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Entre Kelsen e Hércules: uma análise jurídico-filosófica do ativismo judicial no Brasil

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INTRODUÇÃO

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, ao discursar, em 23 de abril de 2008, na posse do presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, afirmou que "práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional". Já o ministro Gilmar Mendes, em seu discurso, mencionou os casos que atualmente entende serem os mais relevantes, afirmando que "à demanda cada vez maior da sociedade, a Corte tem respondido, demonstrando profundo compromisso com a realização dos direitos fundamentais (...) Temos julgado casos históricos, em que discutidas questões relacionadas ao racismo e ao anti-semitismo, à progressão de regime prisional, à fidelidade partidária, e ao direito da minoria de requerer a instalação de comissões parlamentares de inquéritos, entre outros... Já iniciamos o julgamento de temas relevantes sobre aborto, pesquisas com células-tronco e prisão civil do depositário infiel" [01].

Tais passagens refletem a transformação funcional por que vem passando o Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. Se, em sua gênese, a Suprema Corte americana serviu como inspiração – modelo de controle de constitucionalidade difuso, concreto e incidental [02] – desde a Constituição Federal de 1988, o modelo europeu de Corte Constitucional, elaborado com base na doutrina de Hans Kelsen, tem influenciado o constituinte e o legislador pátrio na mutação do sistema de controle de constitucionalidade [03] de maneira que, atualmente, é possível afirmar que o modelo brasileiro tende no sentido da adoção do padrão europeu [04]. Trata-se do que a doutrina pátria chama de processo de objetivação do controle de constitucionalidade [05]. O modelo kelseniano de Jurisdição Constitucional tem como características formais a análise da constitucionalidade das leis em abstrato, de maneira concentrada e em via principal, o que significa que os casos constitucionais chegam à Corte Constitucional por meio de ação direta, independentemente da existência de uma situação concreta em que haja violação a direitos subjetivos. Ou seja, a constitucionalidade das leis é aferida de maneira objetiva, confrontando-se diretamente o diploma legal atacado com o texto constitucional.

Entretanto, é no concernente às características materiais do modelo europeu de controle de constitucionalidade que reside a mais profunda transformação no papel do Supremo Tribunal Federal. Isto porque, conforme será demonstrado, o modelo kelseniano, na forma como foi customizado após a 2ª Guerra Mundial, implica a adoção de um posicionamento substancialista no debate teórico contemporâneo acerca do papel das Cortes Constitucionais.

Em apertada síntese [06], os defensores das teorias substancialistas trabalham com a idéia de que a atuação da Jurisdição Constitucional é legítima na medida em que dá efetividade aos direitos fundamentais. Neste sentido, a interpretação constitucional tem papel relevante, já que cabe aos juízes dar densidade normativa aos preceitos constitucionais vagos que elencam tais direitos. Já os teóricos da corrente doutrinária concorrente - denominados de procedimentalistas - não admitem a possibilidade de o intérprete ser um aplicador de princípios de Justiça. Para eles, o papel do Judiciário restringe-se a defender o procedimento democrático, de sorte que a Corte somente age legitimamente ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei se o diploma legal em análise for um empecilho para o pleno desenvolvimento ou preservação do processo político de deliberação [07].

Assim, diante do posicionamento assumido [08] – de que cumpre ao Poder Judiciário a proteção dos direitos e garantias individuais – é natural que o ministro Celso de Mello tenha afirmado que o ativismo judicial se tenha tornado uma necessidade institucional, bem como se mostra razoável que, ao citar os casos mais importantes que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal atualmente, o ministro-presidente Gilmar Mendes se tenha referido somente a casos que envolvem a discussão das cláusulas constitucionais definidoras dos direitos fundamentais dos indivíduos.

