crimes cometidos sob o regime militar criou uma cultura de impunidade no âmbito das forças de segurança pública, o que permitiu o florescimento da prática de torturas e maus-tratos.
Hoje em dia, a tortura é usada como meio de obter confissões, subjugar, humilhar e controlar pessoas sob detenção, ou, com frequência cada vez maior, extorquir dinheiro ou servir aos interesses criminosos de policiais corruptos [14]. Constitui agravante o fato de que a grande maioria das vítimas é composta de suspeitos criminais de baixa renda, com grau de instrução insuficiente, frequentemente de origem afro-brasileira ou indígena, que compõem um setor da sociedade cujos direitos sempre foram ignorados no Brasil. A atividade policial é destacada como a que mais promove a tortura no país atualmente. No relatório da Anistia Internacional (2001) são mencionados alguns casos exemplares de má conduta dos policiais, cujas técnicas de investigação profissionais e científicas são substituídas pela tortura e por maus-tratos. Convém, portanto, ilustrar alguns a fim de que se perceba a verdadeira situação atual:
"Um exemplo do fracasso da polícia na tarefa de empreender investigações profissionais e científicas, confiando extrair confissões por meio de tortura, é o caso de Alexandre de Oliveira, de 23 anos. Alexandre foi preso em 12 de janeiro de 2001, no município de Bom Jardim, Estado de Minas Gerais, sob a acusação de estupro da própria filha de um ano de idade, que fora hospitalizada, segundo consta, por apresentar sangramento na região genital. Alexandre foi levado á delegacia de Bom Jardim onde, segundo as informações, negou o estupro da filha. Consta que então foi algemado por policiais civis, que passaram a golpeá-lo nas solas dos pés com um pau envolto em fita adesiva, além de lhe aplicar eletrochoques na nuca. Alexandre declarou também que os policiais lhe disseram que a tortura não cessaria até o momento em que ele assinasse uma confissão. Alexandre assinou a confissão, embora alegue que não lhe foi dada oportunidade de ler o texto. Em 17 de janeiro de 2001, Alexandre foi posto em liberdade após ter sido constatado por novos exames médicos que a causa do sangramento e inchação dos órgãos genitais de sua filha era a presença de um tumor. A Corregedoria de minas Gerais abriu inquérito sobre o incidente e seis integrantes da Polícia Civil forma indiciados como suspeitos." [15]
Há vários casos similares a esse, sendo que as formas mais frequentes de tortura são: aplicação de eletrochoques, espancamento com palmatória, submersão da cabeça em saco plástico cheio de água até o afogamento parcial, execuções fingidas e o pau-de-arara. Diante disso, há outro elemento que faz piorar a situação: os detentos raramente ou nunca têm acesso a advogado ou médico antes, durante ou após o interrogatório, o qual muitas vezes tem lugar em locais isolados e secretos. Causa maior preocupação o fato de que há uma impunidade generalizada para os perpetradores da tortura, agravada pela omissão sistemática na aplicação da Lei da Tortura, além do fracasso institucional da justiça criminal, em nível estadual para assegurar a implementação da Lei da Tortura [16].
Aliado a esses fatores até então mencionados, há outro de igual relevância: o despreparo dos policiais. Assim, menciona o relatório da Anistia Internacional:
"O tratamento indevido ou a destruição das cenas do crime, a ausência de técnicas científicas de investigação e o recurso habitual à força excessiva são alguns exemplos que indicam com clareza o grave despreparo da polícia brasileira para desempenhar a tarefa de reunir as provas necessárias para a fundamentação de uma ação criminal." [17]
O relatório também destaca o seguinte caso:
"No dia 9 e outubro de 1990, às 5h da manhã, o Cadete Márcio Lapoente participava de uma sessão de treinamento na Academia Militar de Agulhas Negras, RJ. Proibido de descansar, o cadete acabou desmaiando devido à exaustão. O instrutor ordenou-lhe que levantasse, mas como Márcio Lapoente não conseguisse fazê-lo, o oficial responsável, segundo a informação, passou a espancá-lo violentamente, além de agredi-lo a pontapés. Outros policiais presentes limitaram-se a assistir à cena e, segundo consta, impedir que os colegas de Márcio Lapoente viessem socorrê-lo. De acordo com a informação, em seguida Márcio Lapoente teve a mão esquerda fraturada com o cabo de um rifle. A sessão de treinamento continuou e Márcio Lapoente foi deixado em uma maca, no sol, onde permaneceu inconsciente durante três horas, sem assistência médica. Dois médicos que estavam presentes foram proibidos de prestar assistência ao cadete, (...). Às 8h30 ele foi finalmente admitido à enfermaria, onde consta Ter sido diagnosticado como sofrendo de meningite. Embora houvesse um hospital nas proximidades com sala de primeiros socorros, o cadete foi transferido para o outro hospital da cidade. Márcio Lapoente morreu a caminho do hospital.. (...). O caso de Lapoente foi então levado á justiça militar onde, segundo informação recebida pela Anistia Internacional, teve seu andamento suspenso, ao mesmo tempo em que o oficial acusado era promovido a capitão." [18]
Pode-se elencar também como causas dessa situação o fato de que os policiais recebem salários muito baixos e passam por condições de trabalho perigosas, fazendo que muitos deles recorram a outros meios para aumentar a sua renda, o que resulta em grave corrupção no âmbito das forças policiais.
