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Sobre a necessidade de motivação dos atos administrativos

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Não há pior injustiça quando a autoridade administrativa tergiversa e, invocando um suposto poder discricionário como pretexto, descumpre a lei para satisfazer interesses pessoais.

Não há pior injustiça quando a Autoridade Administrativa tergiversa e, invocando um suposto poder discricionário como pretexto, descumpre a lei para satisfazer interesses pessoais.

Amesquinha-se assim a República, menosprezando o que deveria ser público, de todos: o direito ao Estado Democrático de Direito. Uma e outra vez, desde os antigos, até os atuais, e quantas vezes forem necessárias, devemos nos levantar e defender aquilo que constitui um dos maiores legados intelectuais que a posteridade nos deixou: a previsibilidade da conduta pública mediante a obediência a regras pré-estabelecidas.

Disso se trata a melhor forma de convivência humana. Sem esta obediência, institui-se o caos, o poder do mais forte, predomina a parcela animal sobre a parcela racional da humanidade. Simples assim.

E para que tal Estado Democrático de Direito prevaleça, o exemplo deve vir dos homens públicos, dos homens que ocupam cargos e funções públicas, dos funcionários públicos. Tais cidadãos, quando empossados em seus cargos, aceitaram, de livre e espontânea vontade, submeter-se ao fiel cumprimento da lei. Juraram obediência à legalidade. Não podem, a pretexto de uma melhor organização, eficiência, ou qualquer outro subterfúgio lingüístico, fugir do estrito cumprimento daquilo que a lei impõe. Estão em seus cargos para servir à Coisa Pública, à Res Pública. A partir do momento que ultrapassam o limite daquilo que lhe foi imposto pelas normas estabelecidas, passam a defender interesses privados, particulares, assenhoreando-se daquilo que não lhes pertence, daquilo que é de todos, qual tiranos da idade média em seus feudos.

Portanto, a constante vigilância dos cidadãos em relação à correta aplicação das normas, à obediência racional do que foi instituído pelos representantes do povo, é qualidade e obrigação que deve ser respeitada e incitada em todos. Do contrário, poderemos lamentar com Etienne de La Boetie [01]:

"Vistas bem as coisas, não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver.

Ter vários amos é ter outros tantos motivos para se ser extremamente desgraçado."

Explica do Francês:

"Quero para já, se possível, esclarecer tão-somente o fato de tantos homens, tantas vilas, cidades e nações suportarem às vezes um tirano que não tem outro poder de prejudicá-los enquanto eles quiserem suportá-lo; que só lhes pode fazer mal enquanto eles preferem agüentá-lo a contrariá-lo.

Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente.

Tal é a fraqueza humana: temos frequentemente de nos curvar perante a força, somos obrigados a contemporizar, não podemos ser sempre os mais fortes."

Por isso é necessário, sempre e sempre evitar todo e qualquer servilismo voluntário que nos deixe cegos e nos faça esquecer que a nossa liberdade atual está garantida pela correta aplicação das leis e defesa do Estado Democrático de Direito e sua mais pura acepção.

Pois bem. O Administrador Público, quando chamado a atuar, ou quando atua de Ofício, o faz conforme as competências que lhe são atribuídas pela lei. Não pode ir além extrapolando os limites legais, nem pode ficar aquém, omitindo-se em sua função, deixando de praticar o que a lei lhe impõe.

Concedo que dentro deste limite legal, a lei pode atribuir-lhe certo grau de discricionariedade. Mas esta discricionariedade não é ampla, geral e irrestrita. Não deve ser utilizada conforme o talante do Servidor Público. Deve ser utilizada para realizar o objetivo contido na legislação em conformidade com as competências que lhe foram atribuídas. Se extrapola o objetivo da legislação ou vai além de suas competências, o ato deixa de ser discricionário e torna-se arbitrário, portanto nulo, írrito, não pode gerar quaisquer efeitos.

Quando tal ocorre, caracteriza-se o desvio de finalidade, cuja salvaguarda está instrumentalizada na possibilidade de impetração de Mandado de Segurança. Aliás, oportuna é a lição de Celso Antonio Bandeira de Mello [02] a respeito do tema:

"Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la; é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício – denominado "desvio de poder" ou "desvio de finalidade" – são nulos. Quem desatende ao fim legal desatende à própria lei."

Estando bem clara a teratologia que ocorre quando um Ato Administrativo escapa dos limites legais, temos que uma das formas de seu controle é o princípio da motivação. A motivação é tão necessária quanto fundamental na medida em que em uma sociedade pluralista, não existem verdades apriorísticas. Estando correta tal premissa, a única forma de se controlar os atos administrativos é conhecendo-se seus motivos para que se possa aferir sua adequação entre o conteúdo normativo e o ato praticado. Vejamos, a respeito, e outra vez, as lições de Celso Antonio Bandeira de Mello [03]:

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"De outra parte, não haveria como assegurar confiavelmente o contraste judicial eficaz das condutas administrativas com os princípios da legalidade, da finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade se não fossem contemporaneamente a elas conhecidos e explicados os motivos que permitiriam reconhecer seu afinamento ou desafinamento com aqueles mesmos princípios. Assim, o administrado, para insurgir-se ou para ter elementos de insurgência contra atos que o afetem pessoalmente, necessita conhecer as razões de tais atos na ocasião em que são expedidos. Igualmente, o Judiciário não poderia conferir-lhes a real justeza se a Administração se omitisse em enunciá-las quando da prática do ato. É que, se fosse dado ao Poder Público aduzi-los apenas serodiamente, depois de impugnada a conduta em juízo, poderia fabricar razões ad hoc, "construir" motivos que jamais ou dificilmente se saberia se eram realmente existentes e/ou se foram deveras sopesados à época em que se expediu o ato questionado."