Não obstante isso, a adoção de um determinado modelo institucional de controle de constitucionalidade não pode ser levada a cabo sem uma reflexão profunda acerca de seus pressupostos teóricos e de suas conseqüências práticas. Neste diapasão, o presente trabalho tem como escopo analisar a fundamentação teórica em que se escora o modelo europeu de Jurisdição Constitucional adotado pelo Brasil, bem como analisar a forma como que a Corte, ao interpretar a Constituição, atua na concretização dos direitos fundamentais constitucionalmente positivados. Para tanto, o trabalho será desenvolvido em duas partes. Em um primeiro momento será analisado o arcabouço teórico sobre o qual se desenvolve o modelo europeu de controle de constitucionalidade, para, em seguida, analisar criticamente as conseqüências de sua adoção.


II-KELSEN E HÉRCULES: UMA UNIÃO INSTÁVEL?

Obviamente, Hans Kelsen, que é considerado um dos pais do positivismo jurídico do século XX, não tinha em mente a criação de uma Jurisdição Constitucional de cunho substancialista. Como bem adverte Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a gênese dos direitos fundamentais reside na idéia de direitos naturais [09] – corrente jusfilosófica contrária ao positivismo jurídico. Entretanto, a Teoria Pura do Direito de Kelsen, com sua lógica objetiva, forneceu os subsídios teóricos necessários para a construção do modelo europeu contemporâneo de controle de constitucionalidade. O objetivo deste tópico é exatamente narrar como ocorreu essa metamorfose da teoria kelseniana.

De acordo com o mestre de Viena, a Teoria Pura do Direito deve excluir de sua análise quaisquer considerações de cunho sociológico ou político. O direito como ciência deve conhecer "o que o direito é" e "como ele é", e não "o que ele deveria ser" ou "como deveria ser elaborado" [10]. Sendo assim, o direito possui o seu próprio método, que deve ser aplicado de maneira objetiva, independentemente de qualquer conceito de Justiça. Para Kelsen, a ciência do direito não tem a função de promover a legitimidade do direito com base em valores sociais. O propósito da Teoria Pura do Direito é entender e descrever de maneira genérica, hipotética e abstrata a forma operacional do sistema jurídico, utilizando-se, para tanto, de um ponto de vista externo e cético frente ao ordenamento, o ponto de vista de um cientista.

Assim, Kelsen analisa a Constituição sob uma perspectiva formal, como uma norma jurídica superior que fundamenta o Estado e a sua estrutura legal [11]. Essa ótica lhe possibilita desenvolver a doutrina da estrutura hierárquica da ordem jurídica, em que o direito regulamenta a criação do próprio direito [12]. O mestre de Viena visualiza o sistema legal como uma pirâmide abstrata, a qual tem a Constituição em seu pico, de maneira que toda e qualquer norma inferior deve conformar-se com o que nela estiver estabelecido. Em outras palavras, a Constituição é a norma fundamental que regula a criação das normas inferiores [13].

Partindo da perspectiva de que a Constituição é uma norma legal, torna-se possível averiguar a validade de outra norma, de maneira abstrata, em face dos preceitos constitucionais. A supremacia da Constituição, portanto, é uma premissa necessária a um sistema jurídico e o controle de constitucionalidade das leis, um instrumento indispensável à manutenção da inteligibilidade do sistema. Para Kelsen, se não existe o poder de revisar a constitucionalidade das leis, a Constituição não se revela verdadeiramente suprema [14].

Nesse contexto, Kelsen acredita que o intérprete aplica as normas constitucionais de maneira objetiva, com um elevado grau de determinação, já que as normas fixam uma moldura finita de hipóteses. Em outras palavras, a atividade interpretativa da Corte Constitucional resume à simples fixação dos limites da atividade do legislador, agindo como legislador negativo. Assim, a certeza e a objetividade exercem um papel importante em sua teoria [15]. A sua obsessão por esses valores é manifesta em suas críticas ao sistema americano de controle de constitucionalidade difuso:

A desvantagem dessa solução consiste no fato de que diferentes órgãos aplicadores do direito podem ter opiniões diferentes no que concerne à constitucionalidade de um estatuto (...) A falta de decisões uniformes com respeito ao questionamento se uma determinada norma é constitucional, i.e., se a constituição violada, é um grande perigo para a autoridade da constituição. [16]

