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O paternalismo do Estado e os crimes relativos à prostituição

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17/08/2011 às 13:41
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3.O BEM JURÍDICO E AS POSSÍVEIS JUSTIFICAÇÕES AO PATERNALISMO

Importa saber qual é o bem jurídico realmente protegido pelos crimes relativos à prostituição para compreender se o paternalismo do Estado, ao eleger essas condutas como delituosas, é justificável ou não.

3.1.Bem jurídico

Conforma já salientado os crimes relacionados à prostituição estão elencados nos artigos 227 a 23l-A do Código Penal, dentro do Capítulo V, do Título VI, sob o nome de crimes contra a dignidade sexual.

A rubrica dos delitos, crimes contra a dignidade sexual, foi dada pela alteração promovida pela Lei 12.015/2009. Antes dessa alteração estes crimes eram intitulados como crimes contra os costumes, demonstrando o ranço característico de um código datado de 1940.

Embora possa parecer que a mudança foi apenas uma adaptação de nomenclatura, por trás dela existe a problemática que envolve o bem jurídico tutelado por essas condutas. O que antes se protegia era a moralidade sexual e o pudor público, ao passo que agora, a proteção recai em outros bens jurídicos como a liberdade sexual e a integridade psíquica e física da vítima [36].

Com a alteração legislativa, ficou evidente que o bem jurídico protegido pelo legislador nos crimes de lenocínio é a dignidade sexual da prostituta, [37] tanto que o legislador incrimina condutas tendentes a favorecer o ingresso ou a permanência desta na prostituição.

Para Nucci [38], a "dignidade fornece a noção de decência, compostura, respeitabilidade, enfim, algo vinculado à honra. A sua associação ao termo sexual insere-a no contexto dos atos tendentes à satisfação da sensualidade ou da volúpia. Considerando-se o direito à intimidade, à vida privada e à honra, constitucionalmente assegurados, além do que a atividade sexual é, não somente um prazer material, mas uma necessidade fisiológica para muitos, possui pertinência a tu tela penal da dignidade sexual. Em outros termos, busca-se proteger a respeitabilidade do ser humano em matéria sexual, garantindo-lhe a liberdade de escolha e opção nesse cenário, sem qualquer forma de exploração, especialmente quando envolver formas de violência. Do mesmo modo, volta-se particular atenção ao desenvolvimento sexual do menor de 18 anos e, com maior zelo ainda, do menor de 14 anos. A dignidade da pessoa humana envolve, por óbvio, a dignidade sexual".

Segundo a doutrina espanhola e a jurisprudência há algum tempo criou-se um consenso no sentido de que o bem jurídico protegido nos delitos relativos à prostituição é a liberdade sexual [39]. Para María Luisa Maqueda Abreu trata-se de proteger a liberdade sexual e com ela a dignidade pessoal [40].

Sendo o bem jurídico tutelado a dignidade sexual, por certo é a própria pessoa quem possui condições para julgar aquilo que é digno à sua vida, levando em conta a definição de exploração.

Alguns entendem que a proteção vai além da dignidade sexual, sendo o bem jurídico protegido nos crimes relativos à prostituição, a dignidade da pessoa humana, direito constitucionalmente garantido e indisponível.

A dignidade é um valor inerente a todo e qualquer ser humano, e portanto deve ter seus valores respeitados por todos. Explica Rizzatto Nunes [41] que a "pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e se diferencia do ser irracional. Essas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana".

Conceituar dignidade humana não é tarefa fácil, mas esse princípio fundamental está diretamente vinculado a idéia de liberdade. Assim, somente a liberdade pode garantir a dignidade. A dignidade humana deve analisada de maneira abrangente, abarcando a noção de todas as liberdades públicas asseguradas pelo ordenamento jurídico, incluindo a liberdade sexual, pois todos os direitos ditos fundamentais encontram seu alicerce na noção de dignidade humana.

Para Capez [42], "a tutela da dignidade sexual, portanto, deflue do princípio da dignidade humana, que se irradia sobre todo o sistema jurídico e possui inúmeros significados e incidências. Isto porque o valor à vida humana, como pedra angular do ordenamento jurídico, deve nortear a atuação do intérprete e aplicador do direito, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva possibilitar a concretização desse ideal no processo judicial. Na realidade, o princípio da dignidade humana como valor moral e espiritual inerente à pessoa, não foi criado nem construído pela ciência, constituindo "um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais".