CONCLUSÃO
Com a análise da existência da tortura no Brasil, mesmo na vigência da Lei da Tortura, fica evidente que a existência formal de uma lei não significa que o crime nela descrito é eficientemente combatido. Torna-se evidente a distinção entre vigência e eficácia: a Lei é vigente, mas não é tão eficaz como deveria ser. Entretanto, não se deve conformar-se com essa situação, muito pelo contrário, deve haver incessantes políticas públicas com objetivos não só de edição de leis, mas, principalmente, de uma mudança na estrutura da sociedade.
A falta de determinação política necessária para assegurar a implementação efetiva das reformas e da legislação essenciais significou que muitas propostas semelhantes falharam em promover melhoras significativas para as vítimas de transgressões dos direitos humanos, principalmente a vítimas de tortura. Apesar dos esforços constantes de alguns indivíduos que trabalham no sistema de justiça criminal, as instituições dessa justiça falham em garantir, de forma efetiva, a plena implementação da Lei da Tortura. Ao não investir em uma polícia e em um serviço prisional profissionalmente treinados, dotados de recursos adequados e cientificamente preparados, as autoridades brasileiras permitem que perdure incólume a prática disseminada de violação dos direitos humanos. É vital que se desenvolva uma maior profissionalização da polícia para se obter a melhora da situação dos direitos humanos no país. Para a erradicação da tortura, é necessário que o governo federal assuma a responsabilidade que lhe cabe e efetuar um reforma fundamental do sistema de justiça criminal, aplicando com rigor as medidas de proteção já em vigor, visando a superar todos aqueles elementos e estágios do sistema que contribuem para a impunidade dos responsáveis pela violação dos direitos humanos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. Capítulo I. Ed. Vozes, 1978.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP.N.9 mar./abr./mai./ 1991. P. 45-56.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 4ª ed. São Paulo: Max Limonad.
Relatório da Anistia Internacional: Tortura e Maus-Tratos no Brasil. Nova Prova. Outubro de 2001.
WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
Notas
- WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
- Código de Hammurabi. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Op.cit. Pág. 50.
- Código de Hammurabi. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Op.cit. Pág. 50.
- FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. Capítulo I. Ed. Vozes, 1978.
- FOUCALT, Michel. Op. Cit. Pág. 19.
- Idem. Pág. 22.
- PIOVESAN, Flávia.
- BURGERS, J. Herman e DANELIUS, Hans. The United Nations Convention against Torture – A Handbook on the Comvention against Torture and Other Cruel, Inmhuman or Degrading Treatment or Punishment. London: Martinus Nijhoff Publishers, 1988. Pág. 114.
- Relatório da Anistia Internacional: Tortura e Maus-Tratos no Brasil. Outubro de 2001. Págs. 42 e 43.
- Relatório da Anistia Internacional: Tortura e Maus-Tratos no Brasil. Outubro de 2001. Págs. 12-13.
- Idem. Pág. 13.
- PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e Transição.
- PINHEIRO, Paulo Sérgio. Op.cit. Pág. 55.
- Relatório da Anistia Internacional. Op.cit. Pág. 06.
- Relatório da Anistia Internacional. Op.cit. Págs. 18-19.
- Idem. Pág. 11.
- Idem. Pág. 23.
- Idem. Pág. 15.