Neste diapasão, Kelsen advoga que um órgão central e independente para determinar a constitucionalidade das leis seria necessário [17]. Com intuito de isolar o direito da política, um tribunal constitucional especializado, ao invés de um órgão político dentro da órbita do próprio legislativo, deve ser criado para ser o "Guardião da Constituição". Para o autor, entretanto, as principais preocupações que justificam a criação da Jurisdição Constitucional não se referem à proteção dos direitos fundamentais, mas aos aspectos formais dos estatutos jurídicos e à manutenção do estado federativo [18]. Kelsen inclusive adverte que a aferição da constitucionalidade de leis por parte da Corte Constitucional com referência às clausulas vagas e imprecisas que definem os direitos fundamentais - como o direito à liberdade e à igualdade - pode ser muito perigosa para a democracia, devendo ser evitada [19].

Até 1952, quando foi instituído o Tribunal Constitucional Federal alemão, somente havia ocorrido uma única experiência (mal-sucedida, diga-se de passagem) de criação de Corte Constitucional sob inspiração dos ideais kelsenianos. A Constituição de 1920 da Áustria criou a primeira Corte Constitucional - da qual Kelsen foi membro integrante - que foi mantida somente até 1934. Ironicamente, a teoria de Jurisdição Constitucional do mestre de Viena somente adquiriu prestígio mundial após sua remodelação histórica, que adicionou o elemento "direitos fundamentais" em seu núcleo essencial, o que se deu na metade do século XX.

Após a Segunda Guerra Mundial, diante das atrocidades cometidas pelos nazistas, especialmente contra minorias étnicas e religiosas, emergiu uma profunda preocupação, no âmbito internacional, em torno do tema "direitos humanos". Desde que a Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a linguagem dos direitos humanos mostra-se uma das mais potentes da política contemporânea [20], tanto que o próprio conceito de democracia teve que ser reformulado para abraçar a idéia desses direitos. Democracia passou a ser parte do projeto dos direitos humanos, pois esta foi a melhor maneira encontrada pela teoria política para refletir a idéia de igualdade [21].

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O discurso dos direitos humanos incrustou-se de tal forma na vida política que ficou impossível imaginar o futuro sem este conceito. Tornou-se universal, o único caminho a seguir na esfera política. Como bem salientado por Conor Gearty, "‘direitos humanos’ se tornou uma expressão forte, epistemologicamente confiante, eticamente assegurada, carregando consigo a promessa para o ouvinte de atravessar o barulho dos argumentos e dos contra-argumentos, das práticas culturais e das perspectivas relativistas, e assim comunicar uma mensagem de verdade" [22].

Tecnicamente, a idéia de certeza da teoria kelseniana forneceu padrões "objetivos" capazes de proteger o conceito de direitos humanos de controvérsias morais, pois tais direitos deixaram de ser contestados, transformando-se em verdades universais. O método jurídico científico desenvolvido por Kelsen aumentou a sensação de que poderíamos articular objetivos sócio-políticos em linguagem jurídica. Cortes Constitucionais, que assegurem abstratamente a efetivação dos direitos fundamentais, passaram a ser o modelo desta nova idéia política denominada de "democracia constitucional". A partir do momento em que os objetivos sócio-políticos foram transformados em linguagem jurídica, coube então à pureza da esfera jurídica proteger tais direitos por meio de uma metodologia jurídica aparentemente neutra. Somente assim os direitos humanos estariam "a salvo".

Como resultado, o modelo germânico (fórmula Kelsen + direitos fundamentais) de Corte Constitucional converteu-se em uma tendência na maioria dos países que atravessam por um período pós-ditadorial, como a Itália, a Espanha, Portugal e o Brasil. Devido ao ceticismo inicial com relação aos órgãos políticos após a restauração democrática, grande parte dos objetivos políticos foi constitucionalizada, isto é, posta em linguagem jurídica, em extensivas listas de direitos fundamentais, com a finalidade de insulá-los da política. Acredita-se que a Corte seja capaz de concretizar tais direitos.

