3 A TEORIA NA PRÁTICA
Na prática, no entanto, as coisas se apresentam diferentes do que está na Constituição e na legislação infraconstitucional. No Senado, as sabatinas acima referidas para os agraciados com diretorias nas agências reguladoras não têm se revestido do rigor necessário para aquilatar o conhecimento do dirigente indicado, abrindo margem, muitas vezes, para influências políticas na composição dos colegiados das agências. Realizam-se, em diversas ocasiões (e disso tem se ocupado a mídia e e críticos do modo como é feito a escolha desses dirigentes), como um faz-de-conta, um mero cumprimento de uma formalidade exigida legalmente, não sendo difícil perceber a negligência a que chegam determinados parlamentares nessas ocasiões.
As indicações desses nomes, é bom que se observe, muitas vezes não recaem sobre pessoas com a devida qualificação técnica para atuação nessas agências. Resultam de articulações de natureza política, deixando de lado algo muito mais importante, que é o conhecimento que o diretor de uma agência reguladora deve possuir a respeito da respectiva área de atuação (telecomunicações, energia elétrica e assim por diante). O resultado é que, mesmo contando com técnicos capacitados em suas áreas profissionais, recrutados por meio de concursos públicos, as agências acabam sendo, em muitas oportunidades, dominadas por pessoas estranhas aos setores técnicos de que cuidam. Nessas condições, acontece das duas uma: ou o diretor da agência acaba querendo impor o que pensa saber sobre sua função ali ou acaba se deixando levar por tudo aquilo que lhe for dito por técnicos da agência ou por interferências externas indevidas.
Nesses termos, que autonomia pode ter, numa agência, um diretor que a ela chegou por ingerência de setores governamentais ou de partidos políticos aliados ao Governo? Irão esquecer a generosidade dos seus padrinhos, agindo com a absoluta isenção requerida para quem é diretor de uma agência reguladora ou terminarão por se deixar levar por um sentimento de gratidão, comprometedor do ponto de vista, da moralidade?
Padecem também as agências do que Alexandre Aragão chama de "déficit democrático" (ARAGÃO, 2008, p.72), pois, embora estejam previstas nas leis de sua criação audiências e consultas públicas, estas raramente se realizam, deixando de ocorrer, pois, a interação que poderiam e deveriam manter com o usuário. Não se submetem, nessa postura, a um controle social que seria salutar e enriquecedor, uma vez que representaria o ensejo para que a sociedade, mais objetivamente, lhes encaminhasse não somente queixas, denúncias e reclamações, mas também sugestões para a melhoria dos serviços prestados. Seria também uma forma de a sociedade controlar as reguladoras, que, sendo detentoras de muito poder, devem se acautelar contra a tentação de abusar desse poder, portando-se como uma espécie de ilhas isoladas e indiferentes à sociedade.
Não se pode dizer que a introdução das agências reguladoras no Brasil não é inovadora e não veio, pelo menos em tese, contribuir para reformular, favoravelmente, o controle dos serviços públicos delegados pela Administração. Contudo, à medida que for amadurecendo a experiência com o funcionamento delas, que possam passar pelas mudanças que se fizerem necessárias. Espera-se, evidentemente, que, com esses avanços, elas possam atuar com mais abertura, mais transparência, controle social e, consequentemente, um compromisso mais firme com o interesse público, razão maior da delegação dos serviços públicos feita ao particular. Em síntese,se não é negativa a adoção das agências, para chegarem ao nível desejado em um estado democrático de direito, muito ainda precisa ser feito em relação a elas.
Outro ponto a ser levantado: até que ponto têm as nossas agências reguladoras funcionado com um compromisso profundo com a sociedade? Este questionamento se renova a cada vez que o noticiário dá conta de decisões delas incompatíveis com o interesse público. Ainda recentemente, acompanhou-se pela grande mídia a notícia de que a Aneel não agiu com eficácia na prevenção e combate a possíveis irregularidades na cobrança das tarifas de energia elétrica, ocasionando para os consumidores prejuízo que, pelo que se informa, chegaria a um bilhão de reais anuais. Pelo que se fala, tratar-se-ia de uma falha que se repete desde 2002, sendo, por uma mera coincidência, mais um erro em prejuízo não das grandes concessionárias do setor, mas dos usuários.