Para alguns autores, como a dignidade sexual faz parte da dignidade humana  e que como nos crimes acessórios a prostituição o que está em jogo não é a liberdade sexual e sim a dignidade humana, pois vender sua escolha sexual, torna o ser humano mera coisa, objeto de mercancia. Assim o bem jurídico tutelado não é a liberdade sexual e sim a integridade moral do indivíduo que se prostitui. [43]

Contudo, mesmo para quem considera o bem jurídico protegido, a integridade moral, leva em conta que nenhum direito é absoluto, e que se tratando de direitos fundamentais sempre deve existir a ponderação entre os bens jurídicos em conflito de acordo com a proporcionalidade. Para Gisele Mendes de Carvalho [44] a "tutela deve admitir diferentes matizes ou graduações de acordo com a constatação, no caso concreto, do maior ou do menor alcance do exercício da autonomia individual por parte do indivíduo que figura como vítima desses delitos."

Assim me parece que independente do bem jurídico, seja ele a integridade moral ou ainda a liberdade sexual, a ponderação deve existir. Nesse caso temos que ponderar o direito à dignidade humana e o direito a liberdade sexual, sendo que a liberdade sexual também está incluída na dignidade humana.

Para Capez, a "tutela da dignidade sexual, no caso, esta diretamente ligada à liberdade de autodeterminação sexual da vítima, à sua preservação no aspecto psicológico, moral e físico, de forma a manter íntegra a sua personalidade. Portanto, é a sua liberdade sexual, sua integridade física, sua vida ou sua honra que estão sendo ofendidas". [45]

Contudo, existindo o consentimento livre, de pessoa maior e capaz, a liberdade sexual ser levada em consideração, pois o bem jurídico protegido pelo legislador nos crimes de lenocínio é a dignidade sexual, em sentido amplo, englobando a integridade e a autonomia sexual, que só pode ser exercida e verificada tendo em vista a liberdade.

3.2.Possíveis justificações

O paternalismo, como intervenção no Estado na liberdade de seus membros é difícil de ser justificado quando o consentimento é livre e exercido por pessoas maiores, capazes.

Observa-se que John Stuart Mill, no século XIX, entendia que a invasão da liberdade individual não se justificava mesmo no caso de prevenir algum dano físico ou moral. Para o liberal a intervenção do estado seria admissível apenas quando atingisse terceira pessoa. Para Mill a única finalidade que justifica, de pleno direito, o exercício de limitações a liberdade sobre um membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade é evitar que se prejudiquem terceiros. Seu próprio bem físico ou moral, não é justificação suficiente. Ninguém pode ser obrigado a realizar determinados atos somente porque é melhor para ele, ou porque na opinião dos outros é o mais acertado [46].

Porém, autores contemporâneos como Feinberg, Dworkin ou Avilés, embora com reservas, admitem o uso moderado do paternalismo. E outros estudiosos da atualidade, entretanto, tecem severas críticas às normas paternalistas, como veremos a seguir.

A aplicação de medidas paternalistas a maiores capazes é muito difícil de ser justificada, e, portanto, duramente criticada. Para seus opositores, há flagrante violação da autonomia da vontade. Contudo, quando o destinatário é um vulnerável, a medida torna-se aceitável [47].

Inicialmente, cumpre ressaltar que nos casos que envolvam vulneráveis, não restam dúvidas quanto à legitimidade da tutela penal adotada pelo Estado no tocante aos delitos relativos à prostituição. Assim, seja para os menores de 18 anos ou indivíduos que não estejam em pleno gozo das suas faculdades mentais, ou ainda, quando os crimes são cometidos contra vítimas maiores de 18 anos e no pleno gozo de suas faculdades mentais, mas mediante emprego de violência, grave ameaça ou fraude, o paternalismo é classificado como débil ou leve e é justificável por parte do Estado.

Segundo Avilés [48], a aplicação de normas jurídicas ou políticas públicas paternalistas justifica-se na incapacidade da pessoa no momento de tomar suas decisões. Todavia, embora seja uma condição necessária, o juízo de incapacidade não é suficiente. De outra forma, todas as pessoas que se comportassem de maneira irracional, desinformada ou emotiva poderiam estar sujeitas a uma medida paternalista.

A criminalização das condutas relativas à prostituição, nos casos de maiores de 18 anos, capazes e com consentimento livre com base no paternalismo jurídico, vem sendo discutida, encontrando opiniões divergentes.

Em primeira análise, impor o paternalismo tipificando as condutas relativas à prostituição, parece injustificável dentro de um Estado de Direito que tenha por base a democracia.

Nos crimes relativos à prostituição, elencados nos artigos 227 a 230 do Código Penal, se o tipo penal não exige violência ou grave ameaça contra a vítima, sua vulnerabilidade é a única explicação para a tutela da dignidade sexual. Nesses casos, a norma penal quer impedir a exploração da vulnerabilidade mesmo que haja consentimento no exercício da prostituição.

A questão que se apresenta, então é, se não há vício de consentimento e no caso de pessoas maiores e capazes, a vulnerabilidade só pode derivar da imposição da prática da prostituição pelas condições nas quais a prostituta se encontra. Assim, a vulnerabilidade nos casos de maiores de 18 anos e capazes e livres no consentimento só pode estar ligada a situações de anormalidade ou fragilidade.