Ocorre, entretanto, que os juízes das Cortes Constitucionais, incumbidos dessa nova missão de proteção dos direitos fundamentais, não se limitam a apontar, de maneira fria e calculada, quais leis se encontram dentro, ou fora, da moldura constitucional, como imaginado por Kelsen para a verificação formal da constitucionalidade de uma lei.

Os termos amplos, vagos e imprecisos que prescrevem os direitos fundamentais - como o direito à vida, à liberdade e à igualdade – encerram conceitos que admitem diferentes concepções teóricas a depender do ponto de vista adotado pelo intérprete [23]. A complexidade dos casos que hodiernamente se apresentam diante desses tribunais - questões de moralidade política por natureza - exigem do intérprete uma atitude muito mais construtiva do que a de simples legislador negativo. Ao decidir os casos constitucionais contemporâneos, como a constitucionalidade da prática do aborto ou da criação de quotas raciais para o ingresso nas universidades públicas, os juízes não podem e nem conseguem se limitar a uma visão de cientista, externa e imparcial do problema. É necessária uma perspectiva interna [24], ativa e consciente, do caso e do ordenamento jurídico de maneira a apresentar uma solução consentânea com o direito posto e com a concepção de Justiça prevalente na sociedade.

Ou seja, a atual prática constitucional exige do intérprete a atitude de um juiz Hércules [25] - juiz dotado de sabedoria e paciência sobre-humanas - capaz de desenvolver uma teoria política completa ao se deparar com um caso difícil, pois sua decisão não deve limitar-se a estar de acordo com o direito, mas ser justificável do ponto de vista da moralidade política. Para tanto, os juízes não se pautam apenas pelas regras jurídicas identificáveis em um ordenamento jurídico, mas também lançam mão de princípios de ordem ético-problemática [26].

É neste sentido que é possível afirmar que o ativismo judicial se tornou uma necessidade institucional: os juízes, ao decidirem os casos difíceis, agem de maneira positiva, densificando as normas de direitos fundamentais com suas interpretações. Para alguns, tal atitude representa o mesmo que "criar novos direitos" ou dizer que "o Judiciário está legislando", quando na verdade só se reflete um efeito inevitável da adoção de um sistema de controle de constitucionalidade substancialista por parte do Poder Constituinte. As suas conseqüências serão analisadas a seguir.


III-CRÍTICAS TEÓRICAS AO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL

É certo que em uma sociedade em que há profunda desconfiança com relação aos poderes políticos instituídos – como logo após o regime nazista na Alemanha ou a ditadura no Brasil – um Judiciário forte, com extensos poderes para invalidar os atos dos outros órgãos, revela-se necessário para assegurar as liberdades públicas individuais e para manter o regime democrático. Do mesmo modo, é justificável a atuação ativista por parte dos tribunais em uma sociedade com problemas sociais crônicos que impedem o pleno funcionamento da democracia, como era o caso da segregação racial nos Estados Unidos até a década de 50 [27]. No entanto, em uma sociedade em que os mecanismos democráticos funcionam plenamente, a atitude "paternalista" por parte da Corte Constitucional é no mínimo questionável, quiçá inadequada. Neste sentido, tem crescido na academia americana o número de críticos ao sistema de "judicial review", ora mencionando-se a falta de legitimidade democrática das Cortes para lidar com determinadas matérias, ora apontando-se as inadequações institucionais dos tribunais para decidir certas questões em nome da sociedade [28].

No contexto brasileiro, a partir dos casos mencionados pelo ministro Gilmar Mendes no trecho de seu discurso citado no início do texto, é possível realizar alguns questionamentos filosóficos acerca da função contemporânea do Supremo Tribunal Federal em nosso ordenamento jurídico. Neste trabalho, devido à limitação espacial proposta, somente serão destacados três temas específicos: a natureza dos questionamentos envolvidos nos casos constitucionais contemporâneos, a inadequação do método jurídico para resolver essas questões e a inexistência de certeza/previsibilidade no chamado "processo objetivo" [29].

