Artigo Destaque dos editores

Uma breve análise da tensão entre positivismo e pós-positivismo como aportes de interpretação/aplicação jurídica a partir do poema "Traduzir-se", de Ferreira Gullar

Exibindo página 2 de 2
Leia nesta página:

5. A DUALIDADE DO INTÉRPRETE EM "TRADUZIR-SE" DE FERREIRA GULLAR

Assentadas as premissas, passa-se a análise do texto poético "Traduzir-se" do poeta Ferreira Gullar. O título remete a uma das três orientações da forma verbal grega "hermeneuein" [18] significando "traduzir" que consiste num processo de tornar compreensível, por meio da língua, algo que nos é ininteligível. Conforme Richard Palmer:

A tradução torna-nos conscientes do facto de que a própria língua contém uma interpretação. A tradução torna-nos conscientes de que a própria língua contém uma visão englobante do mundo, à qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo quando traduz expressões individuais. A tradução apenas nos torna mais totalmente conscientes de modo como as palavras na realidade moldam a nossa visão do mundo, mesmo as nossas percepções. Não há dúvida de que a língua é um repositório de uma experiência cultural; existimos nesse médium e através dele; vemos através dos seus olhos. [19]

Assim, a tradução possibilita a interconexão de dois mundos, o universo compreensivo do intérprete e o horizonte de compreensão do texto, dentro da realidade fática em que se encontram.

Nesse ponto, é importante elucidar que nessa quadra da história, o intérprete/aplicador se encontra dualmente dividido no paradigma de interpretação jurídica (dominante) baseado no positivismo jurídico e no paradigma de interpretação jurídica pós-positivista (emergente), qual seja, de um lado uma perspectiva lógico-dedutiva, de outro, um viés hermenêutico fenomenológico.

Nos iniciais versos:

Uma parte de mim

É todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Verifica-se que de um lado, a noção do sujeito da filosofia da consciência que, solipsisticamente pela lógica dedutiva que reforça a idéia de suficiência das regras, soluciona os casos assujeitando as coisas à lógica-formalista e, quando esse método não funciona, à sua convicção o que acarreta juízos monológicos arbitrários.

Por outro lado, emerge a noção do sujeito que compreende a partir do sentido construído na intersubjetividade do mundo onde se constitui, pautado na idéia dos valores comungados pela comunidade da qual faz parte serve de base para a validade social do ato decisional derradeiro.

Nos seguintes versos:

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Enuncia-se no ponto a fragilidade da perspectiva sustentada pelo positivismo na fungibilidade e imprecisão técnica de métodos interpretativos e do sujeito cognoscente da voluntas legis, bem como da discricionariedade (em sentido forte) [20] conferida ao intérprete/aplicador no que concerne aos casos difíceis [21] que culminam em decisões que não seguem as condições climáticas e marítimas em que se encontra a embarcação, mas o bel-prazer da circularidade arbitrária do leme do navegador. Em contrapartida, oportuna é a lição de coerência de Dworkin:

Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo que os outros juizes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando disseram, mas para chegar a opinião sobre o que esses juizes fizeram coletivamente na maneira de como cada um de nossos romancistas formou a opinião sobre o romance coletivo escrito até então. [...] Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar como parceiro de um complexo de empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. [22]

Juntamente a isso, vale elucidar que aos casos difíceis no pós-positivismo emerge técnica da ponderação de princípios em que a colisão de normas principiológicas devem ser, conjuntamente com fatos do caso concreto, sopesadas para verificar qual razões mais preponderam e em qual intensidade devem ser graduadas ao caso.

Nos versos derradeiros:

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir-se uma parte

na outra parte

- que é uma questão

de vida ou morte -

será arte?

Desse modo, confirma-se assim a derrocada da acepção da filosofia da consciência para o paradigma da filosofia da linguagem, em que, conforme o Lenio Streck:

A linguagem então, é totalidade; é abertura para o mundo; é, enfim, condição de possibilidade. Isto porque é pela linguagem e somente por ele que podemos ter mundo e chegar a esse mundo. [...] Sem a palavra, sem a linguagem, não há existência. Não falamos sobre aquilo vemos, mas sim o contrario; vemos o que se fala sobre as coisas. [23]

Em outro ponto, retomando o título do poema, traduzir com uma questão de vida ou morte, existencial, consiste na ratificação do ser-intérprete com olhos pós-positivistas que encara os velhos problemas que encara com o olhar positivista, que, por fim, acena para um hermeneuta que, na preciosa lição do mestre gaúcho:

deve estar atento à tradição (e à sua autoridade), compreender os seus pré-juizos como pré-juízos, promovendo uma reconstrução do direito, perscrutando de que modo um caso similar [...] vinha sendo decidido até então, confrotando a jurisprudência com as práticas sociais que, em cada quadro do tempo, surgem estabelecendo novos sentidos às coisas e que provocam um choque de paradigmas, o que sobremodo valoriza o papel da doutrina jurídica e a interdisciplinaridade do direito. Como bem diz Gadamer, a compreensão alcança suas verdadeiras possibilidades quando as opiniões prévias com as que se inicia não são arbitrárias. [24]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Ed. Saraiva, São Paulo, 2009.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Martins Fontes, São Paulo, 2002.