Na verdade, a norma paternalista vai de encontro à vontade em estado de vulnerabilidade para impor a vontade real do ofendido caso estivesse em situação de escolher em condições normais. Por exemplo, se uma prostituta tivesse boas condições econômicas, provavelmente não estaria vendendo o próprio corpo e isso justificaria a punição de quem a explorasse [49].

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O ponto chave está na definição do limite entre vontade consciente e vontade induzida pela vulnerabilidade que a situação social impõe à prostituta. O núcleo de uma escolha livre é a autonomia, que inexiste nas situações em que o indivíduo está sob coação ou engano, apresenta problemas ligados ao desenvolvimento intelectual ou se encontra vulnerável.

Contudo, é arriscado compreender que mesmo dentro do estado liberal, uma pessoa livre age contra sua vontade real. Não há garantias de que sua vontade real seja diferente daquilo que ela está praticando. Maior ainda o risco de utilizar o direito penal para suprir a suposta falta de consentimento sempre que alguém se apresentar como vulnerável [50].

Por certo o que importa aqui é a exploração ou não da prostituta por conta da situação de vulnerabilidade em que ela se encontra por precisar prostituir-se. Essa é a justificativa do Estado para resguardar o bem jurídico dignidade sexual e criminalizar as condutas de quem favorece o ingresso ou a permanência da prostituta na prostituição.

Os delitos relativos à prostituição pressupõem que a prostituta, por sua vulnerabilidade está sendo explorada por quem favorece o seu ingresso ou a sua permanência na prostituição. Diante dessa situação, o Estado interfere e tenta impedir a exploração, pois entende que o "ser humano não pode converter-se, de forma alguma em objeto de comércio" [51].

Acontece que "quando um adulto é capaz, não ocorrer a presunção absoluta que está agindo contra sua vontade real, somente porque suas condições sociais não são adequadas. Por isso não pode o direito penal utilizar critérios meramente subjetivos para apontar a vulnerabilidade do ofendido. É preciso que se estipulem exigências de ordem objetiva ou, se forem apenas subjetivas, que estejam evidentes e longe de qualquer dúvida. Quer dizer, somente é viável presumir a vulnerabilidade de uma pessoa quando existir certeza verificável sobre a precariedade e a contrariedade à vontade real. Daí dizer que o Estado não pode se servir do direito penal em primeiro plano para suprir a vulnerabilidade não verificável objetivamente" [52], no caso concreto.

O consentimento não pode ser presumível, ou seja, não há como presumir, de forma abstrata que todas as prostitutas estão se prostituindo por causa de suas condições financeiras ou sociais e que isso justifica, de forma abstrata a intervenção do Estado.

Como o pretenso bem jurídico tutelado, no exemplo da prostituição, segundo o Código Penal, é a dignidade sexual, ninguém melhor que o próprio ofendido para afirmar se há ou não exploração. Não se pode permitir a total permissão ao Estado de decidir pelas pessoas o que seja melhor para suas vidas. Pode-se abrir as portas para uma verdadeira imposição de critérios meramente morais [53].

O Direito Penal é a ultima ratio e deve ser utilizado apenas quando não existir outra forma de conter as condutas.

Para Nucci [54], "doutrinariamente, o princípio da intervenção mínima é incentivado e enaltecido, como elemento propulsor das reformas legislativas no campo criminal, porém ainda está distante de ser efetivamente acolhido pelo Poder Legislativo no Brasil. Alguns passos têm sido dados na direção correta. Outros ainda estão por vir. É preciso evoluir e abandonar o foco paternalista do Direito Penal, buscando tipificar toda e qualquer conduta lesiva a direito de outrem; não é meta da lei penal punir banalidades ou infrações menores, que outros ramos do direito podem cuidar e tutelar".

No caso dos crimes relacionados à prostituição, o Estado não criminaliza a conduta de prostituir-se, permitindo que a liberdade e a dignidade sexual sejam respeitadas, sem qualquer intervenção estatal. Contudo, tenta de outras formas desestimular a prostituição, criminalizando os terceiros que contribuem para ela.

Acontece que o Estado falha ao não proporcionar a seus cidadãos condições de vida digna e para suprir sua própria falha criminaliza condutas de terceiros que auxiliam a prostituta para desestimular própria prostituição, utilizando o Direito Penal como forma de contornar problemas sociais.

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Sobre a autora
Fernanda Menegotto Sironi

Advogada. Pós graduada em Direito público pelo Centro Universitário de Maringá-PR. Pós graduada em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá-PR. Mestranda, como aluna especial, no Centro Universitário de Maringá-PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIRONI, Fernanda Menegotto. O paternalismo do Estado e os crimes relativos à prostituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2968, 17 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19788. Acesso em: 22 nov. 2024.

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