Iniciando a análise, primeiramente cumpre destacar que em uma sociedade em que as instituições democráticas funcionam de maneira adequada, poucos são os casos em que o Legislativo edita normas que nitidamente violam os direitos fundamentais em sua concepção clássica de direitos negativos. Restrições à liberdade de expressão e de imprensa, por exemplo, raramente são objeto de deliberação parlamentar e, na maioria das vezes em que os governantes mencionam a intenção de limitar esses direitos, a própria opinião pública, independentemente da atuação judiciária, já tem tido o condão de derrubar o projeto de lei [30]. Ao final, os casos constitucionais mais relevantes que ascendem à Corte Constitucional dizem respeito a interpretações controvertidas das cláusulas constitucionais que apresentam conceitos extremamente vagos e abertos. Temas como aborto e pesquisa com células-tronco, citados pelo ministro Gilmar Mendes, ensejam debates apaixonados acerca do conteúdo do direito à vida, sem que haja a priori uma resposta correta ou consensual. Da mesma forma, a questão de saber se a proibição da prática de anti-semitismo implica uma proteção contra o racismo ou se é uma verdadeira restrição à liberdade de expressão, comporta diferentes respostas, sem que isso signifique uma maior ou menor adesão aos direitos fundamentais [31].

Na verdade, os principais casos constitucionais contemporâneos decididos pelas Cortes Constitucionais implicam uma análise de questões que a doutrina estrangeira classifica como desacordos razoáveis. Segundo nos ensina Samantha Besson [32], os desacordos razoáveis são aqueles que resistem a uma resolução racional, sendo uma realidade muito mais dividida que o mero pluralismo político. A existência desse tipo de desacordo significa reconhecer que em matérias de suprema importância, sobre as quais se pensava que os indivíduos chegariam a um consenso, a razão parece não guiar a um denominador comum, mas, ao contrário, tende a levar a posicionamentos cada vez mais distantes, opostos. Uma das características mais marcantes das sociedades modernas - acrescenta a autora - é a existência, cada vez em maior número, desses tipos de dilema moral. No rol dos desacordos razoáveis encontram-se questionamentos sobre o aborto, a clonagem humana, as pesquisas com células-tronco, a eutanásia, o suicídio assistido, entre outros.

Nessa linha, ante a existência desses desacordos razoáveis, Jeremy Waldron [33] vem defendendo, desde há muito tempo, que, em um ordenamento jurídico fundado na revisão jurisdicional substantiva de constitucionalidade, os direitos fundamentais estão, na verdade, em risco, ao invés de protegidos. Isto porque nesse tipo de sistema judicial, em matérias de fundamental importância para os cidadãos, as decisões finais cabem aos tribunais, órgãos não-representativos e sem credenciais democráticas. Desse modo, o autor neozelandês sustenta que, em uma sociedade que realmente leva seus direitos a sério, existe bastante espaço para um desacordo moral honesto e de boa-fé entre os cidadãos a respeito de seus direitos fundamentais. Tais tópicos são normalmente complexos e controversos, e o consenso entre os filósofos consiste em não haver respostas definitivas para estas matérias. Assim, tendo em vista ser necessário eleger um procedimento para decidir estes casos, o processo democrático seria preferível. Ambos os Parlamentos e as Cortes decidem essas matérias por meio do voto majoritário de seus membros e ambos podem tomar decisões consideradas ruins pela opinião pública [34]. Quando se dá a uma Corte a última palavra sobre estes desacordos razoáveis, o único efeito real é que estaremos denegando aos cidadãos o direito de participar em termos isonômicos das decisões políticas fundamentais da sociedade.

Esta primeira crítica está umbilicalmente ligada à segunda, referente à ausência de objetividade e certeza das decisões no controle de constitucionalidade concentrado: Kelsen, como já mencionado, ao elaborar sua teoria de Jurisdição Constitucional, tinha em mente uma estrutura hierárquica de normas, escalonada de maneira lógica e objetiva, que limitaria os espaços de discricionariedade dos juízes àquela moldura de hipóteses fixada pela norma. No caso da Corte Constitucional, o seu papel seria apenas o de excluir o que estaria dentro da moldura constitucional previamente elaborada. Ocorre que, nos casos que temos em mente, que envolvem a discussão de matérias de natureza essencialmente contestadas, os textos constitucionais não apresentam sequer indícios sobre qual posicionamento seja o correto. Decidir se as pesquisas com células-tronco estão de acordo com a ordem constitucional vigente revela-se uma decisão muito mais subjetiva do que jurídica. Não há qualquer técnica em que se apóie o magistrado para defender qualquer um dos pontos de vista.