Imagine-se, com efeito, ato administrativo que afete algum aspecto da vida do cidadão, realizando um corte normativo de tal forma que daquele instante em adiante o cidadão deverá portar-se de determinada forma diferente da que vinha adotando anteriormente.

A mudança abrupta de comportamento é tão violenta que a permanência de determinada constitui um dos principais pilares do núcleo fundamental do principio da legalidade. Eis que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, por que seria obrigado a admitir mudança em sua conduta por simples Ato Administrativo, se tal Ato não está justificado senão na lei? Daí porque a fundamentação, a motivação do ato é de importância inquestionável para a própria existência do Estado Democrático de Direito. Não hã como pretender obediência à lei se o próprio órgão estatal não se junge aos limites impostos legalmente.

De outra sorte, a sociedade pluralista exige fundamentações cada vez mais razoáveis. Primeiro porque participa e deve participar da interpretação constitucional. Segundo porque o elemento comunicativo pode ser considerado como cláusula estruturante de uma Teoria da Justiça. Observe-se o que o Min. Marco Aurélio de Mello ponderou no seu voto na ADPF 187/DF:

"Entre os autores modernos que debatem a teoria da justiça, Jürgen Habermas edificou uma teoria dos direitos fundamentais com base no elemento comunicativo. O autor alemão parte de uma constatação fática para alicerçar a teoria que defende: o fato do pluralismo. O consenso ético resultante da homogeneidade que existia nas sociedades pré-industriais não existe mais, de modo que as decisões públicas não podem ser justificadas com fundamento nesse acordo global de natureza ética entre os cidadãos. Ao contrário: nas sociedades contemporâneas, os indivíduos discordam veementemente sobre um leque variado de assuntos. Nesse "mosaico cultural" que são as sociedades de hoje, a legitimidade das normas jurídicas só pode ser extraída do processo de autolegislação levado a efeito pelos próprios cidadãos. Esta é a concepção política de Habermas: primazia do processo democrático na construção de um direito legítimo, porque não há mais como recorrer a verdades apriorísticas."

O trecho citado acima revela, pois, a necessidade de conhecimento dos motivos das ações. Se eu posso discordar do posicionamento de outrem, posso também discordar do posicionamento da Administração Pública. Mas para que este procedimento de discordância seja legítimo e legitimado, necessário é que os motivos dos atos administrativos sejam claros e compreensíveis.

Seguindo esta mesma ordem de idéias, uma vez motivada a ação, dela não pode se distanciar a Administração Pública. É o que postula a teoria dos motivos determinantes. Ainda conforme Celso de Mello, "de acordo com esta teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato. Sendo assim, a invocação de "motivos de fato" falsos, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, conforme já se disse, a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato. Uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só será válido se estes realmente ocorreram e o justificaram".

Há, portanto, uma relação de causalidade entre o motivo e o ato administrativo praticado. O segundo só pode existir se válido o primeiro. Se motivada a ação administrativa, está somente será válida se o motivo for adequado.

Assim é que, se os pressupostos de validade do ato não se verificarem, o ato deverá ser anulado. Não pode, frise-se, a Administração manter o Ato praticado para depois modificar a justificação. Tal atitude, além de antiética, ilegal e abominável, constitui-se em perigoso subjetivismo que deixa o administrado sem controle do ato administrativo, o que contraria, no limite, a Teoria da Justiça fundante do Estado Democrático de Direito e desvirtua, por má aplicação (aliás, péssima aplicação), o princípio da legalidade e da finalidade. Assim, ato sem motivar, ato motivado em pressuposto ilegal ou inocorrente e modificação de motivação após a prática do ato constituem modalidades de desvio de poder, que deve ser temido, evitado e corrigido por todos os cidadãos.


Notas

  1. BOETIE, Etienne de La. Discurso da Servidão Voluntária. Disponível em http://www.culturabrasil.pro.br/zip/boetie.pdf. acessado em 16 de junho de 2.011. as 17:42.
  2. MELLO. Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2002. P.89
  3. Idem, p. 95
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Sobre o autor
Sergio Lindoso Baumann Pietroluongo

Advogado. Especialista em Direito Público na UniDF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIETROLUONGO, Sergio Lindoso Baumann. Sobre a necessidade de motivação dos atos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2984, 2 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19908. Acesso em: 22 nov. 2024.

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