Este é apenas um dos muitos exemplos e evidências de que, criadas com estardalhaço e como instrumentos perfeitos, as agências reguladoras no Brasil têm até aqui frustrado os que acreditavam que teriam aqui a eficiência mostrada em países como os Estados Unidos, Inglaterra e outros. Tal objetivo, posto na era FHC, marcadamente liberal (rebatizado de neoliberal), não foi cumprido, o que nos leva, agora, a questionar se havia (ou há) necessidade concreta de que a regulação de serviços públicos no Brasil passasse a incorporar entre os seus instrumentos as agências reguladoras.
Fazendo-se um rápido levantamento das ações e omissões no trabalho das agências reguladoras brasileiras, é-se inevitavelmente conduzido a algumas dúvidas. Será que, com o advento das agências responsável pelos transportes (ANTAq, ANAC e ANTT), os transportes melhoraram ou pioraram? Será que a regulação em termos de vigilância sanitário e do funcionamento dos planos de saúde está melhor do que no tempo em que era executada diretamente pelo Ministério da Saúde? Será que, nas telecomunicações, a fiscalização da Anatel é mais eficaz do que na época em que era da responsabilidade direta do Ministério das Comunicações.? Que resultados práticos e convincentes tem mostrado a Agência Nacional de Petróleo, se, vez ou outra, assiste-se, na mídia, por exemplo, à divulgação de iniciativas do Ministério Público para inibir tentativas de cartelização na venda de combustíveis? Na prática, o que a existência da Agência Nacional de Águas agregou em termos de melhorias no setor hídrico?
Por maior que seja a boa vontade e a esperança que a população ainda deposita quanto ao futuro das agências reguladoras, não se tem como evitar a constatação de que, na concretude dos fatos, elas vieram acarretar o surgimento, no âmbito da Administração Pública, de ilhas de poder sem um retorno satisfatório para a coletividade. Então, não seria injusto perguntar por que, afinal de contas, foram criadas, uma após outra, num desses modernismos que, aqui acolá, invadem a Administração Pública? Já houve até quem indagasse se seriam para, de fato, funcionarem a contento ou apenas para servir como mais um instrumento de marketing visando legitimar a onda devastadora de privatizações promovida no Estado brasileiro na última década do século XX. Isto é, teriam surgido apenas para passar a ideia de que, com a intensidade das privatizações, com a transferência de um volume maior (expressivamente maior) de serviços públicos para o setor privado, eles estariam fortemente controlados por meio das agências reguladoras?
O entendimento fático, nestas circunstâncias, não pode ser outro que não seja o de que as agências reguladoras, na opinião de muitas pessoas, não justificaram até aqui a sua criação. Um dos argumentos mais utilizado é de que tais autarquias não mostraram mais eficiência do que os órgãos reguladores já tradicionalmente integrantes da máquina administrativa pública. Se não se tratava de imposição da Constituição Federal de 1988 (que se refere a órgão regulador e não explicitamente a agência reguladora), para que então foram instituídas?
4 QUESTÃO DE PRINCÍPIOS
Evidente que a regulação dos serviços públicos não pode deixar de acontecer, pois esta é uma exigência da própria Constituição Federal, como está recepcionado de forma cristalina nos arts. 170 a 174. Lá está insculpida a intenção, está explicitado o propósito de que, na delegação dos serviços públicos, tenha-se o justo e indispensável equilíbrio entre o poder concedente, o concessionário e o usuário.
Trata-se de uma competência estatal para a qual existem várias opções, além das agências reguladoras. É fato que a vinda delas foi aplaudida e ardorosamente defendida até mesmo por doutrinadores conceituados. É o caso, por exemplo, de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, para quem as agências reguladoras trariam as seguintes vantagens:
A vantagem política reside na abertura da participação ao administrado, propiciando um clima de colaboração intenso e benéfico, aumentando, em conseqüência, a legitimidade das decisões da entidade intermédia. A vantagem técnica está na despolitização de inúmeras decisões que, em vez de serem tomadas por indivíduos das áreas política ou burocrática, descomprometidos pessoalmente com os resultados no sentido de que não por eles atingidos, passam a ser negociadas pelos grupos sociais mais diretamente interessados, evitando posturas políticas, teorias esdrúxulas, experiências desastrosas e as indefectíveis generalizações fáceis. (Moreira neto, 2006, P. 161-162)
No seu entusiasmo e certamente no pressuposto de que no Brasil a concepção de agências reguladoras seria integralmente considerada, a MOREIRA NETO ainda acrescenta que
A vantagem fiscal, por fim, está no fato de que esses entes de cooperação de todos os diretamente beneficiados podem vir a ser criados sem gerar novo ônus para o Estado, prescindindo de novos tributos para custeá-los, uma vez que os recursos necessários para mantê-los e desenvolver-lhe as atividades podem vir a ser cobrados". (MOREIRA NETO, 2006, p. 161-162)
Teoricamente, ele estava correto, mesmo porque tem sido assim a experiência com agências reguladoras em outros países. Mas será que lá essas agências se deixam envolver ou não por ingerências políticas de algum tipo? Dão as costas para os usuários, deixando de ouví-los por meio de audiências públicas e ouvidorias> Erram sempre em favor dos concessionários e nunca dos usuários? Praticam atitudes ou omissões que descaracterizam o papel delas?
Feitas estas considerações, vê-se facilmente que o êxito da regulação, antes de repousar nons instrumentos que utiliza )conselhos, departamentos, autarquias, etc.), depende de compromisso público. Em primeiro lugar, a regulação tem que perseguir os princípios da Administração Pública explicitados no art. 37 da CF/88: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
O seguimento destes princípios é a questão básica não apenas das ações reguladoras, mas das demais atividades estatais. Se eles forem cumpridos, a condição do instrumento regulador (se agência, autarquia, departamento ou seja lá o que fá, de conformidade com as opções legalmente positivadas) irá se tornar relativizada. Este parece ser o pensamento de Marçal Justen Filho, ao afirmar:
As atividades regulatórias são desenvolvidas não apenas por meio de agências independentes, mas por via de inúmeros órgãos administrativos. Existem atividades regulatórias setoriais, desenvolvidas pela atuação permanente e harmônica de inúmeros órgãos estataisd. É possível aludir não apenas à regulamanetação econômica propriamente dita, mas também a outros instrumentos regulatórios. ( JUSTEN FILHO, 2006, p. 485)
Em síntese, portanto, regulação é, antes de mais nada, uma questão de princípios, exatamente aqueles das quais a Administração pode se afastar, principalmente depois que p Estado brasileiro dói impactado por um polemizado processo de privatizações. Afinal de contas, é oportuno, neste ponto, recorrer mais uma vez a Justen Filho:
Somente se admite a privatização na medida em que existam instrumentos que garantam que os mesmos valores buscados anteriormente pelo Estado serão realizados por meio da atuação da iniciativa privada. ( JUSTEN FILHO, 2006, p. 460-461)
Justen Filho coloca aí um ponto fundamental que não pode em nenhum momento ser esquecido: a permanência com o Estado da titularidade do serviço delegado. Somente este detalhe já é o suficiente para buscar o mais intensamente possível, no exercício da regulação, o necessário zelo para que não sejam descumpridos os princípios elementares da Administração Pública, além naturalmente daqueles, basilares, recepcionados no art. 37 da CF/88.
Robertônio Santos Pessoa situa tudo isso no contexto da nova feição que o Direito Administrativo adquire no Brasdil a partir da promulgação da Constituição de 1988, ao alertar que
Não se pode perder de vista que o direito administrativo deve satisfazer a uma dupla finalidade: a ordenação, disciplina e limitação do poder e, ao mesmo tempo, a eficácia e efetividade da ação administrativa. (PESSOA, 2009, p.179)
E complementar com esta advertência:
Sem deixar-se iludir-se por modismos alienígenas, que não raro expressam interesses do grande capital internacional e seu frenesi acumulativo, ao direito administrativo brasileiro compete identificar estratégias de ação adequadas e compatíveis com a realidade nacional. Para tanto deve parttir de análises mais acuradas da realidade do Estado e da sociedade brasileira, em todos os seus meandros. (PESSOA, 2009, P. 179)
Com estas palavras, PESSOA termina por colocar algumas diretrizes que seRvem como embasamento para a avaliação que se torna já inadiável da experiência com as agências reguladoras no Brasil. Estão utilizado as estratégias corretas? Adequaram-se à realidade brasileira? Estão compartilhando o grande poder que lhes foi conferido com a sociedade nacional? Estão atendendo às expectativas a respeito delas diante dos cidadãos?
Não precisa ser feita nenhuma pesquisa científica, com uma ampla amostragem, mas simplesmente acompanhar, pela mídia, a performance dessas agências e o nível de satisfação (?) com elas por parte da população. Em qualquer segmento da sociedade, a constatação é de que os usuários dos serviços delegados não alimentam expectativas muito otimistas com relação a elas, apesar de o atual governo, no âmbito federal, vinha, com algumas medidas, importantes, sinalizando para uma maior transparência e articulação das agências reguladoras com os usuários.
Indo, mais uma vez, ao plano fático, os insatisfeitos com os abusos praticados habitualmente por concessionários de serviços públicos delegados, notadamente na telefonia e nos planos de saúde, continuam preferindo apostar nas iniciativas do Ministério Público, dos órgãos de defesa do consumidor e até mesmo no poder dos meios de comunicação, como formas de pressão com vistas à correção de abusos, descumprimento do Código de Defesa do Consumidor e outros instrumentos legais e normativos desses serviços, para a correção daquilo que não é corretamente executado. A quem menos recorrem, nesses momentos, é justamente agências reguladoras, crê, entre outros, por dois motivos desmotivadores: a realização de número insuficiente de audiências públicas pelas agências reguladores e o funcionamento pouco insatisfatório das respectivas auditorias, atenuado, todavia, por um certo desinteresse (ou descrença) na eficiência destas.
Não se pretende, com este artigo, defender o descarte das agências reguladoras, mas evitar o superdimensionamento operacional e institucional que a elas é atribuído. Pretende-se aqui deixar claro que elas precisam ser reavaliadas, inclusive do ponto de vista jurídico, não podendo ser vistas como instrumentos únicos de regulação, evidenciando-se que esta depende da obediência, pela Administração Pública, dos princípios que lhe são inerentes, mais ainda agora com o adensamento da constitucionalização do Direito Administrativo, como tem defendido vários dos seus doutrinadores.
5 CONCLUSÕES
Quando se cobra das agências reguladoras um desempenho convincente, convém salientar que isso é o que foi prometido quando do discurso em defesa da criação dessas agências, pretendendo, naquela ocasião, os vendilhões de grande parte do patrimônio do Estado brasileiro passar para a sociedade a tese (ou o sofisma?) de que as privatizações estavam ocorrendo como um processo inevitável, mas seriam seguidas da instituição de fortes instrumentos de controle sobre a atuação dos concessionários. Não teriam passado as novas agências, segundo questionamentos ainda hoje remanescentes, de uma tentativa de dourar uma pílula amarga, a onda privatizante
Isto posto, as conclusões a que podemos chegar são as seguintes:
1)As agências reguladoras, do ponto de vista doutrinário (consolidado pela experiência internacional) podem vir a fortalecer a regulação no Brasil, desde que, aqui, o modelo importado não seja distorcido, isto, venha a sofrer, na prática, um indispensável e inadiável redimensionamento.
2As agências reguladoras passaram a existir no Brasil como decorrência onda reforma neoliberal dominou o Estado brasileiro, sendo constitucional permitidas, mas não exigidas na Carta Magna de 88.
3)A criação de agências reguladoras, a par do aperfeiçoamento a que devem se submeter, para a correção de suas muitas falhas e omissões, tem que atender a prioridades, causando estranheza, por exemplo, que, enquanto para o cinema já existe uma agência reguladora (a Ancine), não haja uma para a radiodifusão, muito mais carente de regulação, considerando-se a responsabilidade de regular os conteúdos veiculados pela mídia, nem sempre convenientes à moral e aos valores da família.
4)O fundamental não é que a regulação dos serviços públicos delegados seja confiada a esse ou àquele tipo de órgãos regulador, mas sim que ela se processe com firmeza de compromisso público, em rigorosa obediência aos princípios da Administração Pública, sobretudo aqueles recepcionados em nossa Constituição;.
BIBLIOGRAFIA
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