Nesse sentido, a idéia de certeza da teoria kelseniana somente poderia ser resgatada se fosse verdadeira a afirmação de que existe uma moralidade objetiva, conforme sustentado por Ronald Dworkin [35][36]. Em outras palavras, se é verdade que existem respostas morais corretas para os casos constitucionais, a idéia kelseniana de certeza na análise da constitucionalidade das leis poderia ser reconciliada, já que a moralidade serviria para constranger a discricionariedade das decisões judiciais. Entretanto, do ponto de vista prático, este argumento não é auto-sustentável. Como bem salienta Jeremy Waldron: "é possível que diferentes juízes alcancem diferentes resultados, mesmo quando eles acreditam estarem diante da resposta correta, e nada sobre a ontologia de respostas corretas dá a nenhum deles razão para pensar que sua visão pessoal é mais correta do que qualquer outra visão" [37]. Levando em consideração que as pessoas, mesmo quando acreditam na existência de uma resposta correta sobre direitos fundamentais, podem discordar moralmente umas das outras - e elas normalmente discordam - então a objetividade moral passa a ser irrelevante neste tópico.

E esse é o principal ponto: os juízes discordam sobre interpretação judicial [38] na mesma proporção em que as pessoas comuns discordam sobre a moralidade coletiva. Os termos vagos em que as Constituições modernas são escritas não fornecem nenhum subsídio para os casos constitucionais difíceis. A única certeza é que a população vai ser diretamente afetada por alguma concepção particular de direitos acolhida pela maioria dos membros das Cortes Constitucionais. Nessas questões de moralidade política, não há nenhuma garantia que o ponto de vista adotado pelos juízes seja superior ao dos outros membros da sociedade.

Por fim, a última crítica refere-se à inadequação da via judicial para a solução dos conflitos constitucionais que envolvem desacordos razoáveis. De acordo com estudos realizados por Lon Fuller [39], o método jurídico utiliza-se necessariamente da dicotomia entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o que significa dizer que as Cortes estão aptas a tratar de casos que possam ser respondidos por meio de um código binário.

Entretanto, os casos que envolvem direitos fundamentais, como os mencionados na introdução deste trabalho, utilizam um esquema muito mais complexo. Como leciona Jeremy Waldron, esses casos possuem "uma característica multifacetária, que usualmente tem sido considerada como inapropriada para ser decidida em uma estrutura judicial" [40]. Como conseqüência dessa incapacidade, tornou-se cada vez mais comum a utilização de esquemas de balanceamento de direitos – como a técnica da proporcionalidade - por parte das Cortes Constitucionais. Tais procedimentos necessariamente envolvem uma análise de custo-benefício, função esta precipuamente desempenhada pelo Legislativo [41]. Além disso, alguns críticos, como Habermas, afirmam que a ponderação não possui critérios racionais de aferição da correção do método utilizado, permitindo uma subjetividade ilimitada por parte do intérprete [42]. Assim, a prática de Jurisdição Constitucional substantiva acaba por aniquilar qualquer pretensão de objetividade que Kelsen tenha tentado imprimir quando da elaboração de sua teoria constitucional.

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Sobre o autor
Jorge Octávio Lavocat Galvão

Procurador do Distrito Federal e Advogado. Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Teoria do Direito pela New York University - NYU, pós-graduado em Direitos Humanos pela London School of Economics and Political Science - LSE e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. Entre Kelsen e Hércules: uma análise jurídico-filosófica do ativismo judicial no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2973, 22 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19822. Acesso em: 4 mai. 2024.

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