__________ .Uma questão de princípio. Martins Fontes, São Paulo, 2001.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. Editora Atlas, São Paulo, 1980.

_________ . Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. Editora Atlas, São Paulo, 2003.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: anatomia de um desencanto. Juruá, Curitiba, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro. 1990.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Ed. Malheiros, São Paulo, 2004.

PALMER, Richard E..Hermenêutica. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1969.

PRADO, Daniel Nicory do. Autos da Barca do Inferno: O discurso narrativo dos participantes da prisão em flagrante. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2313. Acesso em: 22 de Abril de 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências. Edições Afrontamento, Porto, Portugal, 2002.

SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação jurídica. Ed.Saraiva, 2010.

SOUZA, Marcus Seixas. Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação dos valores. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/12518. Acesso em: 20 de Setembro de 2010.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2001.

_________. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Forense, São Paulo, 2004.

_________. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teoria Discursivas: Da Possibilidade à necessidade de respostas Corretas em Direito. Lumens Juris, Rio de Janeiro. 2007


Notas

  1. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Edições Afrontamento, 1995, p.49.
  2. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura: anatomia de um desencanto. Curitiba: Juruá, 2002, p.158.
  3. PRADO, Daniel Nicory do. Autos da Barca do Inferno: O discurso narrativo dos participantes da prisão em flagrante. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php? codArquivo=2313. Acesso em 22 de Abril de 2011.
  4. "Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém:fundo sem fundo./Uma parte de mim é multidão:outra parte estranheza e solidão./Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira./Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente./Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem./Traduzir-se uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte - será arte?/". Poema extraído do endereço eletrônico http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/
  5. SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação jurídica. Ed.Saraiva, 2010, p.42.
  6. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. Editora Atlas, 1980, p.13.
  7. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. Editora Atlas, 2003, p.286.
  8. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do Direito. Forense, 2004, p.19.
  9. Primorosa é a definição de princípio enunciada pelo Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello: "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico". MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Ed. Malheiros, 2004, p.771-772.
  10. Utilizando-se do critério adotado por Ronald Dworkin, a distinção entre regras e princípios se funda basicamente em três aspectos: natureza lógica, dimensão de peso e admissão de exceções. Nesse ponto ver "Levando os Direitos a Sério".
  11. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Ed. Saraiva, 2009, p.340-341.
  12. Sinteticamente, a regra de reconhecimento de Hart funciona como um cânone de testabilidade de regras no âmbito interno e externo.
  13. Nesse sentido, compactuo com as veementes críticas de Marcus Seixas Souza à idéia de ponderação de Alexy quando aquele estabelece a distinção entre sopesamento e ponderação: "Reside importante diferença entre aplicação do princípio adequado e a aplicação ponderada de princípios. A primeira respeita o mandamento da Separação de Poderes, se limitando a interpretar os fatos e o Direito válido para encontrar uma norma adequada, entre as possíveis e aplicáveis prima-facie; a segunda, proposta por Alexy, autoriza o magistrado a mitigar princípios que concorrem (prima-facie) para o caso concreto, isto é, corrigir o legislador, diminuindo ou aumentando a intensidade de efetivação de determinado princípio, como se este fosse um valor e pudesse ser manipulado desta forma. O pensamento de Alexy ultrapassa a um bem-aventurado ativismo judicial; parece sequer respeitar as limitações constitucionais fundamentais à mera existência da Democracia, e termina por esvaziar a juridicidade de sua metodologia, já que eticiza o discurso de aplicação de normas". SOUZA, Marcus Seixas. Coerência e adequação: uma crítica à metodologia da ponderação dos valores. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/12518. Acesso em: 20 de Setembro de 2010.
  14. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. Tempo Brasileiro, 1990, p.53.
  15. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2001, p.174.
  16. Idem. p.181.
  17. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Editora Vozes, 1997, p.542.
  18. Nesse sentido: "As três orientações, usando a forma verbal (hermeneuein) para fins exemplificativos, significam: 1)exprimir em voz alta, ou seja ‘dizer’; 2) explicar, como quando se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma língua estrangeira". PALMER, Richard E.. Hermenêutica. Edições 70, 1969, p.24.
  19. PALMER, Richard E.. Hermenêutica. Edições 70, 1969, p.37.
  20. Esse sentido de discricionariedade deve ser entendido como a acepção "sentido forte" de discricionariedade. Nessa linha, ver capítulo 4 de "Levando os Direitos a Sério".
  21. Casos difíceis, no dialeto de Dworkin, são aqueles em que é difícil identificar com nitidez a regra que solucione o caso ou, ainda, certificar a existência dela no sistema normativo; por via de conseqüência, haveria nesses casos uma abertura interpretativa que culminaria numa possível discricionariedade judicial do julgador.
  22. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Martins Fontes, 2001, p.238.
  23. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2001, p.175.
  24. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teoria Discursivas: Da Possibilidade à necessidade de respostas Corretas em Direito. Lumens Juris, 2007, p.274.
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Diego Pablo Candeias de Albuquerque

Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Diego Pablo Candeias. Uma breve análise da tensão entre positivismo e pós-positivismo como aportes de interpretação/aplicação jurídica a partir do poema "Traduzir-se", de Ferreira Gullar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2985, 3 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19919. Acesso em: 3 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos